22.3.08

Corrupção a bordo

Por Antunes Ferreira
SE LHES DISSESSEM que alguém tinha visto dois cidadãos na via pública a venderem laranjas aos gomos, por certo que não acreditavam. Tratava-se de gozo, quem iria desencantar uma cena dessas, nem o Kafka. Invencionice de mau gosto, diriam outros. Impossível, seria a resposta dos racionalizados. Pois eu vi. Numa rua em que passavam escassos automóveis remendados, pouquíssimos camiões decadentes, algumas bicicletas decrépitas e onde estava uma peanha, (da qual tinha sido eliminado a sua estátua residente), que ostentava a vermelho um grafiti simples: Pink Floyd. A placa borrada a preto identificava o suposto homenageado: Enver Hoxha.
Estava em Tirana. Corria o ano de 1993 e ali me deslocara, na qualidade de Director do Gabinete de Comunicação do Tribunal de Contas, acompanhando Sousa Franco, na altura presidente da instituição. Da delegação fazia ainda parte, José Tavares, então director-geral do TC, que depois chegaria a Juiz Conselheiro. Dois excelentes Amigos, o primeiro, como é sabido, já falecido. Com ele iria para o Ministério das Finanças, um erro meu, que paguei bem caro, até no que respeita à saúde. Adiante.
Íamos ali, com o intuito de ensinar os Albaneses a terem… o seu Tribunal de Contas. Obviamente, eu apenas participaria no que tocava à Informação do futuro órgão; mas, lá chegado, e a convite dos anfitriões, ainda dei duas aulas de Comunicação Social aos novos jornalistas que tinham surgido depois da queda de Ramiz Alia, o sucessor de Hoxha. Coisas da vida. Aliás, o nosso grupo ainda visitou o novo Presidente não-marxista, Sali Berisha, então PR da Albânia – hoje, primeiro-ministro.
Foi a este, com quem conversei a sós durante um bom quarto de hora, que referi o meu espanto pela cena comercial da laranja, descascada e a gomos, em plena via pública. O médico pediatra olhou-me frontalmente e respondeu-me que o País era paupérrimo e miserável, acentuando os termos quase sinónimos, mas que ele entendia sublinhar. «É uma desgraça – reconheceu – que temos de ultrapassar».
E, num rompante agitou o dedo indicador e avançou «herança da corrupção política, os “camaradas” profissionais encheram os bolsos à custa do povo. Passavam de um lugar oficial a outro, nada era privado na Albânia, sempre com mais aumento da riqueza, da deles, claro!» Estou a vê-lo. Arqueou as sobrancelhas em jeito de censura. «O regime era mau. Mas os poderosos eram péssimos, navegavam na corrupção, impunes!»
Os bunkers, espalhados por todo o país, nos locais mais incríveis – vi uns quantos em cemitérios, entre as campas, muitos nos passeios da triste capital, outros até no meio de algumas ruas – significavam o amargo destino de uma terra, que se podia concretizar num lancinante a Albânia contra o Mundo. Sucessivamente, a terra das águias (não confundir, por favor, com os da Luz) tinha-se divorciado de Tito, de Estaline, de Mao e por aí fora, até se encontrar em isolamento total. Penosamente só.
Na ressaca da execrável ditadura, as pessoas referiram-me, entre dois risos galhofeiros «agora são locais do aumento da natalidade»… Ninhos de metralhadoras transformados em ninhos de amor supinamente carnal. As voltas que dá o Mundo, que inclui, naturalmente a Republika e Shqipërisë.
Tudo isto me vem ao presente (a memória é perigosíssima e traiçoeira) quando vejo o que se vai passando, agora, neste País encantado. Alto lá, não se trata da venda dos citrinos gomados. Laranjas, nem os autocarros da Carris. E a propósito: na Roménia, na Turquia, na Bulgária, que eu conheça, laranja diz-se portucale. Ironias linguísticas ou coincidência ácida?
Mas, não ter memória é não ter História. Refiro-me, tão-só, à onda de choque originada pelas declaraçõe,s feitas já há umas semanas, do bastonário da Ordem dos Advogados, referindo a corrupção de políticos, nomeadamente às fortunas dos que, antes do exercício de funções públicas, quase não tinham com que se coçar. A colocação de tais «servidores da res publica» em belíssimos cargos, com chorudos ordenados e mordomias correspondentes, é uma expressão disso mesmo.
Poderá dizer-se que sempre foi assim ao longo dos tempos, que não é só em Portugal, bem pelo contrário, até mesmo que era também prática constante na pendência do salazarismo. Sim senhor, de acordo. Mas o reconhecimento das faltas e a absolvição concomitante são de confessionário, não me deixam mais nem menos satisfeito por tal localização.
No caso vertente, a reacção dos mais diversos quadrantes foi elucidativa: é melhor não se mexer muito nessas coisas, por via das moscas que são as únicas diferentes. Está-se a ver a que chegou o despautério. Desde o Parlamento até diversas sedes políticas, foi um corrupio, que se pode interpretar como um salve-se quem puder. O Eng. João Cravinho não se deve considerar vingado pelo advogado de Coimbra, que conheci bem nos seus tempos de jornalista. Mas pode comentar, sem papas na língua, eu bem tentei, mas… Mais recentemente, porém, uma sondagem veio informar que uma boa maioria dos Portugueses estava com o Dr. Marinho Pinto. Em que ficamos? Eu, pessoalmente, alinho com o Povo, ao qual pertenço com muita honra.
Estamos a viver um tempo em que a organização política do nosso País está a ser posta em causa, ainda que, muitas vezes, por gente que ninguém conhece, mas que sabe pôr-se em bicos dos pés e vai chegando a público. Os partidos e os políticos são postos em causa e até se diz que o sistema já deu o que tinha a a dar e que se torna necessária uma «mudança estrutural». Falta pouco para corroborar Oliveira Salazar: é impossível haver um regime democrático em Portugal, é proibido haver partidos, direitos dos cidadãos são ois que o poder concede – e ponto. Há que ter em conta estas atoardas. E, se se lhes quer responder, use-se a verdade, a honestidade, a frontalidade e a prática democrática. São os atributos que temos todos de usar para defendermos a Liberdade. Tenho de o dizer: ao cabo e ao resto, não me parece que em termos de comparação devesse ter citado a Albânia e Portugal, ainda que muito boa gente tivesse dito que se o nosso País não entrasse na então CEE, corria o risco de uma albanização complicadíssima. Em tempo de recordar, até Mário Soares o fez. No caso vertente, se por fas e nefas não se investigar, a sério, a prática da compra e venda de pessoas, instituições, organizações, estaremos, estará Portugal, em maus lençóis; porque há muito para inquirir, para averiguar, para punir se for caso disso (e parece que é). Em caso negativo, bem se poderá dizer que entre nós a corrupção morre virgem.

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