5.11.07

UMA TRAGÉDIA À ESPERA DE ACONTECER

Por Manuel João Ramos


“Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”
Chico Buarque de Holanda

FRENTE À ESTAÇÃO FLUVIAL do Terreiro do Paço, deu-se há três dias um atropelamento trágico e revoltante.
Três pessoas foram varridas por uma automobilista que fazia o que muitos outros fazem, todos os dias, em muitos locais de Lisboa: circulava em excesso de velocidade. Aparentemente, não acusava álcool no sangue, nem traço de drogas. O carro descontrolou-se, porque talvez ela se tenha distraído por um momento: acendia um cigarro, ligava o rádio, mudava o CD. Ou talvez viesse simplesmente a falar ao telemóvel. Como muitos outros automobilistas fazem. Todos os dias.
As três vítimas – Filipa, Neuza e Rufina – estavam no local errado, à hora errada? Sim, porque o local está todo errado, e porque a hora era a do fim do divertimento de uns e do princípio do trabalho para outros. O lusco-fusco...
Aqui – de forma brutal e chocante – confrontaram-se porventura dois Portugais: o dos automóveis e das vias rápidas, do conforto e dos sonhos das frentes ribeirinhas e dos divertimentos nocturnos; e o dos trabalhadores desprotegidos que, em silêncio humilde, calcorreiam as ruas, usam os transportes públicos, e procuram sobreviver numa cidade que os ignora, hostiliza, espezinha.
Há uma quarta vítima – aquela que é simultaneamente a autora material do homicídio. A automobilista. A tal que fazia aquilo que muitos – muitos, mesmo – fazem todos os dias. Circulava em excesso de velocidade. Vinha por uma via rápida, a Av. Infante Dom Henrique, que repentinamente se transforma – neste local – em lugar pitoresco, histórico, patrimonial, e, também, espaço de passagem da massa anónima que vem da outra margem do rio limpar os escritórios afluentes da Avenida da Liberdade.
A cidade dos carros burgueses e das vias rápidas está separada por um véu da Lisboa dos peões pobres e das ruas perigosas. Por vezes esse véu rompe-se, e os mundos encontram-se. E quando se encontram, é frequente que o resultado seja a violação dos direitos mais fundamentais dos cidadãos que andam a pé: o direito à segurança, o direito à dignidade, e o direito à vida.
A tragédia que ali ocorreu foi, afinal, apenas mais um rompimento desse véu. Como o vereador do trânsito da Câmara de Lisboa lembrou já, o véu vai ser reparado, e tudo será como dantes – com mais umas lombas, mais uns segundos nos semáforos, mais um lancil e uns metros de calçada.
A tragédia maior que nos afecta a todos, e não apenas às vítimas directas, é termos olhado para o horror desta segregação, e para a nossa fragilidade fundamental de seres humanos quando não estamos protegidos por uma armadura automóvel.
Uma familiar das vítimas desfaleceu quando viu os corpos desmembrados; a autora material do crime ficou em estado de choque. Mas há um parceiro silencioso neste crime: é aquele que achou que este local fazia sentido, que não está errado, e que, por omissão, criou as condições do homicídio.
O parceiro silencioso deste crime licenciou espaços de diversão nocturnos e fez com que uma via rápida ribeirinha desembocasse nas obras mais vergonhosas do regime, e numa das passadeiras mais tenebrosas de Portugal. Deixou que o pavimento de alcatrão se deformasse, criou um falso refúgio de peões a meio de uma curva perigosa. E ficou à espera de que alguém caísse na armadilha.
Ficará de novo impune o parceiro silencioso deste crime?

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19 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Meu caro, compreendo até os motivos poéticos que o levaram a proferir semelhante afirmação, mas remeter à categoria de "peões pobres" e "massa anónima que vem da outra margem do rio limpar os escritórios afluentes da Avenida da Liberdade", por um lado, todas as pessoas que vêm diariamente da Margem Sul para Lisboa e, por outro, todas as pessoas que andam de transportes públicos, assemelha-se um pouco a uma tirada "à Mario Lino", não lhe parece?

O problema da segurança nas estradas é igualmente mau, independentemente das condições socio-económicas das vítimas e dos causadores de acidentes. Até porque, nessa referida zona, também transitam muitos peões oriundos de cascais, que preferem apanhar o combóio ao trânsito da A5... será que também vêm limpar escritórios?

5 de novembro de 2007 às 10:26  
Anonymous Anónimo said...

Manuel João Ramos "imaginou" muitas causas para o acidente.
Fez uma crónica poética, mais valia que se tivese cingido aos factos.
Já agora deixo-lhe um pedido:
-vá até lá por volta das cinco da tarde e veja o que os peões fazem.

5 de novembro de 2007 às 10:51  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

O ensino da condução

QUANDO, EM 1973, eu obtive a minha carta de condução, fui dado como apto a conduzir - mesmo um Ferrari! - apesar de nunca ter guiado a mais de 40km/h, nem com chuva, nem de noite, nem com piso oleoso, nem em autoestrada... - o mesmo sucedendo, trinta anos depois!, com o meu filho.

Ora, quem acompanha estes assuntos, sabe bem que Carlos Barbosa, Presidente do ACP, tem feito algumas intervenções críticas à apatia dos sucessivos governos face a esse estado de coisas - em boa parte responsável pelo que, a todo o momento, vemos nas estradas do país.

A isso, e em carta publicada no PÚBLICO no dia 24 p.p, o Secretário de Estado da Administração Interna, Ascenso Simões, responde que, pelo menos na parte que ao actual Governo toca, Carlos Barbosa não tem razão nenhuma; e, como argumento a favor do que diz, informa que «...está em discussão pública um novo Regime Jurídico do Ensino de Condução».

Pois sim senhor, aí está uma actuação concreta e CINCO ESTRELAS.

Só é pena que não restitua a vida a uma tia minha e a um dos meus melhores amigos - ambos atropelados e mortos, recentemente e com poucos meses de intervalo, por condutores a quem foi ministrada uma formação semelhante àquela que me deram.

CMR/«PÚBLICO» de 27 Abr 07

5 de novembro de 2007 às 11:02  
Blogger Manuel João Ramos said...

Caro Senhor Anónimo,

Estarei hoje no local, a partir das 16.30, a prestar homenagem às vítimas do atropelamento. E vou querer ver o que os cidadãos, peões e automobilistas, vão fazer.

Permita-me, já agora, citar-lhe o preâmbulo da Carta dos Direitos dos Peões, aprovada pela CML:

"Ao contrário de um automobilista ou motociclista, um peão não precisa de passar um exame para ter o direito a deslocar-se. Por isso, os seus deveres, direitos e responsabilidades não são comparáveis aos de quem conduz veículos.

Ao contrário de um condutor, a condição de cego, de deficiente motor ou mental, de criança ou idoso, não é impedimento legal ou ético do direito a ser peão.

Por isso, a um peão não são exigíveis os mesmos deveres e responsabilidades que a um automobilista ou motociclista, mas são atribuíveis mais direitos, designadamente aqueles que permitem salvaguardar a sua integridade física e psíquica, susceptível de ser posta em causa pelo potencial agressor dos veículos automóveis.

O peão tem também mais direitos perante o Estado e a sociedade em função do seu estatuto de:

a) Universalidade – todos os cidadãos o são.

b) Fragilidade – ser fisicamente desprotegido no meio potencialmente hostil, que é o das relações rodoviárias.

Qualquer peão tem o direito cívico de circular na via pública sem correr o risco de ser atropelado, de ver a sua integridade física ameaçada, de sofrer riscos derivados da poluição ambiental, de ver reduzida a sua capacidade de mobilidade e acessibilidade. Para que esta afirmação seja verdadeira, há uma série de medidas, relacionadas com problemas de trânsito em meio urbano, que devem ser cumpridas.

Reconhecendo que andar a pé é uma alternativa de transporte gratificante e saudável, não só do ponto de vista ambiental, mas também social e económico, urge devolver a cidade ao cidadão, nomeadamente através da criação de uma rede pedonal contínua dentro da cidade / localidade em que reside, invertendo a situação de domínio automóvel que actualmente existe."

Lembro, já agora, que a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou uma recomendação à CML no mês passado para que fossem urgentemente introduzidas medidas de acalmia de tráfego e que a velocidade automóvel se tornasse compatível com a presença de peões.

5 de novembro de 2007 às 12:02  
Anonymous Anónimo said...

Notícia de hoje:

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Acidentes no fim-de-semana prolongado causaram 13 mortos e 24 feridos graves

Treze pessoas morreram nas estradas portuguesas entre quinta-feira e domingo, em consequência de 900 acidentes que causaram ainda 24 feridos graves, segundo dados da sinistralidade divulgados na página da GNR na Internet.

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Comentário:

Um dos grandes males tem a ver, precisamente, com a designação (desculpabilizante) de "acidente" a estas ocorrências.

O facto de serem quase todas evitáveis, devia levar a C. Social a usar outros termos, como "desastres", "sinistros" - ou mesmo, quando for o caso, "crimes rodoviários" (com a palavra "presumível" atrás, se quiserem)

O certo é que morrem mais portugueses nas nossas ruas e estradas do que americanos no Iraque. E, à parte algumas pessoas (sempre as mesmas), ninguém parece preocupar-se verdadeiramente com isso.

5 de novembro de 2007 às 12:35  
Anonymous Anónimo said...

Além dos direitos dos peões há, também, os seus deveres, que estão bem escarrapachados no Código da Estrada e que, a serem respeitados, também poupariam muitas vidas. Por isso há multas para quem, podendo fazê-lo, não atravesse nos locais e no tempo certos (*).

No entanto, o que está em causa neste caso do Terreiro do Paço está muito para além de um simples atropelamentozeco de um peão descuidado: pelo que a comunicação social descreve, o caso tem todo o aspecto de se tratar de um crime rodoviário.

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(*) O artigo 101.º do Código da Estrada define os cuidados que os peões devem ter antes de atravessarem a faixa de faixa de rodagem verificar a distância que os separa dos veículos e da velocidade a que seguem; passar o mais rapidamente possível e em linha recta e fazê-lo nas passagens especialmente sinalizadas para o efeito. Infracção com coima entre 10 e 50 euros. Atravessar na passadeira sem acautelar as condições de segurança é uma infracção leve, já que os peões não podem cometer infracções graves ou muito graves (sancionadas com inibição de conduzir além da coima).
O valor da multa varia entre os dez e os 50 euros e é igual ao previsto para atravessar fora da passadeira e inferior ao que é devido por passar com sinal vermelho (entre os cinco e os 25 euros).

Ed

5 de novembro de 2007 às 13:24  
Anonymous Anónimo said...

Este artigo 101.º do C. E. é mais uma daquelas leis da treta que ninguém cumpre nem faz cumprir:

Desde o legislador (que o pariu) até à polícia (que não multa ninguém), passando pelas vítimas, todos andam satisfeitos... até lhes calhar a eles.

M.

5 de novembro de 2007 às 13:52  
Anonymous Anónimo said...

Não se conclua do que atrás digo que o maior culpado é o peão.

Digo é que também a ele cumpre fazer a sua parte.

Quanto aos criminosos da estrada, o lugar deles é na cadeia - evidentemente.

Ed

5 de novembro de 2007 às 13:55  
Anonymous Anónimo said...

Todos culpados, todos inocentes,
continuarão os sobreviventes.
Bem vindos á selva.

5 de novembro de 2007 às 17:10  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Acabei de encontrar isto:

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In Portugal muss man mit 2,5 m/Sekunde bei Grün über die Straße rennen
4 hours ago
und so kommt es eben halt, wenn man lahm oder fußkrank ist, daß man das andere Straßenufer zu spät erreicht und.... ein Auto mit bloß 80 km/h kommt mit 22,2 meter/pro Sekunde näher : wie neulich in Lissabon sorumba'tico: UMA TRAGEDIA A ESPERA DE ACONTECER (ein sehr fairer Kommentar!) die Verantwortlichen wissen nicht was sie machen sollen: Es fehlen Bücher mit Vorschriften oder Verhaltensregeln !

5 de novembro de 2007 às 20:43  
Anonymous Anónimo said...

Manuel João Ramos said...

Muito obrigado.
Estive agora a vê-lo na TV que infelizmente lhe trocou o nome.
Ora é o mesmo que se passa aqui.
Os condutores são por si elevados á categoria de assassinos mas o peão não respeita regra nenhuma.
Outro dia interpelei um casal que se deslocava na rua com o passeio ao lado.
Responderam-me que eu é que devia ter atenção a eles.
Em Tempo: Um dos meus filhos faleceu num acidente de viação.

5 de novembro de 2007 às 20:43  
Anonymous Anónimo said...

Às 21h30 de hoje, há 9 pessoas encarceradas dentro do autocarro em Castelo Branco, 12 mortos confirmados, mais de 30 feridos.

5 de novembro de 2007 às 21:27  
Blogger lino said...

Foi tão bom o tempo em que neste blogue escrevia apenas o Carlos Medina Ribeiro.

5 de novembro de 2007 às 21:47  
Blogger Luis Correia said...

"Vítima de seis anos sofreu três traumatismos graves
Morreu a criança que foi atropelada hoje em Tires
05.11.2007 - 17h56 PUBLICO.PT"

http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1309752&idCanal=76

5 de novembro de 2007 às 21:57  
Anonymous Anónimo said...

caro senhor lino, um blog é comunicação e, nos dias que correm a pouca sem censura que nos resta. Fica-se a saber o que seria deste se dependesse de si.

5 de novembro de 2007 às 23:05  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Anónimo das 23h05m:

Lino é um velho amigo do SORUMBÁTICO, um blogue que começou em Janeiro de 2005, só comigo.

Pouco depois, e durante muito tempo, teve apenas mais 3 "contribuidores" (CPCoelho, NCrato e JLetria). Tinha um estilo muito próprio ("familiar"?), que durou bastante tempo.

Depois, desatou a crescer e mudou (Muito? Demasiado?)

Se calhar, Lino quer (apenas) dizer que lhe agradava mais a primeira fase.
Já ouvi essa opinião a outras pessoas - tal como a oposta...

É bom saber o que os amigos pensam!

5 de novembro de 2007 às 23:47  
Blogger bananoide said...

Muito se pode falar e falar e falar sobre a morte nas estradas. Os méritos e deméritos do texto em apreciação dependem da opinião de cada um. Mas isso não tira pertinência ao tema nem ao texto.

Num dia em que mais 12 pessoas morrem num só acidente pergunto: o que faz cada um de nós activamente para acabar com isto? Para sensibilizar os outros? Ao menos Manuel João Ramos faz alguma coisa. É preciso que nos aconteça também uma tragédia familiar para que cada um de nós se mexa?

Apesar da distância geográfica, estou solidário com as acções da ACA-M. São para o bem comum, não sei onde pode estar a polémica.

Um abraço

6 de novembro de 2007 às 00:06  
Blogger Ant.º das Neves Castanho said...

Algo terá mesmo que mudar, antes que nos aconteça a nós: sermos mortos por um carro, ou matarmos alguém com o nosso!


De todas as muitas causas dos acidentes rodoviários, que por vezes podem mesmo configurar crimes, quando originados por negligência, há que salientar hoje aquela que resulta da actuação dos responsáveis pelas infra-estruturas viárias: sem uma nova legislação que responsabilize, sobretudo, as Câmaras, nunca estas se preocuparão em resolver este gravíssimo problema!

6 de novembro de 2007 às 15:10  
Blogger lino said...

Entendeu-me perfeitamente, amigo Carlos. De facto, gostava bem mais da primeira fase, só consigo ou em quarteto, e foi apenas isso que quis dizer. Ainda bem que não conheço "anónimos"!
Abraço.

7 de novembro de 2007 às 19:28  

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