A UNIVERSIDADE MORREU
Por Manuel João Ramos
O filósofo italiano Giorgio Agamben fala, no seu livro La comunità che viene, publicado em 1990, da “pequena burguesia planetária” como um conglomerado que resulta da dissolução das antigas classes sociais. Esta nova e informe classe herdou o mundo, renunciando ao discurso da identidade popular e nacionalista através do qual procurava elevar o seu estatuto no interior dos estados-nação. Agamben vê-a como a forma através da qual a humanidade se permitiu sobreviver ao niilismo que o século XX instaurou.
Permitam-me uma breve citação do autor:
“A pequena burguesia planetária libertou-se destes sonhos [de falsa identidade popular] e apropriou-se da aptidão do proletariado em recusar qualquer identidade social reconhecível... [Os pequeno-burgueses planetários] conhecem apenas o impróprio e o inautêntico, e recusam até a ideia de um discurso que se lhes adeque. Tudo aquilo que constituiu a verdade e a falsidade para os povos e gerações que se foram sucedendo ao longo de milénios na terra – diferenças de língua, de dialecto, de modos de vida, de carácter, de costumes, e até as particularidades físicas de cada pessoa – perdeu todo o sentido para eles e toda a capacidade de expressão e comunicação. Na pequena burguesia [planetária], as diversidades que marcaram a tragicomédia da história universal são agregadas e expostas através de uma vacuidade fantasmagórica.” (Agamben, 62-63).
A este propósito, também Bill Readings, no The University in Ruins, de 1997, discorre sobre o agudo problema da desreferencialização da cultura que afecta actualmente a humanidade e cujas implicações sobre a ideia de Universidade ele vê como “enormous”, no sentido em que tal desreferencialização, e a associada decadência do estado-nação, destruiu a ligação ideológica íntima entre a universidade e a cultura nacional, sua razão de ser desde Humboldt até ao final da guerra fria.
O diagnóstico de Bill Readings é de grande clarividência. Como académico inglês da área dos estudos culturais, ensinando numa universidade canadiana (Montréal), ele encontrava-se em boa posição para avaliar o processo de transformação do conceito e funcionamento da universidade, tal como foi imaginada e desenvolvida na Europa, através da adopção do modelo empresarial que vingou no Estados Unidos da América e agora se expande mundialmente. A universidade como pilar cultural do estado-nação desmoronou-se com a crise deste face aos processos económicos, políticos e comunicacionais da globalização. Embora Bill Readings não fale propriamente nestes termos – até porque ele julga possível encontrar vias pedagógicas e ontológicas para que os académicos possam sobreviver entre as ruínas da academia -, poderíamos dizer que a universidade, enquanto produtora de sentido (por ilusório que tal actividade tivesse sido ao longo dos séculos), morreu.
Desaparecida a sua razão de ser, enquanto suporte ideológico do estado-nação, e perdidos os pressupostos que justificavam o seu generoso financiamento estatal, a universidade viu nascer do seu interior – como a Tenente Ripley do filme Alien 4, ou os companheiros de MacCready no The Thing – um dispositivo empresarial assente no princípio do estudante-cliente, na precarização do emprego académico, e na mercantilização do conhecimento e da investigação. O centro decisor da universidade deixou então de ser o corpo académico e a relação docentes-discentes para se deslocar para a função do administrador que, sendo ele a súmula do pequeno-burguês planetário, reinventou a de Universidade de acordo com os princípios do que Bill Readings designa ironicamente a “ideologia da excelência” – uma ideologia vazia de objecto e portanto apta a tudo canibalizar (do ponto de vista do gestor, a excelência da universidade não se distingue da excelência de um parque de estacionamento, por exemplo).
Nesta perspectiva, a busca de excelência, a obsessão da avaliação e dos rankings comparativos (confundindo convenientemente responsabilização, ou accountability, com contabilidade, ou accounting), a compactação dos tempos de aprendizagem, e sobretudo a suprema falácia que é a utilitarização do ensino em função dos requisitos do mercado de emprego, não passam então de dispositivos discursivos e políticos com que as administrações universitárias se vêm dotando para, enquanto empresas capitalistas num mercado globalizado, competir entre si numa desenfreada corrida sem critérios nem ideais.
Morta portanto a universidade, o seu nome e património foi sujeito a uma OPA empresarial. As empresas que se estão agora a implantar por todo o mundo, e em Portugal também, apropriaram-se abusivamente do título de “universidade” por motivos de pura estratégia de marketing. E esta evidência só não é reconhecida pelos académicos porque estes, tal como as células periféricas de um corpo em decomposição após a morte cerebral, ainda não foram devidamente informados da ocorrência. Nem seria esse o interesse ou sequer a função do Alien.
Permitam-me uma breve citação do autor:
“A pequena burguesia planetária libertou-se destes sonhos [de falsa identidade popular] e apropriou-se da aptidão do proletariado em recusar qualquer identidade social reconhecível... [Os pequeno-burgueses planetários] conhecem apenas o impróprio e o inautêntico, e recusam até a ideia de um discurso que se lhes adeque. Tudo aquilo que constituiu a verdade e a falsidade para os povos e gerações que se foram sucedendo ao longo de milénios na terra – diferenças de língua, de dialecto, de modos de vida, de carácter, de costumes, e até as particularidades físicas de cada pessoa – perdeu todo o sentido para eles e toda a capacidade de expressão e comunicação. Na pequena burguesia [planetária], as diversidades que marcaram a tragicomédia da história universal são agregadas e expostas através de uma vacuidade fantasmagórica.” (Agamben, 62-63).
A este propósito, também Bill Readings, no The University in Ruins, de 1997, discorre sobre o agudo problema da desreferencialização da cultura que afecta actualmente a humanidade e cujas implicações sobre a ideia de Universidade ele vê como “enormous”, no sentido em que tal desreferencialização, e a associada decadência do estado-nação, destruiu a ligação ideológica íntima entre a universidade e a cultura nacional, sua razão de ser desde Humboldt até ao final da guerra fria.
O diagnóstico de Bill Readings é de grande clarividência. Como académico inglês da área dos estudos culturais, ensinando numa universidade canadiana (Montréal), ele encontrava-se em boa posição para avaliar o processo de transformação do conceito e funcionamento da universidade, tal como foi imaginada e desenvolvida na Europa, através da adopção do modelo empresarial que vingou no Estados Unidos da América e agora se expande mundialmente. A universidade como pilar cultural do estado-nação desmoronou-se com a crise deste face aos processos económicos, políticos e comunicacionais da globalização. Embora Bill Readings não fale propriamente nestes termos – até porque ele julga possível encontrar vias pedagógicas e ontológicas para que os académicos possam sobreviver entre as ruínas da academia -, poderíamos dizer que a universidade, enquanto produtora de sentido (por ilusório que tal actividade tivesse sido ao longo dos séculos), morreu.
Desaparecida a sua razão de ser, enquanto suporte ideológico do estado-nação, e perdidos os pressupostos que justificavam o seu generoso financiamento estatal, a universidade viu nascer do seu interior – como a Tenente Ripley do filme Alien 4, ou os companheiros de MacCready no The Thing – um dispositivo empresarial assente no princípio do estudante-cliente, na precarização do emprego académico, e na mercantilização do conhecimento e da investigação. O centro decisor da universidade deixou então de ser o corpo académico e a relação docentes-discentes para se deslocar para a função do administrador que, sendo ele a súmula do pequeno-burguês planetário, reinventou a de Universidade de acordo com os princípios do que Bill Readings designa ironicamente a “ideologia da excelência” – uma ideologia vazia de objecto e portanto apta a tudo canibalizar (do ponto de vista do gestor, a excelência da universidade não se distingue da excelência de um parque de estacionamento, por exemplo).
Nesta perspectiva, a busca de excelência, a obsessão da avaliação e dos rankings comparativos (confundindo convenientemente responsabilização, ou accountability, com contabilidade, ou accounting), a compactação dos tempos de aprendizagem, e sobretudo a suprema falácia que é a utilitarização do ensino em função dos requisitos do mercado de emprego, não passam então de dispositivos discursivos e políticos com que as administrações universitárias se vêm dotando para, enquanto empresas capitalistas num mercado globalizado, competir entre si numa desenfreada corrida sem critérios nem ideais.
Morta portanto a universidade, o seu nome e património foi sujeito a uma OPA empresarial. As empresas que se estão agora a implantar por todo o mundo, e em Portugal também, apropriaram-se abusivamente do título de “universidade” por motivos de pura estratégia de marketing. E esta evidência só não é reconhecida pelos académicos porque estes, tal como as células periféricas de um corpo em decomposição após a morte cerebral, ainda não foram devidamente informados da ocorrência. Nem seria esse o interesse ou sequer a função do Alien.
Etiquetas: MJR
3 Comments:
Pois... A excelência intransitiva, a eficácia intransitiva, a qualidade intransitiva que não é mais do que a conformidade com um caderno de encargos... Conhecemos isto tudo de gingeira. E não se pode exterminá-las?
Tal como a candidatura de Helena Roseta (e não só essa), a expressão pessoal do oportunismo aplicado ao universo decadente da política, tal como antes da "arquitectura"... um exemplo perfeito da aplicação da estratégia do vago-indefinido pós-moderno à prossecução de ambições pessoais por um "big bag of wind".
eu chamo-me Alberto Castro Nunes mas o google só me atribui dois nomes
Enviar um comentário
<< Home