"Deus não quer, François!"
Por Rui Tavares
CONHECI em tempos um casal em que ambos
eram fervorosos crentes na existência de Deus. Bem, talvez mais do que
isso: ambos alegavam falar com Deus. As discussões eram engraçadas:
“amor, Deus agora não quer que tu toques viola” — “mentira, amor, é Ele
que me está a pedir”. As escolhas de restaurantes, de roupa e de meios
de locomoção passavam pelo mesmo processo.
Eu ainda admito que se possa falar com Deus; mas nunca acreditei que
Deus pudesse responder. Até ontem, quando o avião de François Hollande
foi atingido por um relâmpago quando viajava de avião para jantar com
Angela Merkel logo a seguir à sua tomada de posse. A comitiva teve de
voltar para trás e mudar de aparelho, mas mesmo assim lá foram de
charola para Berlim e o encontro lá teve lugar.
Não, não e não! Mas tu não vês, François? Deus não quer! Até Deus, na
sua infinita paciência, se pergunta: “mas quando é que a esquerda
aprende?” e “quando é que a Europa muda?”
Tu não precisavas de ir a correr para Berlim, François. A Merkel fez
questão de não receber-te quando eras candidato à presidência. Claro que
irias visitá-la, mais tarde ou mais cedo, mas não teria de ser logo
depois de tomar posse. E, se era para discutir a União, deverias ter
deixado claro que havia um lugar próprio para o fazer: Bruxelas. Berlim é
uma capital europeia, mas não é a capital da Europa.
As duas perguntas de Deus, aliás, estão ligadas: a Europa só muda
quando a esquerda aprender. Seja a fazer oposição ou a governar, é
preciso passar a entender a dimensão europeia como distinta das meras
relações entre governos de Estados. Em época de crise, sobretudo, a
falta da dimensão europeia leva os estados a encerrarem-se em posições
determinadas pela visão mais mesquinha dos seus debates nacionais e a
relacionarem-se, no máximo, de forma bilateral. Ora, uma coleção de
relações bilaterais não faz uma União.
Para haver uma União tem de conseguir apresentar-se uma visão que una
partes das sociedades de todos os estados-membros no interesse comum de
atingirem um alto nível de desenvolvimento económico, social e
ambiental. Se se disser que uma taxa sobre as transações financeiras,
complementada com outra sobre a poluição, cujos recursos alavancados
moderadamente por dívida europeia (até agora praticamente inexistente)
poderiam relançar a economia de todo o continente, a começar pelos seus
pontos mais fracos mas beneficiando toda a gente — isso pode ser um
discurso que, mobilizando os cidadãos, crie uma União.
A insistência em relações bilaterais acaba por criar uma realidade em
que “a Alemanha” quer x e “a França” quer y — e os cidadãos, na sua
multiplicidade, ficam como se não tivessem vontade. Para nós,
particularmente, isto é grave. Os principais prejudicados da falta de
uma democracia europeia são os pequenos países.
Infelizmente, para que a esquerda (o centro-esquerda e a esquerda
radical, raios: a esquerda) aprenda que é do seu interesse que a Europa
se faça, será necessário muito mais do que um raio. Será necessário ver o
colapso da Grécia, o contágio a Portugal, a calamidade na Espanha e na
Itália — e o euro condenado. Quando será que a esquerda aprende? Não
respondes, Deus?
«Público» de 16 Mai 12Etiquetas: autor convidado, RT
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