OS DEUSES DA ACRÓPOLE
Por Alice Vieira
EM 1979 eu tinha acabado de publicar o meu primeiro livro. Os meus dois filhos eram pequenos, tinham-me ajudado muito a escrevê-lo, e eu tinha prometido que, em paga, os levaria à Grécia, país com que ambos sonhavam, embalados pelas histórias da mitologia que o pai lhes contava antes de adormecerem. Deuses e heróis misturavam-se nas suas cabeças, e todos viviam felizes entre as pedras da Acrópole.
Aterrámos em Atenas no meio de um mês de Dezembro claríssimo e de uma aragem quase morna, época baixa, a cidade sem turistas.
Todos os dias subíamos à Acrópole. Eu, um filho em cada mão - e os deuses pairando sobre as nossas cabeças. O pai ficara em casa, mas estava sempre presente nas histórias que íamos relembrando à medida que subíamos - e como aquilo custava a subir...
Lá em cima estava Teresa à nossa espera. Teresa, a guia mais extraordinária que alguma vez encontrei na minha vida. Chamava-os assim que nos via chegar (depois de, logo no primeiro dia, lhes ter explicado que tinham ambos nomes de origem grega), e lá ficávamos, passeando entre as colunas do Parténon, as pedras e o passado, com a voz de Teresa, no seu espanhol pausado para que eles a entendessem, inventando sempre novas aventuras, colocando naquele cenário os heróis que eles conheciam das histórias que ouviam contar. Sem mais turistas pela frente, Teresa dedicou-se-lhes em exclusividade durante toda a semana. Foi pela boca de Teresa que eles tiveram a primeira lição de história antiga: “sabem quem foi Péricles?” Sentados sobre aquelas pedras, ali ficaram a ouvir coisas que nunca mais esqueceram.
Claro que isto foi na pré-história, quando ainda se podia passear livremente pela Acrópole…Pouco tempo depois veio a (compreensível) proibição e os turistas passaram a ter de ficar muito longe, contentando-se em lançar os olhos lá para o alto da colina.
Leio agora nos jornais que enormes guindastes de lá levaram, pelos ares, blocos de mármore de não sei quantas toneladas, esculturas dos frisos e muitos outros motivos decorativos, num total, dizem, de cerca de quatro mil peças. Não, não é um roubo, como quando Lord Elgin levou tudo para o Museu Britânico (com a voz rouca de Melina Mercouri a reclamar até ao fim da sua vida…) Desta vez é tudo legal (o destino é o Museu da Acrópole, a inaugurar em 2008), e por uma boa causa: a protecção das obras de arte, que assim ficarão a salvo dos rigores atmosféricos e das marcas dos turistas.
Tudo certo.Se calhar não poderia ser de outra maneira. Mas cá para mim ver um friso do Parténon numa vitrine de uma sala asséptica de um museu não tem o mesmo sentido. Aquelas estátuas, aquelas pedras nasceram num determinado lugar e aí foram testemunhas de séculos, guerras, loucuras, vidas, mortes. Tudo isso deixa sedimentos que o ar condicionado das salas pode proteger - mas torna completamente gelado.
Por aquelas salas irão agora passar os turistas.
Só os deuses ficarão cá fora, sem entenderem o que foi que fizeram das suas moradas.
«JN» de 28 de Outubro de 2007
Etiquetas: AV
1 Comments:
Cara Alice,
As minhas filhas (e este é um plural de três) leram muitos dos seus livros enquanto cresciam. Considero um previlégio ter agora este ensejo de ler e comentar o seu post.
Por formação, tenho uma compreensão alargada do que diz. O comentário singelo que me veio à mente logo foi este: já nem os edifícios podem morrer em paz!
A minha visão de património é bem distinta desta fúria museológica embalsamante. Os povos que amam e vivem a sua cultura pensam como os japoneses: o verdadeiro património não são os objectos, mas o saber construí-los. O verdadeiro património é o saber transmitido, vivo, de geração em geração.
Cumprimentos,
zedeportugal
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