24.6.05

«Acontece...» - Chamava-se Reinaldo Ferreira

(A Crónica das 6ªs-feiras de Carlos Pinto Coelho)

O POETA Reinaldo Ferreira morreu num 30 de Junho, faz na próxima quinta feira 46 anos. Em Lourenço Marques, com 37 anos de idade. De cancro de pulmão, fumador a sério que ele era, como sou eu agora. Para mim, que tinha 15 anos nesse dia, a morte do Reinaldo chegou de manhãzinha muito cedo, quando as acácias ainda estavam cobertas de cacimba e a carrinha chevrolet dos Maristas parava à minha porta para me levar para um acampamento nas dunas do Bilene. A minha mãe Sara estava no passeio a despedir-se e a dizer mais uma vez que tivesse cuidado quando, de repente, chegou o opel branco do senhor Carlos Andrade, que fazia teatro amador no Rádio Clube de Moçambique com a Sara, dirigidos pelo Reinaldo. Repito que estava cacimba cerrada e além do mais eu ainda tinha sono. Por isso percebi mal o que aconteceu, mas lembro-me de que o senhor Carlos Andrade falou com a minha mãe e ficaram muito comovidos. Depois a minha carrinha partiu e nunca mais pensei nisso. Até hoje.

Menina dos olhos tristes,
O que tanto a faz chorar?
- O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.


O Zeca Afonso e o Adriano Correia de Oliveira cantaram estes versos do Reinaldo, o Zeca Medeiros também, só que eles não viram nascer o poema. Eu vi. Tinha para aí 13 anos. Foi no Rádio Clube de Moçambique, num sábado, porque era aos sábados à tarde que se gravavam as peças do “Teatro em Sua Casa” e a minha mãe tinha-me levado. E foi num intervalo para as pessoas lancharem. O estúdio ficava no primeiro andar e toda a gente tinha mandado vir sanduíches e bolinhos e coisas assim, lá de baixo do salão de chá, que era no rés-do-chão. Quando chegaram as bandejas o Reinaldo pegou na sua chávena e afastou-se, calado, a escrevinhar no guardanapo de papel que vinha com o chá. Depois veio mostrar, com aquele ar tímido, aqueles olhos grandões sempre a espreitar o mundo, o cabelo curto espetado como antenas, o jeito afável de falar. E no papelinho lá estava, garatujado a esferográfica, “Menina dos olhos tristes....” Todo o pequeno grupo se entusiasmou, fez elogios e sorrisos porque aquela gente gostava mesmo dele, era autêntica no apreço que tinha por aquele discreto funcionário público, que não fazia a vida social do Clube Civil, nem do Hotel Polana, nem do Naútico, andava sempre sem um centavo no bolso e ainda por cima era homossexual. Gostavam dele, pronto. Por isso é que eu digo que vi nascer um dos poemas maiores do Reinaldo, escrito quando não havia sequer prenúncio de guerras coloniais e que mais tarde foi transformado pelo Zeca Afonso numa canção muito bonita que serviu como cantiga de protesto. A vida tem coisas assim.

Eu, Rosie, eu se falasse, eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.


Este, eu não o vi escrever. Mas, já com os meus 20 e tal anos, nas tertúlias que a malta fazia na esplanada do Djambo ou por casa uns dos outros (quanta madrugada, quanta cerveja, quantas certezas…) todos sabíamos de cor algum poema dele e dava-me sempre para imaginar o Reinaldo, boémio intranquilo e solitário, rabiscando aqueles versos a uma mesa do Pinguim, que era um dos cabarets de putas e marinheiros da Rua Araújo, junto ao porto. Aquela Rosie só existiu, talvez, na mente daquele homem genuinamente angustiado, para quem a vida era só interrogação, solidariedade, elegância e pouco mais. Num despojamento absoluto e assumido, onde tudo o que valia era a autenticidade do momento. Escrevo estas coisas como se tivesse privado com ele e fosse adulto no seu tempo, o que não aconteceu. Mas estou tanto mais certo do que afirmo, quanto mais vou ouvindo e lendo, pelos anos, o que dele me dizem ou escreveram minha mãe Sara, Rui Knopfli, Eugénio Lisboa, Almeida Santos, Guilherme de Melo, por aí. E também José Régio, como se verá.

Mínimo sou.
Mas quando ao Nada empresto
A minha elementar realidade,
O Nada é só o resto.


Eis o que está inscrito na lápide tumular de Reinaldo, no cemitério central de Maputo, onde jaz o poeta. Chama-se “O Ponto”. Nestes quatro versos José Régio encontrou “uma daquelas intuições que tantas vezes os grandes poetas nos atiram sem chegarem a esclarecê-las”. Régio conheceu Reinaldo Ferreira. Primeiro, fugazmente, o jovem adolescente filho do célebre Repórter X e depois a sua obra, postumamente publicada e comentada por Eugénio Lisboa que prontamente se encarregou de a enviar ao poeta de Portalegre. É assim que José Régio decide prefaciar a edição dos “Poemas” que sai na Portugália no fim dos anos 60. E onde não tem dúvidas em classificar Reinaldo como “ um grande poeta português”.

Também sei dos seus devaneios popularuchos. “Uma Casa Portuguesa com certeza” fez as delícias da plateia do Teatro Manuel Rodrigues, na então Lourenço Marques, durante as representações de uma qualquer companhia do Parque Mayer em digressão pelas Áfricas. De parceria com Vasco Matos Sequeira e o compositor Artur Fonseca é verdade que Reinaldo Ferreira cedeu à tentação (e aos dinheiritos que ela rendia) de escrever quadros de revista e respectivas cantigas de telão, algumas das quais passaram a disco e ficaram na memória de gerações. Sei disso, não o escondo, nem afecta o respeito enorme que tenho pelo poeta.

Mas se é lícito apropriarmo-nos para consumo interior (e é!) de um concerto de Bach, imagem de Bosch ou cariátide do Parténon, saiba-se então que há muito fiz minha esta cortante imprecação do Reinaldo:

Não ponho esperança em mais nada.
E se puser
Há-de ser ambição tão desmedida
Que não me caiba sequer
No que me resta de vida.


(«A CAPITAL», 24 de Jun 05)

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