Da tentativa de «queima» dos Lusíadas nos programas escolares à destruição dos Budas no Afeganistão
Por Guilherme Valente
1. QUE
ESPÍTITO crítico pode emergir na ignorância
ou ser alimentado por ela?
A
cultura é condição da consciência crítica. A memória é inerente ao acto de
pensar. Como é possível o espírito crítico sem se saber e reter na memória nada
de relevante?
2.
Quanto ao logro do «ensinar apenas para os exames» disseram tudo dois
prestigiados professores : António Mouzinho, no blogue De Rerum Natura ,
e Paulo Guinote, no Expresso (23/6/12).
3. Se me
pedirem para destacar o traço matricial da ideologia imposta à escola durante
todos estes anos, direi sem hesitar: o ódio à cultura e ao conhecimento,
referidos como «burgueses» e instrumentos de discriminação e reprodução social.
Consideremos
um exemplo, o mais longínquo para um ocidental: A Apologia de Sócrates (o
grego...). «Cultura burguesa»? Ou património humano inestimável, de
absoluta actualidade, que importa transmitir e discutir na escola? (Educação
cívica na escola? Não se encontrará melhor para o efeito).
4. Na
verdade, a crítica (que só não digo tão estúpida porque é capciosa) à
memorização (de referências e instrumentos intelectuais essenciais, é isso que
está em causa, embora o disfarcem), o empenho em a eliminar na escola, realizam
o objectivo ideológico de desvalorizar, de apagar, a cultura e o conhecimento
que contam. O que não querem é que se ensine e aprenda o que deve ser ensinado
e aprendido. E a atrofia da memória pessoal é simultaneamente o apagamento da
memória histórica, condição da civilização, do progresso da humanidade. (A
medicina recomenda o exercício da memória, para manter o pensar activo,
retardar o envelhecimento, evitar ou adiar a alzheimer.)
5. A tentativa de erradicação dos clássicos - até onde teriam
ido se não tivessem sido travados? -- e a desvalorização dos textos literários
na disciplina de Português (que, pelo contrário devem ser criteriosamente
seleccionados e reunidos em antologias para cada ano) nos programas escolares e
a sua substituição por textos indigentes (a que chamaram «pragmáticos»)
supostamente para serem acessíveis a todos, que, por exemplo, foram
perpetrando, promovem o medíocre, nivelam por baixo, impedem o acesso de todos
ao melhor do património imaterial, decapitam o País de inteligência e de saber.
Embora o
contexto seja diferente, ideologia imposta à escola, pela sua natureza, evoca
outros exemplos mais extremos de movimentos anti-cultura de que a História está
cheia, designadamente a Revolução Cultural na China e manifestações do
fundamentalismo taliban. Mesmo que muitos dos cúmplices nessa desvalorização da
inteligência e da sensibilidade na escola possam disso não ter consciência.
6.
George Steiner refere uma vantagem do poema relativamente à prosa: podemos
transportá-lo dentro de nós, por ser memorizável. E Epitecto, há quase dois mil
anos, disse que só os homens cultos são livres.
Por o
seu tema ser, afinal, o que está em causa, cito de cor dois fragmentos de um
poema de Éluard que animou os meus quinze anos e me inspirou para sempre: «Sur
toutes les pages lues / Sur toutes les pages blanches / Pierre sang papier ou
cendre / J´ écris ton non (...) Et par le pouvoir d´un mot / Je recommence ma
vie / Je suis né pour te connaître / Pour te nommer / Liberté».
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«Expresso» de 30 Jun 12
(publicado como «Carta da Semana», com o título «Espírito crítico sem nada na
cabeça?»)
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