1.2.08

O crucifixo da tia Alícia

ADORAVA IR LANCHAR a casa da minha tia Alícia. Patinava no corredor, jogava hóquei em patins com a bengala dela, bebia chocolate quente até me doer a barriga e, no regresso a casa, enquanto esperava o eléctrico no Largo do Carmo, enchia os pulmões de cheiro a cavalo, que, a partir do quartel da GNR, me dava a sensação de que as ruínas do convento eram despojos de batalha acabada de travar.
Eram poucas as vezes, no entanto, que ia àquele casarão pombalino, cheio de sombras, de rangidos e estalidos. Talvez por lá ir muito espaçadamente, ficaram gravados na minha memória todos os momentos que ali passei.
Tudo me era permitido por aquele anjo protector que sempre foi a minha tia. Recordo-me da tarde em que, numa jogada fulminante, entrei na área dos espanhóis e rematei, imparável, a «stickada» que deu a Portugal o golo da vitória no Campeonato do Mundo. Foi um estrépito enorme que acolheu aquela minha triangulação com Jesus Correia e Correia dos Santos. Em cacos, o bengaleiro de louça de Coimbra desfez-se, no tapete de Arraiolos.
- Deixem lá, coitadinho - dizia sempre a minha tia -, se ele não faz estas coisas agora, quando querem vocês que ele as faça?
Só a vi triste quando lhe deixei cair da janela das águas-furtadas, de onde tentava ver um par de pombos a acasalar, os binóculos prismáticos que tinham pertencido ao meu defunto tio Alfredo. Pesados, longos, negros e frios, os binóculos com que o meu tio se munia para assistir às regatas, despenharam-se nas pedrinhas da calçada, transformados em inúteis caleidoscópios a preto e branco e que, na queda, podiam, ter morto alguém.
- Pronto, não se fala mais nisso - dizia a minha tia -, isto são coisas que acontecem.
Mas não conseguia disfarçar a tristeza que devia sentir quando acariciou o corpo, frio e inútil, do instrumento que a velha criada fora apanhar à rua, trazendo-o na mão como um par de maracas, chá-chá-chá, abanando a cabeça e suspirando «Ai, menino, ai menino.»
A minha tia e a criada pareciam duas meninas, embora ligadas entre si por mais de quatro décadas de doenças e de mortes, de cautelas de penhor clandestinas, de encontros sub-reptícios e saídas furtivas, de ave-marias e padre-nossos em comum, a duas vozes, na penumbra do oratório.
O oratório era uma pequena antecâmara do quarto da minha tia. Tinha um enorme Cristo na cruz, quase em tamanho natural, e eu não resisti, um dia, a ir estudar-lhe as chagas das lanças dos romanos, encarrapitando-me numa pilha de almofadas de cetim amontoadas no veludo do genuflexório.
Dessa vez, a minha tia Alícia foi de extrema severidade para comigo. Agarrou-me por uma orelha e, com uma crueldade contida que ainda hoje recordo, disse, batendo as sílabas uma a uma:
- O menino nunca mais ali entra. Se volto a vê-lo naquele quarto, nunca mais põe os pés nesta casa!
Nessa noite, na escuridão do meu quarto, apanhando a renda do travesseiro, não consegui descortinar qual poderia ser a relação secreta entre Alícia, a minha tia, e aquele Cristo que me fascinava em tamanho natural, nu e cor de carne, com chagas a sangrarem e que dava a sensação de ter acabado de expirar ou de estar à beira do último suspiro. Já homem, viria a descobrir que esse era o fascínio daquele belo crucifixo: a proximidade da morte, pouco importava se ocorrida ou prestes a acontecer.
Foi nessa altura, muitos anos passados sobre a ameaça gélida da minha tia, à luz da lamparina de azeite do oratório que decifrei também a razão da sua crueldade contida.
Ao contrário da imagem generalizadamente conhecida de Jesus, aquele Cristo não tinha barba. Não só não tinha barba como era a cara do jovem que jazia em sépia, no florão de cobre da moldura que segurava um naperão sujas pontas tombavam, como um xaile, sobre o teclado cor de marfim velho do piano vertical, de quatro pedais que, mudo, enfeitava a sala de visitas.
- Queres ficar com o Cristo como recordação da tua tia? - perguntaram-me com a cerimónia desinteressada de um inventário post mortem.
- Não – respondi. - Quero apenas um pequeno objecto pessoal, que seja realmente uma mera recordação.
Nunca mais vi aquele Cristo nem sei o que foi feito de Jesus. Guardei apenas uma pequena pistola niquelada, de coronha de madrepérola, que me recorda uma senhora que cresci a venerar como uma santa, incapaz de fazer mal a uma mosca.
Lisboa, 1987

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