Que Abismo é Este?
Por Maria Filomena Mónica
QUE ABISMO é este que se abre diante de mim quando passeio nos jardins da cidade onde nasci? Não, não se trata de um abismo físico, mas de outro, mais difuso, escondido e confrangedor. Evidentemente que há muito sabia da sua existência: mas uma coisa é dele ter conhecimento, outra, deparar-me com ele quando saio de casa. Por esta altura, o meu leitor ou, com um pouco de sorte, os meus leitores estarão a interrogar-se sobre aquilo de que estou a falar.
O abismo, que me assusta, é o analfabetismo ancestral do povo português. Há dias, notei que nenhum dos velhos que, por estes dias, encontro no jardim próximo da minha casa se entretinha a ler. Os homens, sempre em grupo, jogam às cartas; as mulheres entretêm-se a acabar um infindável naperon. Não, não estou a falar da Idade Média, mas de homens e de mulheres nascidos na década de 1940, ou, como diria um demógrafo, de indivíduos da minha coorte etária.
Apesar de pertencermos à mesma geração, suspeito que dificilmente seríamos capazes de manter uma conversa séria. É deste abismo que falo. Muitos dos velhos que me rodeiam terão vindo do campo, uma vez que, em 1943, data em que nasci, 90% dos portugueses ainda ali vivia. Destes, raros eram os que sabiam ler: a taxa de analfabetismo nacional, isto é, a percentagem de analfabetos na população com mais de 7 anos, elevava-se a 50%, o que significa que, no interior do país, podia atingir os 70% ou 80%.
Estes meus contemporâneos pertencem a uma civilização onde a palavra escrita era monopólio dos poderosos e onde a única obra que existia nas aldeias era o Livro de São Cipriano, que ensinava a conquistar moçoilas, combater o demónio e amontoar uma fortuna. Olhando-os agora, eles ainda de boné, elas, ainda de lenço na cabeça, penso nos assuntos sobre os quais poderíamos falar. E interrogo-me: o facto de sermos todos portugueses significará que pertencemos a uma mesma cultura?
Nós, mulheres, talvez pudéssemos queixar-nos dos maridos, dos filhos e dos netos, mas, com os homens, a conversa seria mais difícil. Nem a crise conseguiria unir-nos, uma vez que esta esmaga mais os pobres do que os ricos, classe a que evidentemente pertenço. Até o meu aspecto físico me afasta dos indivíduos com quem me cruzo, embora os cabelos brancos que em todos nós despontam ajudem a minimizar as diferenças sociais.
Mas como falar das minhas angústias a compatriotas que nunca leram Camilo, Eça ou Cesário, que nunca ouviram a música de Mozart, de Schubert ou de Verdi, que nunca olharam uma estátua de Bernini, um quadro de Turner ou a nave de Alcobaça? Não, não me estou a armar em snob, estou a lamentar que os regimes – da I República ao Estado Novo, pois de ambos somos filhos – se tenham revelado incapazes de educar o povo. Aparentemente, para os meus vizinhos, o mundo reduz-se às intrigas das telenovelas e às vitórias do seu clube de futebol. Há muito que não me sentia tão só.
«Expresso» de 6 Abr 12QUE ABISMO é este que se abre diante de mim quando passeio nos jardins da cidade onde nasci? Não, não se trata de um abismo físico, mas de outro, mais difuso, escondido e confrangedor. Evidentemente que há muito sabia da sua existência: mas uma coisa é dele ter conhecimento, outra, deparar-me com ele quando saio de casa. Por esta altura, o meu leitor ou, com um pouco de sorte, os meus leitores estarão a interrogar-se sobre aquilo de que estou a falar.
O abismo, que me assusta, é o analfabetismo ancestral do povo português. Há dias, notei que nenhum dos velhos que, por estes dias, encontro no jardim próximo da minha casa se entretinha a ler. Os homens, sempre em grupo, jogam às cartas; as mulheres entretêm-se a acabar um infindável naperon. Não, não estou a falar da Idade Média, mas de homens e de mulheres nascidos na década de 1940, ou, como diria um demógrafo, de indivíduos da minha coorte etária.
Apesar de pertencermos à mesma geração, suspeito que dificilmente seríamos capazes de manter uma conversa séria. É deste abismo que falo. Muitos dos velhos que me rodeiam terão vindo do campo, uma vez que, em 1943, data em que nasci, 90% dos portugueses ainda ali vivia. Destes, raros eram os que sabiam ler: a taxa de analfabetismo nacional, isto é, a percentagem de analfabetos na população com mais de 7 anos, elevava-se a 50%, o que significa que, no interior do país, podia atingir os 70% ou 80%.
Estes meus contemporâneos pertencem a uma civilização onde a palavra escrita era monopólio dos poderosos e onde a única obra que existia nas aldeias era o Livro de São Cipriano, que ensinava a conquistar moçoilas, combater o demónio e amontoar uma fortuna. Olhando-os agora, eles ainda de boné, elas, ainda de lenço na cabeça, penso nos assuntos sobre os quais poderíamos falar. E interrogo-me: o facto de sermos todos portugueses significará que pertencemos a uma mesma cultura?
Nós, mulheres, talvez pudéssemos queixar-nos dos maridos, dos filhos e dos netos, mas, com os homens, a conversa seria mais difícil. Nem a crise conseguiria unir-nos, uma vez que esta esmaga mais os pobres do que os ricos, classe a que evidentemente pertenço. Até o meu aspecto físico me afasta dos indivíduos com quem me cruzo, embora os cabelos brancos que em todos nós despontam ajudem a minimizar as diferenças sociais.
Mas como falar das minhas angústias a compatriotas que nunca leram Camilo, Eça ou Cesário, que nunca ouviram a música de Mozart, de Schubert ou de Verdi, que nunca olharam uma estátua de Bernini, um quadro de Turner ou a nave de Alcobaça? Não, não me estou a armar em snob, estou a lamentar que os regimes – da I República ao Estado Novo, pois de ambos somos filhos – se tenham revelado incapazes de educar o povo. Aparentemente, para os meus vizinhos, o mundo reduz-se às intrigas das telenovelas e às vitórias do seu clube de futebol. Há muito que não me sentia tão só.
Etiquetas: FM
6 Comments:
Mais vale só...do que mal acompanhada, pelo povo.
Tens muitos "chochos" nessa cabeça.
Até parece (o que não é verdade), que a MFM tem andado em Marte ou acordou de um sono longo de anos.
Bom, para além do livro de S. Cipriano, havia talvez, em algumas aldeias, um "famoso" romance, já não sei de que autor, intitulado "Rosa do Adro". Li-o em casas pobres, de familiares meus.
E lembro-me de quem o leu em voz alta, em várias sessões, para algumas pessoas que não sabiam ler.
Já agora, o "Amor de Perdição" do Camilo também. E até me lembro de leituras desse romance em que chorava o leitor e choravam as ouvintes...
Realmente, as pessoas não liam nada. Muitas porque não sabiam e as que tinham aprendido não tinham nada para ler, nem dinheiro nem mobilidade nem horizontes culturais para comprar o que valia a pena ler.
Eram tempos do diabo. E as pessoas sabiam-no...
Toca-me, por isso, que alguém que não viveu essas realidades, e que bem podia passar sem se lhes referir, se debruce sobre elas e as lamente. Sentindo-as, que é a forma mais nobre de o fazer.
Bem haja por esse exemplo (a que eu chamo lição) de coragem e de dignidade.
Estimo-a imenso (também) por isso.
Esta crónica revela quanto inculta e presunçosa é a sua autora.Nem sei como o Expresso publica este nojo. Na verdade, sei porque o publica.
Resposta de MFM a José Batista:
«Fiquei muito contente com o comentário de José Batista: por vir de alguém que conheceu um mundo onde a maioria das pessoas não sabia ler e por me ter reconfortado das cartas em que sou acusada de elitista, arrogante e insensível. Apenas o primeiro adjectivo se me pode aplicar. Embora o termo, sei-o, tenha, entre nós, uma conotação negativa, sou-o, porque, ao longo da vida, constatei que os homens não são todos iguais. Alguns são inteligentes, outros estúpidos; alguns honestos, outros desonestos; alguns trabalhadores, outros preguiçosos. Ser elitista não significa que defenda as élites sociais que são, no nosso país, de uma incultura devastadora.
Aquilo por que, toda a minha vida tenho lutado, é pela instauração de uma meritocracia, ou seja, para que sejam dadas as mesmas oportunidades aos filhos dos pobres e aos filhos dos ricos. É por isso que dou importância à Cultura: gostaria que os miúdos com quem, durante a minha infância, me cruzava nas ruelas da aldeia, Águas Belas, onde o meu pai nasceu, tivessem tido a oportunidade que tive de ler Stendhal aos 15 anos. Isto não é snobeira, é a certeza de que a leitura nos abre horizontes. Quem me critica, argumentando – e várias foram as pessoas que tal fizeram – que retiro valor aos analfabetos não sabe do que fala. Devo lembrar que Salazar sempre defendeu a valorização do analfabetismo, com idênticos argumentos, com os resultados que aí estão.
Tinha eu 26 anos e já o tema da difusão da Cultura me preocupava. Por isso, quando terminei o meu curso de Filosofia e fui estagiar para o Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Gulbenkian, o trabalho que propus ao Dr. Grácio, o seu director, foi a realização de um grande inquérito aos consumo cultural dos jovens. Elaborei um formulário, aplicado em todo o país, aos alunos do Ciclo Preparatório – miúdos de 11 ou 12 anos – com base numa amostra de 8.000 crianças. Para meu espanto, descobri que a maioria não tinha livros em casa e que a obra mais lida era “ A Rosa do Adro”, de que nunca tinha ouvido falar (a propósito, vim a descobrir que o seu autor era um escritor menor, Manuel Maria Rodrigues (1847/1899). Comecei a tentar interpretar os dados, mas sobre alguns pontos tinha dúvidas. Um amigo, sociólogo, criticou a composição da amostra do estudo, o que me levou à paralisia. Quando expus a Rui Grácio as minhas hesitações, este aconselhou-me a que fosse estudar para o estrangeiro, com uma bolsa da Fundação. Escolhi Sociologia, uma disciplina que, à época, era proibida em Portugal. Tendo sido admitida na Universidade de Oxford em 1971, parti. Foi então que comecei verdadeiramente a aprender, mas a minha convicção de que o Saber nos permite ter uma vida mais rica vinha de trás. Por isso, me entristece ver pessoas da minha idade que não puderam usufruir de bens pertencentes à chamada Cultura Superior. Sei, por experiência própria, quanto as obras-primas, da Literatura e da Musica, nos podem ajudar nos momentos de desespero que todos nós ocasionalmente atravessamos. Obrigado por ter me compreendido.
Maria Filomena Monica»
Eu é que lhe estou grato, Doutora Maria Filomena Mónica.
Desde há muito.
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