10.12.12

Da caducidade

Por Rui Tavares
AS INSTITUIÇÕES não acabam no momento em que desaparecem. Vão acabando à medida em que as pessoas se forem convencendo que elas são inúteis. Esta ideia poderia bem ser considerada pelo nosso parlamento.
Ontem, a maioria na Assembleia da República aprovou um orçamento irrealista — baseado em previsões económicas nas quais ninguém acredita —, injusto — punindo especialmente os trabalhadores, os pensionistas, o cidadão comum e, em particular, os mais vulneráveis —, e iníquo — estabelecendo objetivos de desvalorização interna e, em última análise, empobrecimento, que a maioria dos portugueses recusa.
Mas, nos últimos dias, a maioria na Assembleia da República fez pior: esvaziou o seu próprio mandato.
Em primeiro lugar, dezoito deputados do PSD decidiram apresentar uma declaração de voto na qual exprimiam o seu desacordo em relação às medidas fiscais do governo. Esta era uma atitude que, do seu ponto de vista, era perfeitamente adequada: os deputados do partido maioritário no governo não faziam perigar o que provavelmente considerarão ser prioritário, mas apesar de tudo descarregariam a sua consciência. Pois bem, nem isso o autoritarismo imanente da política portuguesa permitiu: o aparelho do PSD logo encontrou maneira de esvaziar o mandato daqueles deputados. Mas evidentemente, os deputados são também os culpados: nada, a não ser a pusilanimidade, os obrigaria a aceitar este enxovalho.
Não acredito em deputados que são supostos defender o país contra os interesses ilegítimos e a corrupção, mas que cedem à mínima ameaça de não fazerem parte das próximas listas eleitorais.
Após a vergonha da declaração de voto que antes de o ser já não o era, e que mais uma vez mancha o PSD, tivemos agora a reação ao voto contra de Rui Barreto, que mancha irremediavelmente o CDS.
Rui Barreto, recorde-se, é o deputado do CDS Madeira que é contra este Orçamento de Estado e que, por bizarro que isso possa parecer neste sistema partidário, decidiu votar contra o orçamento. Poderíamos considerar que, naturalmente, o seu voto contra levaria a uma alteração do espaço político para este deputado dentro do seu partido (eventualmente uma redução do espaço político, ou talvez não) a ser julgada em tempo pelos seus correligionários militantes do CDS.
Não foi isso que aconteceu. Em vez disso, o líder do grupo parlamentar, Nuno Magalhães, declarou imediatamente que o deputado seria alvo de um processo disciplinar por ter furado a disciplina de voto.
Só há um detalhe: não há disciplina de voto. Nem pode haver, pois o artigo 155 da Constituição diz que os deputados devem exercer o seu mandato em liberdade. É evidentemente inconstitucional punir um deputado por exercer o mandato como manda a Constituição. Partidos como o CDS fingem não entender a essência da democracia representativa, assente na independência do mandato. Se tiverem coragem, mudem a constituição e passem a exercer o poder legislativo em conferência de líderes. Bastaria meia-dúzia de deputados com modulação de votos.
Agora a bola passa o Presidente da República. Também ele precisa de considerar este pensamento: as instituições não acabam no momento em que desaparecem, mas vão acabando à medida que as pessoas se convencem da sua inutilidade.
(Crónica publicada no jornal Público no dia 26 de Novembro de 2012)

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