PASSADEIRAS PARA QUÊ?
Por Alice Vieira
POR DUAS VEZES ia sendo hoje atropelada.
Eu, que me gabo tanto de ser uma peã exemplar, que procuro sempre as passadeiras, que olho para a esquerda, para a direita, para cima e para baixo antes de atravessar, que respeito todos os semáforos (correndo o risco de às vezes me perguntarem se por acaso eu estou à espera que passe o carro que acabou de sair do Bombarral...), que até ajudo as velhinhas a atravessar o Rossio — eu, repito, ia sendo atropelada por duas vezes esta tarde.
Nos idos do PREC, lembro-me de ouvir o saudoso almirante Pinheiro de Azevedo exclamar um dia, à saída de uma Assembleia da República por algum tempo cercada, “eu não gosto de ser sequestrado, que é que querem, é uma coisa que me chateia!” Pois eu também não gosto de ser atropelada, que é que querem, é uma coisa que me chateia!
E das duas vezes eu ia, pacatamente, legalmente, a atravessar uma rua na passadeira de peões.
Da primeira vez apanhei tal susto (ó gente, o carro passou tão rente às minhas pernas, mas tão rente, que até me julguei no meio de uma prodigiosa “chicuelina” em qualquer arena deste mundo, e era capaz de jurar que até senti o bafo do boi e tudo...) que nem consegui abrir a boca.
Voltei para o passeio e ali fiquei parada, as pernas a tremer, o coração a bate, e eu a pensar que era urgente fazer testamento, porque uma pessoa nunca sabe o que lhe pode acontecer de um momento para o outro e, lá diz a outra, estar morto é o contrário de estar vivo.
A segunda vez parecia tirada a papel químico. Apenas com uma ligeira diferença: talvez calejada pelo susto anterior, ainda tive voz para gritar “ó seu palhaço, então não vê que isto é uma passadeira?!”
Eis senão quando o condutor abranda, encosta ao passeio, baixa o vidro da janela, atira a cabeça de lá de dentro e berra:
“Isto é o quê??”
E eu, cheia de paciência, as pernas ainda a tremer:
“Uma passadeira! Não vê que estou numa passadeira de peões?”
Ao que ele, encolhendo os ombros, respondeu apenas:
“E que tenho eu a ver com isso?”
E arrancou de novo, certamente muito contente consigo próprio, por ter sido tão educado com uma desprezível não-motorizada que se lhe atravessara no caminho...
E arrancou de novo, certamente muito contente consigo próprio, por ter sido tão educado com uma desprezível não-motorizada que se lhe atravessara no caminho...
No passeio em frente, um polícia olhou para mim e riu-se — continuando na sua nobre missão de autuar carros mal estacionados.
«JN» de 24 de Junho de 2007
Etiquetas: AV
3 Comments:
Gostei de uma coisa neste post: o polícia (devia ser daqueles da velha guarda, de grandes bigodes e barriga proeminente, não?) a rir-se. E o que queria que ele fizesse? Que tirasse a matrícula do automóvel? Isso só lhe ia dar chatices e ele não estava ali para isso, certamente. Também, quem é que a manda andar a pé e atravessar em passadeiras?
PS - A passadeira já estava pintada de fresco, ou o Dr. António Costa ainda não mandou pintar essa?
Sorry but... em Portugal passadeira é como arguido... é, mas não serve para nada, verdade? Sorry...
Infelizmente existe muita falta de civismo neste país.
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