A UNIVERSIDADE EM RUÍNAS
SOBRE A TRISTE POLÉMICA das habilitações académicas do primeiro ministro, há um dado que deveria merecer referência mas que, por misteriosa razão, tem escapado a todos os comentadores.
É que, caso José Sócrates da Costa tivesse, este ano, feito o pedido de equivalência para o currículo pós-Bolonha do curso técnico de engenharia de Coimbra, seria já licenciado sem ter de pedir equivalências na Universidade Independente, agora sob suspeição pública.
Isto é, um grau de bacharel atribuído até ao ano passado corresponde, a partir deste ano, ao grau de licenciatura nos novos currículos universitários e politécnicos. E o célebre MBA do INDEG-ISCTE já poderia contar nos novos cálculos de créditos académicos como preparação académica para uma tese de doutoramento.
Segundo alguns comentários surgidos recentemente na comunicação social o(s) caso(s) da Universidade Independente seriam uma mancha numa instituição social respeitável – a Universidade. Outros, mais ousados, vêm alargar a suspeição sobre má qualidade do ensino, investigação e administração ao universo das universidades privadas.
O pressuposto implícito é que a universidade pública – ou melhor, a instituição social abstracta “A Universidade” – estará acima de suspeitas mesquinhas e continua merecedora de respeito e veneração da sociedade.
O dispositivo de gestão académica que está presentemente a ser montado nas universidades portuguesas, à semelhança do que tem acontecido na maioria das universidades europeias, e que decorre declaradamente dos chamados acordos de Bolonha, corresponde, na essência, à americanização do ensino universitário europeu, à adopção do chamado modelo de mercado, e à destruição de uma tradição secular de organização corporativa dos saberes.
É cedo para contabilizar as consequências da passagem do tsunami que tem sido a adopção nas universidades nacionais do modelo estandardizado europeu, mas a mais evidente é a da degradação do estatuto social dos títulos universitários: uma nova licenciatura corresponde a um antigo bacharelato, um novo mestrado a uma antiga licenciatura, um novo doutoramento a um antigo mestrado.
Claro que este, sendo o mais evidente dos efeitos, é também o menos trágico para o edifício universitário. O domínio ideológico e político que o Ministério do Ensino Superior, com o beneplácito das administrações universitárias, tem imposto a estudantes, docentes e investigadores, rege-se pela adopção de um modelo que privilegia contabilidade, avaliação de desempenhos, redução dos tempos de aprendizagem e de aprofundamento de conhecimentos, e adaptação ao mercado de trabalho.
Ora, como bem demonstrou Bill Readings, num livro fundamental designado A Universidade em Ruínas (Harvard, 1997), este modelo terminológico e agencial compraz-se na produção de uma ideologia bacoca – a da “excelência” – que ministérios e administrações universitárias vêem como única bóia de salvamento para uma instituição que não conseguiu resistir à declaração de falência enquanto produtora de cultura nacional perante os mais recentes desenvolvimentos do processo de mundialização cultural.
A minha experiência quotidiana como docente universitário tem-me mostrado de forma prática e contundente como a “bolonhização” do ensino superior português implica negar o que sempre tive para mim serem os princípios fundadores da instituição universitária: o livre pensamento e a aspiração de conhecimento.
Não estou animado por um espírito revivalista ou nostálgico. A instituição universitária portuguesa provavelmente nunca teve muito que a recomendasse, no que respeita à promoção dedicada desses princípios. Mas, ao contrário do que pretendem os administradores universitários actuais – submergidos que estão à lógica do marketing promocional -, o processo de Bolonha não vem oferecer aos incautos estudantes melhor ensino, maior aprofundamento de conhecimentos, e sobretudo mais “competência” e “excelência”. Providencia apenas o fim definitivo do estatuto do estudante – e, com ele, o do lente -, substituído pelo de cliente de uma Universidade transformada em empresa.
Neste sentido, o aparentemente questionável diploma do primeiro ministro foi apenas a mãe de todos os diplomas de Bolonha.
Etiquetas: MJR
3 Comments:
Caro Manuel João Ramos,
Apesar de divergir da visão pessimista que tem do Processo Bolonha, concordo quase em absoluto com o que escreve.
(Uma certa) Universidade está em ruínas.
Caro Pedro Morgado,
Congratulo-me com o seu optimismo sobre o processo de Bolonha.
Espero que nos possamos encontrar daqui a 23 anos para discutir o estado da universidade.
Cordialmente
MJR
concordar em absoluto e divergir da visão pessimista?
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