Beleza e perigo do pequeno gesto
Por Ferreira Fernandes
DOS HERÓIS de Stendhal, o meu preferido é Fabrice (A Cartuxa de Parma), a passear-se por Waterloo sem se dar conta do que acontece à História. Olha para os homens, aquele e aquele, que agonizam. Um dia, o Fabrice que há em mim, numa Argel cercada por dentro pelos radicais islâmicos, viu uma mulher a olhar os seus cabelos livres num espelho - e tenho passado a vida a contar esse momento.
Adepto dos pequenos gestos, todos os dias a Internet me dá um polícia nova-iorquino de joelhos por terra e um vagabundo de corpo abandonado e descalço - e, entre eles, um par de botas. Miguel Ângelo, se tivesse Internet, fazia outra Pietà.
Eu consumo e passo a outra imagem. Por exemplo, o grande plano da cara de Casillas. Lá longe, Cristiano Ronaldo tinha enviado um foguete exato à baliza adversária e era essa beleza que era comentada pelo perfil de Casillas. Abria os olhos e encolhia os lábios, em admiração incontida.
E eu passo a outra comoção... Mas, espera aí, faço replay. Não do YouTube, mas do que sei das más relações entre o guarda-redes e o português do Real Madrid. E se Casillas, sabendo-se filmado, me enganava?...
Desconfiado, abandono a Internet e folheio jornais. Leio que Jeffrey Hillman, o vagabundo crístico, o das botas ofertadas pelo polícia, exige que lhe paguem royalties pela foto que correu mundo: "Quero a minha parte da massa..."
É o problema dos tempos modernos. Empanturra-nos de comoções, mas quantas delas são falsas?
«DN» de 4 Dez 12Etiquetas: autor convidado, F.F
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