7.9.11

Como as coisas se fazem

Por Rui Tavares

SE JÁ [é] impressionante as coisas com que o poder político consegue escapulir-se à frente dos nossos olhos, imagine-se quando consegue apanhar-nos distraídos.

E assim foi, discretamente, na semana passada.

À frente dos nossos olhos incrédulos, o governo decidiu de novo aumentar os impostos. Ao mesmo tempo, pela calada, a maioria do parlamento concordou entregar muitos dos dados pessoais de cidadãos portugueses — biográficos, biométricos e (em casos por agora raros) de ADN — aos EUA, num acordo que um arrasador parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) considerou “excessivo, sem garantias legais, sem controlo transparente” e desconsiderando a lei portuguesa e europeia. Antes já este acordo tinha passado por uma saga pouco edificante: o parecer da CNPD não foi pedido antes de estar pronto o texto mas somente após um ano de secretismo; em todo esse tempo, e mesmo depois, o governo não enviou o acordo à Assembleia da República; e a coisa toda só foi descoberta por um jornalista do Diário de Notícias num site norte-americano. Para acabar, há bem fundadas suspeitas de inconstitucionalidade neste acordo, por não acautelar a utilização de dados de cidadãos em casos que possam resultar na aplicação da pena de morte.

Para que tudo isto seja claro: os seus dados pessoais pertencem-lhe a si, leitor. Mesmo que coligidos pelo estado, os seus dados não devem ser transferidos sem o seu consentimento, e não devem ser usados em processos criminais sem autorização de um juiz. Ora, com este acordo, o estado português vai passar a enviar dados de cidadãos nacionais para um outro país, sem intervenção de um juiz, mas antes de um misterioso “ponto de contacto” que tanto se imagina poder ser um polícia como um agente do SIS ou do SIED, agora tão em alta. Mais extraordinário ainda, os EUA podem transferir esses dados para os serviços de informação de outros países (os da Colômbia, por exemplo, são useiros e vezeiros em abuso de dados pessoais).

Como de costume, tudo é justificado com a luta contra o terrorismo e o crime organizado. Na verdade, porém, o texto do acordo permite aos EUA usarem os dados para tudo o que considerarem necessário.

Para piorar as coisas, este acordo vem num momento inoportuno, pois o próprio estado português mandatou a Comissão Europeia para negociar com os EUA um acordo-quadro de proteção de dados, que os americanos recusam que seja retroativo. Aprovar este acordo agora não só desprotege os cidadãos portugueses, como enfraquece a posição negocial europeia.

É evidente que este acordo não poderia ter passado sem um debate sério. Assim não foi: o governo mandou o acordo para a AR durante as férias, foi lá dizer que estava tudo bem, e a AR não consultou nenhum jurista ou instituição discordante. Os três eurodeputados (Carlos Coelho, do PSD; Ana Gomes, do PS; e eu mesmo) que se ofereceram para prestar informações sobre o ângulo europeu deste assunto, não foram chamados nem ouvidos.

E eis, pois, caro cidadão, o que acontece quando os deputados na Assembleia da República se tornam meras correntes de transmissão das lideranças partidárias que, por sua vez, agem apenas ao sabor das conveniências de momento.

Consulte o parecer da CNPD em http://tinyurl.com/dados-pt-eua e, se entender, reenvie-o aos deputados do PSD, PS e CDS perguntando porque votaram a favor do acordo — ou aos deputados do PCP e BE, que votaram contra, sugerindo-lhes que considerem uma ação conjunta no Tribunal Constitucional sobre a implementação deste acordo.

In RuiTavares.Net

Etiquetas: ,