3.2.08

A meio do rio, outra vez

Por Nuno Brederode Santos
SOB O TÍTULO "A meio do rio", escrevi aqui, faz quinze dias, um pequeno texto que ensaiava o precoce balanço de uma legislatura que vai em três quartos. Nele salientava o que ela leva já de justificativo e marcante. Assim, apontava o sucesso (provisório) no combate ao défice (que, por muito que dele discordemos, enquanto critério arbitrariamente tido por absoluto, nos é imposto - e corresponde a uma segunda tentativa, dado que a primeira, a dos dois governos anteriores, morreu na praia e obrigou-nos a voltar à estaca zero). Referia uma reforma da Segurança Social que, coisa invulgar no espaço europeu, respeitou os direitos adquiridos, mesmo que não tendo encontrado igual margem para todas as expectativas. No plano institucional, falava da reforma do Parlamento, cuja importância vimos testemunhando em imparável crescendo. E evocava a presidência portuguesa da EU. Em tudo isto, incorri numa omissão grave: o referendo, que se revelaria sem surpresa não vinculativo, à interrupção voluntária, mas condicionada, da gravidez. A enorme importância deste não residiu apenas no seu resultado, mas também no cuidado posto em descalçar por referendo o que outro referendo calçara, antes de restituir ao parlamento uma competência que podia ter sido dele desde o início - e que só assim ele pôde reassumir com redobrada legitimidade. Fica reposta a omissão.
Acrescentava, porém: por quê, então, os protestos (na rua, no interior, nas corporações)? E, recusando que se tratasse apenas de problemas de comunicação, dizia: "Creio que houve uma deficiente avaliação das congénitas resistências à mudança e um excesso (em que toda a oposição incorre) nas promessas. Há reformas que pedem já os sacrifícios mas ainda patinam, porque não eram compagináveis com o esforço de combate ao défice, não eram possíveis antes dele ou a par dele. Há medidas de mero apoio a esse combate que são dissimuladas em reformas.". Para depois concluir: "agora era o bom momento para mostrar ao país tudo isto. O que está feito e o que está atrasado e porquê, "recriando a quase cumplicidade que ele já ofereceu e que agora exige".
Será que a remodelação, que em bom rigor não chegou a sê-lo, é o pretexto e o marco para o fazer? Era interessante e corajoso que o fosse, até porque à alternativa - fácil - de uma arrancada meramente eleiçoeira faltariam grandeza, originalidade e eficácia: o exemplo dos governos anteriores aí está para o demonstrar. Reformar violenta sempre alguém, mas violentar gente demais requer a revolução que ninguém está disposto a fazer e ninguém está disposto a sofrer. Por isso, a ideia de "ceder ao povo" é peregrina: se são dele os interesses em jogo, o mandato político para a reforma tem de levar em conta (e medida) o que ele próprio traça como limite do suportável. Não se trata de confundir o povo com manifestantes de ocasião. Nem com os porta-vozes de interesses corporativos que falam sempre em nome do interesse geral, mas só falam quando está ameaçado o seu interesse particular. Nem com o tantas vezes inconsistente foguetório da retórica oposicionista, que crava os olhos no umbigo do Governo ao ponto de se esquecer do muito que vai mal no seu. Trata-se, sim, de uma sensibilidade, que o tecnocrata julga suprir pelas estatísticas e a que muito apropriadamente chamamos "política". Trata-se, por exemplo, de podermos estar certos de que novos esforços nas políticas sociais e no combate às desigualdades correspondem a uma ponderação que vem de trás, e não a improvisos tácticos para a gestão da conjuntura. Trata-se, por exemplo, de poder corrigir prováveis excessos no comportamento da máquina fiscal, sem voltar à aceitação social da evasão e à impunidade da fraude (que, convém lembrá-lo, foi o ponto de partida disto tudo). E trata-se, enfim, de confiar na razão das coisas, quando explicadas com paciência e feitas com transparência.
Um povo que barafusta e protesta, mesmo quando não tem razões para isso, não é um povo chato, é um povo livre. Livre e escaldado por meio século em que não pôde protestar quando as tinha. Um povo que escolhe mandatários e que, em boa hora, deixou de aceitar iluminados. O que já lá vai desta legislatura, se completado por esta atitude, chega e sobra para ir às urnas. Até porque o sucesso nestas, até por ser transitório, não restringe o sucesso da democracia.
«DN» de 3 de Fevereiro de 2008

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