30.6.12

Da tentativa de «queima» dos Lusíadas nos programas escolares à destruição dos Budas no Afeganistão

Por Guilherme Valente
1. QUE ESPÍTITO crítico pode emergir na ignorância ou ser alimentado por ela?
A cultura é condição da consciência crítica. A memória é inerente ao acto de pensar. Como é possível o espírito crítico sem se saber e reter na memória nada de relevante?
2. Quanto ao logro do «ensinar apenas para os exames» disseram tudo dois prestigiados professores : António Mouzinho, no blogue De Rerum Natura , e Paulo Guinote, no Expresso (23/6/12).
3. Se me pedirem para destacar o traço matricial da ideologia imposta à escola durante todos estes anos, direi sem hesitar: o ódio à cultura e ao conhecimento, referidos como «burgueses» e instrumentos de discriminação e reprodução social.
Consideremos um exemplo, o mais longínquo para um ocidental: A Apologia de Sócrates (o grego...). «Cultura burguesa»? Ou património humano inestimável, de absoluta actualidade, que importa transmitir e discutir na escola? (Educação cívica na escola? Não se encontrará melhor para o efeito).
4. Na verdade, a crítica (que só não digo tão estúpida porque é capciosa) à memorização (de referências e instrumentos intelectuais essenciais, é isso que está em causa, embora o disfarcem), o empenho em a eliminar na escola, realizam o objectivo ideológico de desvalorizar, de apagar, a cultura e o conhecimento que contam. O que não querem é que se ensine e aprenda o que deve ser ensinado e aprendido. E a atrofia da memória pessoal é simultaneamente o apagamento da memória histórica, condição da civilização, do progresso da humanidade. (A medicina recomenda o exercício da memória, para manter o pensar activo, retardar o envelhecimento, evitar ou adiar a alzheimer.)
5. A tentativa de erradicação dos clássicos - até onde teriam ido se não tivessem sido travados? -- e a desvalorização dos textos literários na disciplina de Português (que, pelo contrário devem ser criteriosamente seleccionados e reunidos em antologias para cada ano) nos programas escolares e a sua substituição por textos indigentes (a que chamaram «pragmáticos») supostamente para serem acessíveis a todos, que, por exemplo, foram perpetrando, promovem o medíocre, nivelam por baixo, impedem o acesso de todos ao melhor do património imaterial, decapitam o País de inteligência e de saber.
Embora o contexto seja diferente, ideologia imposta à escola, pela sua natureza, evoca outros exemplos mais extremos de movimentos anti-cultura de que a História está cheia, designadamente a Revolução Cultural na China e manifestações do fundamentalismo taliban. Mesmo que muitos dos cúmplices nessa desvalorização da inteligência e da sensibilidade na escola possam disso não ter consciência.
6. George Steiner refere uma vantagem do poema relativamente à prosa: podemos transportá-lo dentro de nós, por ser memorizável. E Epitecto, há quase dois mil anos, disse que só os homens cultos são livres.
Por o seu tema ser, afinal, o que está em causa, cito de cor dois fragmentos de um poema de Éluard que animou os meus quinze anos e me inspirou para sempre: «Sur toutes les pages lues / Sur toutes les pages blanches / Pierre sang papier ou cendre / J´ écris ton non (...) Et par le pouvoir d´un mot / Je recommence ma vie / Je suis né pour te connaître / Pour te nommer / Liberté».
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«Expresso» de 30 Jun 12 (publicado como «Carta da Semana», com o título «Espírito crítico sem nada na cabeça?»)

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