Uma Gralha na Varanda - As costas dos anjos
Por Antunes Ferreira
DUAS SENHORAS já trintonas ou a cair nos entas, sari lindíssimo uma delas, a outra trajando à europeia estão sentadas na mesa ao lado da nossa, bebendo o seu chá com leite. Alvito Rebelo deu mais um golinho na sua cerveja e sorriu por baixo do bigode, queres tu também dizer que os anjos não têm costas?, olha que por vezes isso não é verdade, e ficou-se mirando-me com ar trocista, enquanto, por trás dele o Mandovi continua a correr tranquilamente para o mar, as barcaças transportam o minério para o porto de Mormugão, deslizando mansamente nas águas, ao ritmo da terra.
Estamos sentados à beira rio, na Riviera, uma esplanada onde se tomam uma bebidas e se trincam uns camarões – camarões?, gambas – convenientemente fritos, uns cajus picantes como os crustáceos anteriores, uns miminhos de peixe serra panados. A tarde espraia-se, lânguida, não há uma só nuvem no céu azulérrimo, à nossa volta as conversas em concanim soam animadas, os empregados seguem-nos com o olhar atento, não vá que os fregueses queiram mais alguma coisa.
São muitos e entre eles há bastantes de fora, ou seja indianos, como os goeses dizem, porque estes são mesmo goeses, os dos outros estados é que são indianos, falam outras línguas, hindi, orya, guzerate, sei lá mais o quê. Desde que venho a Goa ouço estes lamentos um tanto depreciativos sobre a invasão das gentes de fora, a expressão é mesmo essa, vêm para cá tirar o trabalho aos nossos, dormir nos passeios, obrigaram-nos a pôr fechaduras e cadeados nas portas, enfim é uma chatice. Não comento habitualmente, faço um tímido aceno de cabeça, mesmo casado com uma goesa, eu sou um pacló.
Ou seja, um pele branca, um português, um estrangeiro, ainda que completamente diferente dos russos arrogantes e dos alemães decrépitos que enxameiam praias, ruas, restaurantes, entrando por tudo o que é sítio, bastas vezes utilizando práticas abstrusas, nomeadamente os primeiros. Não faltam cartazes em cirílico e inglês: proibido a estrangeiros ora estes são os goeses. Os eslavos compraram propriedades, instalaram-se e, decretaram. Há, naturalmente, um desagrado evidente pelo autoritarismo, mas venderam-lhe as terras e…
Volto ao meu copo e aos tocabocos aperitivos, reparem, tocar as bocas, é lindo, não é?, que também acompanham o arroz e caril e à pergunta do Alvito. Pelo menos é o que se diz, normalmente a uma senhora sentada de costas voltadas para nós, os anjos não têm costas, o que origina sorriso correspondente e condescendente perante o galanteio. Veja-se, porém, que a expressão vem sendo um tanto prostituída, mas numa sociedade conservadora q.b., como é esta de cultura indo portuguesa, ainda cai bem.
Rebelo deixa-me terminar a alegação, fomos camaradas estudantis em Direito, na cidade universitária, ali ao Campo Grande, luto estudantil em conjunto, mantém arvorado o sorriso, isso achas tu, homessa?, as coisas mudaram muito, isto agora é outra loiça, e eu franzindo o cenho, achas que sim?, pois claro que não podemos ignorar as mudanças, retorque-me ele, como assim?, insisto eu na interrogação, então lá vai, atira-me, inundando o ar com a ironia que se lhe plantou na face escanhoada.
Avisa, não quero que penses que estou a gozar contigo, mas foste tu que deste o pontapé de saída, Alvito, deixa-te de fitas e avança. Nos dias que correm, há anjos e anjos. E uns quantos muito amigos, anda que sejam da guarda, com asas sofisticadas, não falo de parapente, muito menos de imitações tipo Ícaro, asas lindas, multicores, até com lentejoulas. Enfim, anjos que bem poderiam ter derrapado para luciferes, mas que se safaram, o código da estrada celestial ou foi magnânimo ou fechou os olhos.
E que evoluíram de muito amigos para íntimos. E que, no meio de agradável convivência a caminho do êxtase leva a que um sussurre ao outro, ai querido, desculpa estar de costas. Então, têm-nas ou não as têm?
Os sujeitos das mesas em redor ainda agora devem estar a pensar que éramos malucos da tanta galhofa que saltou. Um bando de gralhas passou grasnando mas não conseguiu abafar as nossas gargalhadas. E eram muitas – as aves.
DUAS SENHORAS já trintonas ou a cair nos entas, sari lindíssimo uma delas, a outra trajando à europeia estão sentadas na mesa ao lado da nossa, bebendo o seu chá com leite. Alvito Rebelo deu mais um golinho na sua cerveja e sorriu por baixo do bigode, queres tu também dizer que os anjos não têm costas?, olha que por vezes isso não é verdade, e ficou-se mirando-me com ar trocista, enquanto, por trás dele o Mandovi continua a correr tranquilamente para o mar, as barcaças transportam o minério para o porto de Mormugão, deslizando mansamente nas águas, ao ritmo da terra.
Estamos sentados à beira rio, na Riviera, uma esplanada onde se tomam uma bebidas e se trincam uns camarões – camarões?, gambas – convenientemente fritos, uns cajus picantes como os crustáceos anteriores, uns miminhos de peixe serra panados. A tarde espraia-se, lânguida, não há uma só nuvem no céu azulérrimo, à nossa volta as conversas em concanim soam animadas, os empregados seguem-nos com o olhar atento, não vá que os fregueses queiram mais alguma coisa.
São muitos e entre eles há bastantes de fora, ou seja indianos, como os goeses dizem, porque estes são mesmo goeses, os dos outros estados é que são indianos, falam outras línguas, hindi, orya, guzerate, sei lá mais o quê. Desde que venho a Goa ouço estes lamentos um tanto depreciativos sobre a invasão das gentes de fora, a expressão é mesmo essa, vêm para cá tirar o trabalho aos nossos, dormir nos passeios, obrigaram-nos a pôr fechaduras e cadeados nas portas, enfim é uma chatice. Não comento habitualmente, faço um tímido aceno de cabeça, mesmo casado com uma goesa, eu sou um pacló.
Ou seja, um pele branca, um português, um estrangeiro, ainda que completamente diferente dos russos arrogantes e dos alemães decrépitos que enxameiam praias, ruas, restaurantes, entrando por tudo o que é sítio, bastas vezes utilizando práticas abstrusas, nomeadamente os primeiros. Não faltam cartazes em cirílico e inglês: proibido a estrangeiros ora estes são os goeses. Os eslavos compraram propriedades, instalaram-se e, decretaram. Há, naturalmente, um desagrado evidente pelo autoritarismo, mas venderam-lhe as terras e…
Volto ao meu copo e aos tocabocos aperitivos, reparem, tocar as bocas, é lindo, não é?, que também acompanham o arroz e caril e à pergunta do Alvito. Pelo menos é o que se diz, normalmente a uma senhora sentada de costas voltadas para nós, os anjos não têm costas, o que origina sorriso correspondente e condescendente perante o galanteio. Veja-se, porém, que a expressão vem sendo um tanto prostituída, mas numa sociedade conservadora q.b., como é esta de cultura indo portuguesa, ainda cai bem.
Rebelo deixa-me terminar a alegação, fomos camaradas estudantis em Direito, na cidade universitária, ali ao Campo Grande, luto estudantil em conjunto, mantém arvorado o sorriso, isso achas tu, homessa?, as coisas mudaram muito, isto agora é outra loiça, e eu franzindo o cenho, achas que sim?, pois claro que não podemos ignorar as mudanças, retorque-me ele, como assim?, insisto eu na interrogação, então lá vai, atira-me, inundando o ar com a ironia que se lhe plantou na face escanhoada.
Avisa, não quero que penses que estou a gozar contigo, mas foste tu que deste o pontapé de saída, Alvito, deixa-te de fitas e avança. Nos dias que correm, há anjos e anjos. E uns quantos muito amigos, anda que sejam da guarda, com asas sofisticadas, não falo de parapente, muito menos de imitações tipo Ícaro, asas lindas, multicores, até com lentejoulas. Enfim, anjos que bem poderiam ter derrapado para luciferes, mas que se safaram, o código da estrada celestial ou foi magnânimo ou fechou os olhos.
E que evoluíram de muito amigos para íntimos. E que, no meio de agradável convivência a caminho do êxtase leva a que um sussurre ao outro, ai querido, desculpa estar de costas. Então, têm-nas ou não as têm?
Os sujeitos das mesas em redor ainda agora devem estar a pensar que éramos malucos da tanta galhofa que saltou. Um bando de gralhas passou grasnando mas não conseguiu abafar as nossas gargalhadas. E eram muitas – as aves.
Etiquetas: AF
3 Comments:
Muito bem "regressado", caro Antunes Ferreira.
Como era seu dever...
Deixo-lhe um abraço.
Têm costas, ornadas por delicadas asas…*
AF
Gostei da história vinda de longe.
Trouxe cheiro de sândalo e caril, imagens de mulheres belas e esguias, de sari.
Manda mais.
Maria
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