O céu de Kant...
... a sugestão de Nuno Crato
NO bicentenário da morte de Kant, surge a primeira tradução portuguesa da sua “Teoria do Céu”.
A possibilidade de existência de vida extraterrestre fascina-nos. Aparece em filmes, romances e é tema de conversa entre cientistas e leigos. Poder-se-ia pensar que este interesse é novo, mas tem milhares de anos.
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NO BICENTENÁRIO DA MORTE DE KANT, SURGE A PRIMEIRA TRADUÇÃO PORTUGUESA DA SUA “TEORIA DO CÉU”
A possibilidade de existência de vida extraterrestre fascina-nos.
Aparece em filmes, romances e é tema de conversa entre cientistas e leigos. Poder-se-ia pensar que este interesse é novo, mas tem milhares de anos. Umas vezes com mais vigor, outras com menos, a especulação sobre a existência de vida fora do nosso planeta tem acompanhado toda a nossa história.
Logo na Antiguidade clássica, alguns filósofos gregos, como Leucipo (c. 480–420 a.C.) e Demócrito (c. 460–370 a.C.), defenderam a hipótese da pluralidade de mundos habitados, mas quem dominou o pensamento ocidental nos séculos seguintes foi Aristóteles (384–322 a.C.).
Segundo ele, a Terra era um centro habitado por seres mortais e imperfeitos, enquanto os céus eram perfeitos e incorruptíveis.
Neste sistema cosmológico não tinha sentido, falar em outros mundos.
Durante toda a idade média cristã, foram raros os pensadores que retomaram o tema. Santo Agostinho (345–430) e São Tomás de Aquino (1225–1274) condenaram a ideia da pluralidade dos mundos. A possibilidade de Cristo ter aparecido apenas num mundo particular ou de ter aparecido repetidamente em vários mundos era intolerável. «A Primeira Causa [Deus] não pode fazer vários mundos», concluía São Tomás.
Com a revolução cosmológica de Copérnico (1474–1543) tudo mudou. A Terra passou a ser um planeta entre outros; todos orbitando o Sol. A separação absoluta entre o mundo terreno e o mundo celeste desapareceu. Nada impedia que outros astros fossem também habitados.
No “Diálogo dos Dois Grandes Sistemas do Mundo”, Galileu (1564–1642) diz, pela boca de Salviati, que na Lua «devem existir seres capazes de ver e de admirar a grandeza e beleza do mundo, de celebrar e de cantar a glória do Criador». E Johannes Kepler (1571–1630) escreve uma ficção, “O Sonho”, em que imagina habitantes lunares vivendo em cidades construídas nas crateras. Nesses locais, que Kepler imagina serem pantanosos, poderiam proteger-se da luz solar. «Eles não habitam em mais nenhum lugar», conclui, «é aí que construem as suas cidades».
A especulação romanceada continua em 1638 com “O Mundo na Lua”, de John Wilkins; em 1656 com “O Outro Mundo, ou os Estados e Impérios da Lua”, de Cyrano de Bergerac; e em 1698 com “Cosmotheoros” de Christiaan Huygens. Mas a ficção mais deliciosa e inventiva é certamente «A Pluralidade dos Mundos» do francês Bernard Le Bouyer de Fontenelle (1657–1757), sobrinho de Corneille e secretário perpétuo da Academia Real das Ciências. Com o título original de “Entretiens sur la pluralité des mondes”, a obra saiu em 1686, teve 33 edições durante a vida do autor e ainda em 1888 era reeditada em tradução portuguesa pela Casa Editora David Corazzi.
Sob a forma de diálogos entre um filósofo sábio e uma bela marquesa, Fontenelle desenvolve vários temas astronómicos. O filósofo mostra à nobre senhora «a Natureza, como um belo espectáculo que se parece com o da ópera.» A ouvinte está curiosa e tão convencida fica da existência de extraterrestres que afirma ser «inquietante saber que eles estão lá em cima, nessa Lua que nós vemos».
Um ano depois da saída da obra de Fontenelle, Isaac Newton (1642–1727) publicou os seus “Principia”, explicando a lei da gravitação universal e esclarecendo muitos dos mistérios celestes. Newton, contudo, explicava o equilíbrio do sistema solar e as órbitas dos planetas, mas não se debruçava sobre a origem do universo. Para ele, «o sistema precisara de ser posto em marcha pelo Criador».
O século das Luzes não se iria contentar com a dicotomia entre leis físicas e intervenção divina. Era necessário que o Universo, uma vez criado, se organizasse a si próprio. A ideia seria desenvolvida por um filósofo idealista famoso pelo seu rigor e austeridade, mas um filósofo que habitualmente não se associa à problemática científica. Emanuel Kant (1724–1804), assim ele se chamava, tinha 41 31 anos quando fez publicar a sua “Teoria do Céu”.
Nessa obra, que teve repercussões duradouras nos debates científicos, Kant procurava estabelecer uma cosmogonia, ou seja, uma teoria sobre a criação do cosmos. Procurava basear as suas especulações na mecânica do físico inglês, mas dava largas à sua imaginação. O certo é que teve algumas intuições geniais. O leitor interessado encontrará em português um cuidado trabalho que esclarece a evolução do pensamento kantiano nessa fase, habitualmente designada por «pré-crítica». Trata-se de “Razão e Progresso na Filosofia de Kant” de Viriato Soromenho-Marques (Colibri, 1998).
Kant percebeu que a Via Láctea era um conjunto de estrelas e de outros astros e deduziu, por analogia com o sistema solar e com as nebulosas espirais, que se tratava de um conjunto imenso em forma de disco achatado, ocupando o nosso Sol um local marginal. Daí, explicava, que se visse a Via Láctea como uma faixa de luz no céu, ao invés de se ver uma luminosidade uniforme em toda a abóbada celeste. Continuando o seu raciocínio, defendeu que as nebulosas que se vêm no céu são outras «vias lácteas»; outros universos-ilha, como depois se disse; outras galáxias, como hoje se diz. A sua audaciosa teoria só viria a ser confirmada em 1924, com os trabalhos do astrónomo norte-americano Edwin Hubble (1889–1953).
Prosseguindo o seu raciocínio analógico inspirado nas nebulosas espirais, Kant defendeu que o sistema solar se tinha formado por condensação de uma nuvem de poeiras. Essa nuvem ter-se-ia achatado por efeito da rotação e partes dela ter-se-iam condensado por efeito da gravidade. No centro ficaria o Sol; à sua volta, aglomerações de matéria que gerariam os planetas. Era uma hipótese audaciosa e muito inteligente. Explicava o motivo por que os planetas descrevem movimentos orbitais todos no mesmo sentido, explicava a sua rotação, no mesmo sentido, em torno de si mesmos, e explicava ainda o facto de orbitarem todos em planos quase coincidentes.
Anos mais tarde, quando o grande matemático francês Pierre Simon de Laplace (1749–1847) desenvolveu e fundamentou uma hipótese semelhante, a teoria do filósofo alemão ganhou nova credibilidade. Veio a ser conhecida como hipótese de Kant-Laplace. Depois de várias controvérsias e alterações, esta hipótese constitui hoje o chamado «modelo padrão» de formação de sistemas planetários.
Após ter considerado a Via Láctea como uma galáxia entre outras e ter apontado o sistema solar como um entre muitos possíveis, Kant estava convencido de que o nosso mundo é apenas um entre muitos outros mundos habitados. «Não hesitaria em arriscar tudo na verdade da minha proposição», escreve, «de que, pelo menos, alguns dos planetas que vemos são habitados.» A especulação do filósofo sobre a pluralidade dos mundos encerra a obra “Teoria do Céu”, preenchendo toda a sua terceira parte. Aí se encontram alguns dos trechos mais ingénuos e, ao mesmo tempo, mais poéticos do filósofo alemão.
«A matéria de que são construídos os habitantes dos diversos planetas», escreve, «deve ser de uma natureza tanto mais leve e mais subtil [...] quanto mais os astros estiverem afastados do Sol». Júpiter e Saturno deveriam pois ter criaturas superiores às terrestres, enquanto Vénus e Mercúrio seriam habitados por seres inferiores. «Por um lado podemos ver criaturas pensantes perto de quem o gronelandês e o hotentote seriam Newtons, e por outro seres para quem Newton não passaria de um macaco», conclui.
Quem diria que o austero Kant era possuído de tal imaginação?!
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Texto de Nuno Crato, adaptado do «Expresso»
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