25.5.08

Serões da Província

Por Nuno Brederode Santos
NOS ANOS PARES, estas Primaveras mais chuvosas do que qualquer Inverno que se preze são grandes inimigas do meu inimigo principal. Minhas aliadas, portanto (mesmo que só "objectivas", como obrigatoriamente se dizia - ainda - no final dos anos 50). O inimigo, esse, é o aconchego de um útero enorme, feito de cimento e madeiras velhas, polvilhado de electrodomésticos e, no meu caso particular, de cinzeiros. É um cavername a que chamamos "casa" e no qual nos sentimos um Jonas que não quer sair da barriga da baleia. Abrigados das pequenas e médias catástrofes, protegidos, aquecidos e afagados, somos muito mais reis do mundo do que aquela coisa do Di Caprio a subestimar o oceano do alto do Titanic. Mas, dizia eu, estas Primaveras dos anos pares obrigam-nos a reagir e a ponderar sair de casa e ir ter com os amigos. Não porque vento e chuva sejam privilégio dos anos ímpares. Mas porque, nos pares, chega um qualquer campeonato (ora europeu, ora mundial) em que o futebol toma conta da vida colectiva e pouca margem deixa para patetices intimistas. Nem é, em bom rigor, o futebol. São misteriosas adjacências, disciplinas conexas que a televisão e a imprensa cultivam com o desvelo e a minúcia com que um amigo meu derrama a alma num jardim de espécies exóticas em versão "bonsai".
.. É eu ter de saber que, no hotel do estágio, a ementa de hoje foi canja de galinha e carne à jardineira (e o cozinheiro já vai explicar porquê), mas também que o craque A, afectado por uma ligeira indisposição, comeu pescada. Quanto ao B, que é naturalizado, foi-lhe concedido viajar hoje até S. Luís do Maranhão, onde o pai será operado a uma hérnia (o mau canal por aqui se fica, mas o bom vai ao local ouvir coronéis, jagunços e ameríndios sobre a popularidade e gentileza da família do craque). É a irmã do craque C , que veio a Viseu, grávida de séculos, e pariu com estrondo à beira da hora do treino - e o doutor, que é ginecologista, vive os seus cinco minutos de glória a sossegar a nação. É o pequeno Marturis que continua a vestir a camisola do Figo, mas já lê Camilo Pessanha graças à bolsa de um banco nacional. E a namorada do médio D, que admite vir a ter muitos filhos, mas só depois de fazer carreira em Hollywood.
.. Quarenta minutos volvidos, temos direito a algum noticiário nacional. Sabemos então da abertura de um escritório de interesses da Estremadura espanhola em Lisboa, de um académico galego que nos adora e acredita que nada separa o quotidiano que se faz desde o Golfo da Biscaia até à foz do Douro e do vice-presidente catalão que nos ensina qual a Espanha que mais convém a Portugal. Só mesmo o romântico bandido "El Solitario", que tanto se queixara de nós, já vai dizendo que gostaria de voltar para uma prisão portuguesa - e gostos não se discutem.
.. Este sufoco não conhece refrigério nem consolo. Porque os intervalos decorrem entre os apelos da grande iberista Amparo Larrañaga para que mudemos de marca na higiene bucal (substituindo a saudosa Natália Verbaecke, do Evax "limpia y segura") e o Dr. Ignazio não-sei-quantos, que recomenda um dentífrico óptimo para todos os espanhóis. E o pequeno rebelde que em mim mora, num etéreo algures que eu não controlo, rouba-me o que resta de sossego. Agita a História e quer saber se novecentos anos nada valem, se cada conjuntura de excepção justifica questionar a regra e se é quando uma aventura europeia maior se escancara aos olhos de todos os ibéricos que faz sentido recolocar essas questões. E eu acabo concedendo, sem discussão. Aceito o limiar da irracionalidade, esse território livre onde a alma vive e brincam os afectos. Que não é certamente maior do que o apelo clubista ou o impulso de comprar o cartão de sócio da selecção nacional. Mesmo que o preço seja - ou fosse - ter de sair de casa e arrostar com o que as nuvens quiserem.
.. Mas, por agora, nem isso. Tenho uma alternativa secreta: as primárias do PSD. Que têm sido a única manobra de diversão capaz de nos manter o nariz à tona na inundação do europeu de futebol. Falando só pela noite de terça-feira (Menezes na TVI e Santana Lopes na SIC), por irrespirável que a atmosfera estivesse (sobretudo com Menezes), valeu a pena. Só choveu no PSD e eu fui dormir enxuto.
«DN» de 25 Mai 08

Etiquetas: