1.7.05

Acontece...

Desculpem lá,
Mas desculpas é que eu não peço


O País surpreendeu-se. Dois ministros, a da Educação e o das Finanças, admitiram publicamente que se tinham enganado. E retrataram-se por isso. A surpresa, está bem de ver, não veio dos erros (tão banais entre políticos, jornalistas e tutti quanti) mas pela sua admissão na praça pública. Deveras raro!

Nos debates de televisão ou de rádio, sempre que um político quer interromper o adversário ou esmurrar-lhe um argumento, puxa da palavra "desculpe" e repete-a até o outro se calar. Quando isso acontece, insiste: "Desculpe lá, mas isso é uma trapalhada!"

É uma fórmula que entrou no nosso quotidiano e que também se usa nas discussões de trânsito: "O senhor desculpe mas ..." e segue-se o ataque ou o insulto. Dir-se-ia que os portugueses pedem perdão antes de se baterem, como quem calça luvas para a bofetada, numa postura de requintada elegância. Entre gente mais chegada, o código situa-se mais ou menos assim: "Desculpa lá, mas estás a ser uma besta."

Interessante, este modismo hipócrita: rouba-se um termo ao seu significado conciliatório e anda-se com ele no bolso como arma de ataque pronta a disparar. Em contrapartida, perdeu-se o hábito salutar de pedir verdadeiras desculpas por erros ou omissões. "Ai desculpe" só se utiliza mesmo, na melhor das hipóteses, quando se pisa o pé do parceiro no autocarro. Daí para cima não sobe a boa alma lusitana.

Em livro que reli esta semana, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de França, Alain Juppé, faz relatos e comentários sobre a sua vida política dos últimos anos. "La tentation de Venise" é uma espécie de diário das suas andanças como secretário-geral do RPR. Alturas tantas Juppé admite ter sido menos dialogante durante muitas entrevistas e debates na televisão. "Fui peremptório, fui desagradável e agressivo" - confessa. E reconhece: "Não gostam de mim". O homem que um dia acabou por chegar aonde queria - ao Poder - não desdenha agora vir reconhecer, em auto-crítica frontal, que afinal não tinha sido preciso tanto vinagre e tanto azedume. Que, vezes sem conta, trocou o argumento das ideias pela pesporrência dos gestos. Tardou, mas veio dizê-lo.


Ora eu não vejo político português capaz de gesto assim. Capaz de ir para a televisão ou para a rádio admitir "não conheço o assunto, não sei, não estou preparado para responder". E, vamos lá,nem político, nem futebolista, nem escritor, nem jornalista, nem motorista de táxi, nem aquele leitor de consumos da EPAL que há dias me entrou pela casa dentro de botas ferradas como um capador de novilhos. Não me lembro de alguma vez, nos anos que levo de vida, um português de nomeada ter murmurado à plebe, “desculpem qualquer coisinha". Não senhor. Português com cargo ou notoriedade pública não se desculpa jamais, não reconhece asneira, não falha golo, não desafina, não erra. E não tem dúvidas, não se engasga, não hesita, não cobiça a mulher do próximo, não cheira mal da boca quando acorda, nunca fugiu ao fisco nem se esqueceu de dar os bons-dias ao porteiro. Quando português com cargo ou função pública diz "desculpe", é só mesmo para introduzir bengalada em alguém. No máximo dos máximos, para relevar uma pisadela no pé do companheiro de autocarro. Nunca por mais nada.

A humildade é apanágio dos grandes? Português é maior do que isso.
Creio, também eu, que vamos entrar em dias de borrasca muito forte, para que não temos alma preparada. Tem a ver com os dinheiros e com a Europa, claro, mas tem a ver, sobretudo, com a idade. Aos novecentos anos, ainda não nos lembrámos de ser jovens e joviais. E lá nos deixamos ir, nesse quente-frio de emigrantes com energia e disciplina quando estamos lá fora, e de senhores de importantes barrigas quando voltamos para casa.

Cá em casa as guerras são de vizinhos, miudinhas, provincianas. Quando faço mal feito, escondo. E se alguém descobre, minto. E se me contestam, dou um berro. E se me mandam calar, dou um murro. Tudo, menos admitir que fiz borrada. Ou não consegui fazer melhor. Tudo menos... pedir desculpas. Pedir desculpas fica mal. É pouco macho, quebra a espinha.

Se calhar é por isso que ainda não ouvi ninguém, durante um debate de televisão, reconhecer que fez o que não devia. Dizer, com os olhos postos na câmara 2 ou 3, "não senhor, não acertei","calculei mal,falhei". E isto sem reticências, sem complexos, sem o terror de sair do estúdio como um vencido.

Habitamos um Portugal de iluminados. Podemos fechar a luz. Pobre França, que levou para as cadeiras do Poder um simples, um homem que algumas vezes errou e o reconhece. Por cá, para a troca, só temos dois.

Carlos Pinto Coelho
n' A Capital de 01 de Julho 2005

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6 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Aí está! A pior cegueira é a de quem não quer ver.

1 de julho de 2005 às 11:04  
Anonymous Anónimo said...

É verdade e acho mesmo que nunca, mas nunca, mudaremos de feitio. Estamos condenados ao pior que pode haver: continuarmos iguais a nós próprios. Chamem-lhe fado, destino. Cá para mim é uma condenação. Não gosto de nós, vou para a Ucrânia!

1 de julho de 2005 às 11:14  
Anonymous Anónimo said...

Além do "desulpe lá", outro tique tipico dos portugueses que me leva aos arames, é o "ó amigo"! Por que raio é que um gajo (sim porque elas nunca o dizem) que nunca me viu mais gordo, e me quer fazer valer o seu ponto de vista, me há-de chamar de amigo se, em geral, o que vem a seguir é tudo menos amigável? Também não gosto de nós, mas prefiro ir pro Tuvalu!

FJMMC

1 de julho de 2005 às 11:25  
Anonymous Anónimo said...

O outro problema, o dos politicos... bem, o problema começa quando esses senhores, sejam eles de que cor sejam e de que nacionalidade sejam, são muito humildes e servidores do povo, quando querem ser eleitos para um posto. Apos a eleição, em que segundo a constituição, e segundo o "juramento" que fazem, estão lá pra SERVIR o povo... esquecem-se, e passam a ser VIPs (daí nada de desculpas). Segundo eles, receberam um mandato pra fazer o que eles querem (sejam guerras ou TGVs), e não o que o povo que votou neles quer. Se o povo não concorda, eles que têm a "autoridade" (e com a autoridade não se brinca), arreiam-lhes com as matracas, clamando que os que os desafiam, esses trastes, ou são hereges ou terroristas. O povo na percebe nada de politica. Só quando lhes interessa que seja o povo a decidir, como com a Constituição Europeia, aí o povo pode decidir, sobretudo tratando-se de um caso tipico em que 90% do pessoal não percebeu nada de nada. Quando se trata de enviar os filhos dos outros pras trincheiras, aí já não são precisos referendos.
Decididamente, vou pro Tuvalu.
FJMMC

1 de julho de 2005 às 11:39  
Anonymous Anónimo said...

"Para a troca temos dois", diz o autor deste delicioso texto
Pois... Felizmente, "para a troça" temos MUITOs mais!

Duarte

1 de julho de 2005 às 18:31  
Anonymous Anónimo said...

...O que a gente se diverte quando nos olhamos ao espelho, não é? Venham mais textos destes que é prá gente ter de ler no Tuvalu!

3 de julho de 2005 às 11:48  

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