17.12.07

Armas de arremesso

Por António Barreto
TAL COMO OUTRAS ACTIVIDADES HUMANAS, a política tem as suas regras. Assim como tradições, hábitos, leis e rotinas. Quase tudo se sabe e conhece. É difícil haver surpresas. Mesmo assim, há ilusões e as pessoas, muitas pessoas, acreditam ou vivem nelas. Os políticos falam verdade e mentem indiferentemente. Realizam o prometido ou não, sem qualquer dúvida ou remorso. Defendem, sucessiva e metodicamente, o interesse geral, o partidário e o pessoal, sem nunca deixar de garantir que se trata do interesse nacional. Procuram sobretudo os votos e tentam conquistar, manter e renovar o poder, afirmando sempre que o essencial é o bem-estar da população. Acusam os adversários, ora no poder, ora na oposição, de tudo quanto fazem eles próprios, exibindo sempre a pureza original dos servidores do público. Com os impostos e o emprego na função pública, fazem quase sempre o contrário do que disseram, acusando-se mutuamente de mentira e hipocrisia. Demitem impiedosamente os adversários e até os amigos, em nome da transparência e da legitimidade democrática, sem esquecer de denunciar o despotismo dos opositores quando fazem exactamente o mesmo. Em nome da modernidade e da eficácia, favorecem as empresas, os capitalistas e as associações civis que os ajudam e prejudicam os que a tal se negam, estando sempre disponíveis para, na oposição, expor a promiscuidade dos adversários. No poder, interferem discretamente na justiça e na investigação policial, actuação que, na oposição, desvendam prontamente. No governo, condicionam e tentam manipular a informação, mas, na oposição, proclamam-se os mais inocentes defensores da liberdade de expressão e do pluralismo.
TUDO ISTO É SABIDO. Mesmo assim, os políticos persistem no seu comportamento e o público vai acreditando. A ilusão e o interesse são as regras deste jogo aparentemente complexo. Como no amor, na economia e no futebol, o facto de haver regras e de se conhecerem os hábitos não impede que se viva na ilusão e se mantenha um comportamento dúplice. No amor, é frequente interditar ao parceiro aquilo que se permite a si próprio. E acreditam na sedução mesmo os que conhecem as suas regras. Na economia, ganhar e vencer são os únicos critérios válidos, enquanto roubar ou trair só são criticáveis se foram vistos. Com o dinheiro, a moral é quase sempre para uso alheio. No futebol, fracturar a perna de um adversário temível só é condenável se não for bem feito. São estranhos estes comportamentos. Conhecem-se as regras, percebem-se os interesses, sabe-se que é ilusão e tem-se a exacta consciência da encenação. Mesmo assim, vive-se como se estivéssemos diante de factos genuínos e situações novas. Faz pensar naqueles filmes que vimos dezenas de vezes e que guardam toda a sua capacidade de nos comover e até talvez de surpreender. Mas a política não é cinema. As emoções da arte não são comparáveis aos interesses da política.
TERMINADA A PRESIDÊNCIA PORTUGUESA da União, atiraram-se imediatamente as armas de arremesso. Entre outras, o referendo e a remodelação. O primeiro é já usual. Nenhum dos grandes partidos acredita nele, nem no seu contributo para a democracia. Só se lembram dele quando pretendem agredir ou incomodar o adversário. Sócrates e o PS garantiram, durante anos, que se faria referendo europeu. A direcção nacional do PSD prometeu, por unanimidade, realizar um referendo. Agora que não vêem nenhuma vantagem puramente partidária, ambos negam o que garantiram. Para o que recorrem aos conhecidos argumentos defensivos. Os resultados são previsíveis. O referendo é tão democrático quanto o parlamento. Não é uma constituição, é um tratado. Este tratado é igual ao anterior. Um referendo é caro. A participação dos cidadãos é reduzida. Os outros parceiros europeus também não fazem. Não se pode pôr em causa a eficácia da União. Não os choca o facto de ser evidente que não há referendo porque não interessa directamente a um partido. Nem os incomoda saber-se que a Nomenclatura europeia combinou não o realizar e força quem tem dúvidas. Aos dois grandes partidos é-lhes totalmente alheia qualquer preocupação relativa à participação política ou à identificação dos cidadãos com os ideais europeus. Interessa-lhes, isso sim, o que pode ajudar o seu próprio partido e prejudicar o adversário.
QUANTO À REMODELAÇÃO, é o habitual. Os partidos da oposição não querem que o governo a faça, pois seria sinal de que ainda tem energia. Para tal conseguir, dizem depressa que é necessária, na esperança de a ver recusada pelo Primeiro-ministro que não quer remodelar sob pressão. Caso se faça, os partidos da oposição já sabem exactamente o que dizer: “é insuficiente, foi só cosmética, o essencial não foi feito”. É sempre assim. Sempre foi assim. E assim será. Os socialistas fizeram-no sempre. Os social-democratas também. Tal como os outros. Sabemos isso. Eles sabem isso. Mesmo assim, o jogo de espelhos continua. A ilusão vigora. Muitos acreditam nela. O mais provável é que não haja remodelação. Ou simplesmente uma substituição casual. Nenhum ministro faz sombra ao Primeiro. Nenhum tem peso suficiente, nem sequer para o disparate, para inquietar o Primeiro. Todas as políticas são suas. Como exclusivamente suas são as inaugurações, as distribuições, os aumentos e os subsídios. Nada disto impede que a remodelação ocupe primeiras páginas e telejornais durante uns tempos. A ilusão funciona assim. É este o jogo de espelhos. É contra os espelhos que se atiram pedradas.
«Retrato da Semana» - «Público» de 16 de Dezembro de 2007

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10 Comments:

Blogger Sepúlveda said...

"Acusam os adversários, ora no poder, ora na oposição, de tudo quanto fazem eles próprios, exibindo sempre a pureza original dos servidores do público." Não é de tudo que os acusam. Na oposição só os acusam dessas coisas quando vai ser mais difícil que continuem a fazê-lo enquanto estão na oposição. Se todos puderem fazê-lo, então nunca se queixam.

17 de dezembro de 2007 às 22:21  
Blogger Jack said...

“António, é mais fácil um asno entrar na Assembleia, que um político escutar os seus sermões”. Quando acabei de ler este texto, pela terceira vez consecutiva, passei algum tempo a pensar se devia, ou não, comentar os temas que aqui foram apresentados. A análise do António Barreto, à situação actual, despoletou em mim um sentimento de revolta apenas dominado pela impotência de nada poder fazer para alterar o rumo da história. Os “trauliteiros” que nos governam, e os “saltimbancos” que se lhe opõem, em conjugação de esforços, têm conseguido transformar de tal forma esta sociedade que, apaticamente, caminha para um futuro incerto, sem nada dizer, sem nada protestar. Uns, levam na mão as rosas murchas e cheias de espinhos, os outros, tristes e desnorteados, levam no bolso uma laranja ácida como prova de que também já andaram a passear na quinta.

18 de dezembro de 2007 às 00:09  
Blogger Ti said...

A mim parece-me que uma das coisas que podemos fazer é parar com as críticas gratuitas, destrutivas e sem destinatário concreto. A lenga-lenga de dizer que os politicos são todos horríveis, e os males do mundo são todos por causa da sua suposta incompetência, além de cansativa, é injusta e inútil.
Concordo plenamente com críticas concretas, com o intuito de resolver problemas concretos, ao invés de criticas disparadas aleatoriamente.
Mesmo que todos os politicos sejam corruptos e horriveis excepto um; esse, por si só, já justifica o decoro ao fazer afirmações generalistas - e por isso injustas.

18 de dezembro de 2007 às 09:20  
Blogger Contacte-nos said...

Nós os injustiçados, nós os oprimidos, nós que tudo percebemos...
Foi a vossa distinta geração que fez o Portugal de hoje, se os adultos de hoje, as crianças do baby boom pós 74, hoje com 30 aninhos pudessem mudar alguma coisa...mas não podemos, voçês não saiem daí, dão-nos desgraça na oposição, ilusões no governo e críticas ferozes como "opinion makers"...a demagogia tem limites, e eu sinceramente cada vez estou mais farto de tanta sapiência insapiente.

18 de dezembro de 2007 às 12:03  
Anonymous Anónimo said...

É claro que tudo o que sucede hoje tem causas e antecedentes, mas as palavras "foi a vossa geração que (...)" são mais velhas do que a Sé. A própria geração agora acusada disse a mesma da anterior, e por aí fora até ao antropopitecus.

Trata-se de uma filosofia de vida desresponsabilizadora, que faz o seu curso, especialmente entre quem gosta de se sentir infantilizado:

Se se chumba, a culpa é do professor;
Se se é toxicodependente, a culpa é do traficante;
Se se rouba, a culpa é das más companhias.

E por aí fora, num assacar de responsabilidades a todos menos a nós mesmos.

18 de dezembro de 2007 às 13:13  
Blogger Jack said...

Claro que a culpa não é dos "jovens" dos 30, 20 ou menos. Esses, para mim, são os menos culpados pela apatia que se criou e, pela incapacidade de mudar seja o que for. A culpa é das gerações anteriores(!). Não há dúvida que foram estas que praticaram o ilícito, por negligência, é certo, mas foram elas. Com a sua conduta, proporcionaram aos seus descendentes direitos e bem-estar, regalias que provocaram nesses jovens na casa dos 30, a incapacidade de mudar seja o que for. Veja-se os anos 70, quando os jovens defendiam causas, protestavam, é certo que por vezes exageradamente mas, estavam presentes na política, no parlamento, nos governos, etc. Hoje, a maioria dos jovens dessa idade, vejo-os falar de “play station”, telemóveis, “shots”, e dão uns grunhidos quando se lhes pergunta alguma coisa. Para finalizar, não me sinto culpado pela situação actual. Claro que acreditei num 25 de Abril, tive os meus sonhos, próprios de quem tinha a minha idade. Mas, estou a criar descendentes que felizmente sabem ler, sabem pensar e sabem criticar. Lamento, como sou de uma geração que se preocupava com o outro, ver a maioria dos seus colegas chegarem ao 10º ano sem nunca terem lido um livro. Mas como hoje se diz, nesta era da “esquerda moderna”, os pais deles têm a minha idade, que se “desenrasquem”.

18 de dezembro de 2007 às 16:04  
Blogger Nortada said...

Achei uma análise, como não podia deixar de ser, esclarecida da realidade de hoje e válida para o geral das democracias ocidentais, todos os sintomas apresentados como é evidente, acentuam-se numa relação inversamente proporcional ao nível de educação e civilidade dos eleitores.
Quanto mais baixo o poder de discernimento do eleitorado mais obrigado fica o político, no quadro actual, de com verborreia ardilosa (lembra alguém?), encantar e deleitar o tosco “Zé povinho”. O político se acredita em si, acha honestamente que fará melhor do que o seu adversário, acha que será melhor governante do que o seu adversário e como tal, no actual quadro, pressupõe e julgo que até com uma certa justeza que o delito se justifica pelo bem da nação.
O processo será muito idêntico ao fantasioso que é, deixar aos empresários a responsabilidade de assumirem comportamentos ecologicamente responsáveis pela ética que devem ter.
Um empresário de tinturaria que muito eticamente instale todos os filtros e aparatos necessários ao equilíbrio ecológico é o futuro ex-patrão de futuros desempregados. As empresas suas vizinhas não instalaram, como tal oferecem aos mesmos clientes produtos iguais, a preços mais baixos, como tal terão ganhos em clientela, correspondentes às perdas do nosso empresário responsável, ao perder clientela, a competitividade baixa, e está estabelecida a espiral que acabará na massa falida.
Com os políticos, hoje acontece o mesmo, o eleitorado é que baliza a demência admitida e os perseguidores do poder se o querem, terão de aproveitar todo o terreno balizado.
Nunca de me deixo de lembrar de uma sondagem da UC, por altura do confronto Guterres/Durão em que a mesma sondagem dava o Guterres como mais honesto e o Durão como ganhador….quando no quadro actual a honestidade, integridade e frontalidade são relegados a planos inferiores, resultam sociedades, como tão bem caracterizou.

18 de dezembro de 2007 às 19:47  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Nortada,

A propósito de filtros:

Visitei, há uns 7 ou 8 anos, uma fábrica de sapatos perto do rio Lima, onde fui estudar o sistema de despoluição instalado.

Um funcionário mostrou-me tudo, nomeadamente o depósito onde, no fim do processo de despoluição, os resíduos tóxicos ficavam retidos.

«E depois o que é que lhes fazem?» - perguntei eu.

O indivíduo explicou-me, então, que à noite abriam uma válvula e aquilo ia tudo para o Lima...

18 de dezembro de 2007 às 19:56  
Blogger Contacte-nos said...

Nem por um só momento pensei em desresponsabilização ou "infantilização" da malta dos 30s...bem antes pelo contrário, é contra o péssimismo irredútivél de A.B e da sua geração que me insurjo; Insisto a olhar para o copo meio cheio quando os vultos (têm piada a palavra) da nossa cultura, eles sim os intervenientes activos do actual estado de coisas continuam de forma assustadoramente compulsiva a nos lembrar da desgraça que somos todos nós, como se de uma tribo a que eles são alheios se tratasse.
Se tanto descontentamento porque não criar modos de participação mais interveniente? A Democracia tambem tem processos construtivos, felizmente.
Mas devo ser eu na minha tenra idade que sou ingénuo.

19 de dezembro de 2007 às 13:09  
Blogger Ti said...

E para que serve culpar seja quem for?
É muito mais útil pensar soluções!

20 de dezembro de 2007 às 07:39  

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