«Produtos brancos» (Crónica de C. Pinto Coelho)
Para quê fugir do Pingo Doce?
FAÇO como toda a gente que tem famílias grandes: uma vez por semana avio as compras de uma só vez e no mesmo supermercado. Desde há anos que vou a um Pingo Doce que me fica em caminho e onde me sinto em casa. Ou antes, sentia. Porque acabo de ser expulso pela ditadura das chamadas “marcas próprias”, que o patrão do Pingo Doce anunciou que vai tornar ainda mais feroz.
Lá terei de me exilar num Carrefour qualquer e recomeçar todo um processo de habituação. É pena. Ali já sabia onde estavam as coisas, o homem do talho era meu amigo, a menina das bolachas e o encarregado das bebidas conheciam as minhas marcas. Eram os trunfos da minha fidelidade à casa. Nunca me passou pela cabeça abandonar o “meu” supermercado, nem mesmo quando a Deco publicou o tal estudo onde a cadeia Pingo Doce aparecia como das mais careiras. Eu achava que o preço não é tudo. Afinal, o preço é apenas um dos factores numa relação comercial e seguramente não o mais relevante, quando essa relação é antiga e duradoura.
Ora, ultimamente, o “meu” Pingo Doce vinha, de semana a semana, reduzindo nas prateleiras uma das suas jóias: a variedade da sua oferta de referências, que era a riqueza da minha escolha. A golpes de surpresa, marcas que eu ali comprava há anos desapareciam, implacavelmente e sem aviso. Os empregados, encabulados, não tinham explicações para fornecer aos clientes e estes, desapontados, iam saindo porta fora em busca de outras portas. Os que o faziam, claro, porque outros rendiam-se aos preços mais baixos dos produtos de marca “Pingo Doce” que apareciam a substituir os ausentes. Era o prenúncio da ditadura. De cada vez que eu ainda conseguia encontrar a minha marca, açambarcava ciosamente uma boa dúzia de exemplares, temendo o pior. E o pior chegava quase sempre na vez seguinte: mais um “já não há” mais outra “marca branca”.
Às vezes levava para experimentar. Raras vezes o substituto tinha a qualidade do substituído, mas lá fui resistindo. Por comodismo, por preguiça, afinal o talho continuava a ter a mesma carne e o detergente até podia não ter marca, não é? Dei comigo a pactuar com a tirania.
… Até que o patrão Alexandre Soares dos Santos se encarregou de me tirar da minha salazarenta letargia. Falando há dias ao “Diário Económico”(12 de Maio), o “chairman” da Jerónimo Martins ( proprietária dos supermercados Pingo Doce) revelou sem rebuços toda a imensidão totalitária que me estava reservada: as ´”marcas brancas” irão crescer, “a curto prazo”, dos actuais 20% para… 40% das prateleiras! – disse. E sublinhou a ambição de “ter cada vez mais marca própria” na sua rede de supermercados. O jornal confirmava que, de facto, “o Pingo Doce tem vindo a diminuir a quantidade da oferta”. Ora, vendo assim traídos os meus anos de fiel dedicação, rugi como um justo tocado por ira divina. E uma voz trovejou sobre mim: “Por que esperas, ó consumidor pusilânime, para te libertares dessa escravidão que te anunciam? Se não te deixam escolher o que queres, escolhe tu a libertação!”
Despeço-me, pois, do “meu” Pingo Doce, gradualmente condenado a uma espécie de casão militar do antigamente, com as suas rações de marca única. Sei que as vendas de “marcas próprias” cresceram quase trinta por cento no ano passado, mas não sei quantos clientes desencantados terão mudado de poiso.
Na dureza do negócio, os gestores esquecem-se de que, mais importante do que as políticas de preços, está a subtileza dos agrados, a mais valia dos nichos de escolha, o requinte das variedades, o prestígio das múltiplas diferenças. Cativar uma clientela é não lhe sonegar marcas de preferência, a pretexto de serem menos lucrativas. Atrair públicos é aumentar-lhes as referências, não privá-los das que existiam. Sob um nome de marca podem estar séculos de experiências e tradições, mil saberes passados de geração em geração ou, simplesmente, o golpe de asa de uma receita genial e irrepetível. Uma marca é sempre um distintivo do peculiar, simultaneamente único e responsabilizante. E toda a marca tem os seus amigos. Subordinar isso à lógica informe dos proveitos é retirar ao exercício comercial uma fatia da sua nobreza secular – o genuíno respeito pelos gostos dos clientes. A pretexto de lhes suavizar a carteira com preços mais baixos, vão-se assegurando melhores lucros. Mas a dimensão humana do comércio fica bem mais pobre. O esplendor cultural da chcocolataria belga ou suíça substituído por uma etiqueta de “marca branca”? Horror!
Mas devo admitir que não foi apenas nos supermercados que se instalou a onda esclerótica dos “produtos brancos”. Ela anda por aí, de tal maneira metida nas nossas vidas que já outros velhos gostos definitivamente perdemos.
São, desde logo, os “discursos brancos” dos políticos, cada vez mais desprovidos dos sabores diversos das ideias, dos conteúdos e dos contrastes – marcas que faziam a diferença e poliam os povos. E que vêm enfardados noutros “produtos brancos” que são algumas palavras repetidas até à exaustão. “Transparente” é uma delas. Não há gesto de político que não seja “transparente” ou “muito claro”. E quando a coisa está feia, todo o político “aguarda serenamente”. Sempre “serenamente”. Sempre “transparente”. Ad nauseam.
E que dizer das “programações brancas” das rádios e das televisões? Nas rádios, os “produtos brancos” são as “playlists” incolores, incaracterísticas, iguais, de baixo custo como o arroz dos supermercados em dia de saldo, todas tocando as mesmas faixas das mesmas novidades. Até ao massacre, até à repulsa visceral dos ouvintes, até ao último cêntimo facturado pelas editoras. Corra-se Portugal de automóvel, ouçam-se as grandes rádios e sua música. Sempre as mesmas “marcas brancas”. E na televisão? Nos três canais de maior audiência vingam as “grelhas brancas” das telenovelas e dos concursos. Não faz diferença alguma falhar um serão ou mudar de canal: em horário nobre, o “produto” é sempre “branco”.
E que dizer desse outro “produto branco” que é alguma livralhada de ficção larvar que inunda os melhores espaços das livrarias e dos supermercados? Textos demenciais, servidos num léxico minguado, autênticos “genéricos” literários para cabeças sofridas. Se o escrevinhador é vedeta de cartaz social, então tem fotografia na capa. E a mistela vende-se.
Ou seja: para terminar com justiça, devo conceder ao ex-“meu” supermercado que abra ala nova de prateleiras para exposição e venda de livros portugueses “light”, alvarás de rádio e concessões de canais de televisão, tudo marca Pingo Doce, claro. E, bem junto às caixas registadoras, para consumo de última hora, um bonito desdobrável de plástico com discursos políticos Pingo Doce. Ninguém notará diferença dos de marca Parlamento.
“Aguardo serenamente”.
(«A CAPITAL», 20 Maio 2005)
4 Comments:
Tem toda a razão, mas podia acrescentar-se uma lista de outros "produtos brancos" muito portugueses. Os clubes de futebol, por exemplo, que dantes eram de marca, autênticos, mas agora são lugares de passagem purante comerciais, com jogadores que se trocam e vendem como mercadorias.O clubismo só existe nas bancadas, não nos relvados.
Outro "produto branco" nacional são os partidos. Votar PS ou PSD não significa que eu seja socialista ou social-democrata, mas apenas que aquele partido me "dá jeito" nesta ou naquela circunstância. Os clubes e os partidos são hoje uma espécie de embalagens vazias, onde cada um mete lá dentro o que calha. "Produtos brancos"...
Hummmm... Clubes de futebol, produtos "brancos", com tantos "pretos"?!
C.R.
Julgo que deveria ser feita uma ressalva:
Na loja Pingo Doce onde eu vou continua a haver (p. ex.) desodorizantes de diversas marcas e ainda um "branco", Pingo Doce.
Não vejo onde está o mal.
Claro que, se retirassem TODOS OS OUTROS e só deixassem o "branco" (como no caso que refere CPC), seria mau, mas não é o caso na "minha" loja.
--
Há também um outro aspecto a considerar.
Posso garantir (porque já trabalhei em casos concretos) que há produtos rigorosamente iguais e que só diferem na embalagem, porque a fábrica que os faz é a mesma.
Às vezes, é o próprio fabricante que mete o MESMO produto em embalagens diferentes.
Isso é válido para detergentes, electrodomésticos, etc.
Já tive na mão um caixote com 20.000 transístores "sem marca" que, depois, e uma vez serigrafada a correspondente referência, viriam a ser comercializados por diversos "fabricantes" - qual deles o mais conceituado!
--
Nisto das marcas há, por vezes, um certo fetichismo - que é um direito que assiste a quem o quiser pagar, é claro.
Mas pode ser como garantir que «a Nossa Senhora da Piedade é melhor do que a "Nossa Senhora de Fátima», quando são uma e mesma Senhora.
C.Eduardo
Sim, para falar de «produtos brancos», poderia ter ido buscar outro «leitmotiv», mas isso ficava mal. Terminando muito bem, começou muito mal, porque nem sempre se fala do que se conhece.
Enviar um comentário
<< Home