Um pouco de ternura e nada mais
Por Baptista-Bastos
NO DOMINGO, 27 de Janeiro, às 5 da tarde, fui internado de urgência no
Santa Maria. Respirava com extrema dificuldade, era assaltado por
terríveis acessos de tosse, não me mantinha equilibrado e estava
apossado de funesta sonolência. Andava nesta obstinada teimosia há uma
semana, ante os reparos dos filhos e as reprimendas da Isaura, que
custodia as minhas disposições com a benevolência e a firmeza que lhe
conferem cinquenta anos de vida em comum. Éramos dois miúdos e durante
estes anos todos temos enfrentado vendavais sem conta. Continuamos dois
miúdos, um pouco mais velhos.
Cheguei, pois, ao hospital num
estado deplorável, em razão da minha presunção e soberba. Presumiu-se
que uma virose me atacara; depois, talvez fosse vítima de embolia
pulmonar. O despiste das doenças não impediu a minha acentuada fraqueza.
Fui rodeado imediatamente de atenções e de solicitudes que logo notei
serem iguais para todos quantos haviam entrado naquele crisol de
sofrimento e de espanto. Pertencia, agora, a esta comunidade na qual o
abatimento, a dependência, a fragilidade e a perda do recato pertencem
ao mesmo número de resignadas admissões.
Pouco depois fui
transferido para o Hospital Pulido Valente. Explicaram-me que, na
Unidade de Cuidados Intermédios, dispunha de assistência assídua e
especializada, e a minha miséria encontrava resposta na bondade, no
carinho, no desvelo de um grupo de raparigas e de rapazes não só atento à
medicação, procurando magoar-me o mínimo possível, com o furo nas veias
débeis, como me lavavam, me limpavam, me cuidavam com a grandeza de
quem não precisa de reciprocidade. A dimensão da humanidade na sua
expressão acaso mais nobre. Sou-lhes eterno devedor.
Ao
observá-los e à sua compassiva densidade, apreendi que os macacos sem
fé e sem sonho, que nos governam, desejam não só dar cabo do Serviço
Nacional de Saúde: eles querem, sobretudo, dissolver os laços de
benevolência, essa ligação suave, decente e poderosa entre alma e
coração, substância e essência que constituem a construção social e o
espírito do SNS. O que são alianças de piedade e de solidariedade entre
os que sofrem e os que cuidam, ajudam e amparam, eles ambicionam
transformar em gélidas demonstrações profissionais, "justificadas" pelo
dinheiro.
Estes que tais encontram, porventura, na maldita frase
do banqueiro Ulrich ["eles aguentam, aguentam"] o mais sórdido apoio aos
seus projectos de demolição social e ética. Estão do outro lado das
coisas, ignoram a natureza concêntrica das grandes simpatias humanas.
Têm o coração oco. Nada sabem dessa humanidade assustada, desvalida, a
quem querem roubar o pouco que lhes resta, que sofre nas ruas, nos
hospitais, que envelhece no pasmo de desconhecer o que lhes acontece. E
ocorre-me a frase de Raul Brandão: "Apenas anseiam por um pouco de
ternura e nada mais."
«DN» de 13 Fev 13 Etiquetas: BB
2 Comments:
Tocante.
Estimo a mais completa recuperação.
Eu, que, de alguns anos a esta parte, passei a colocar no mais alto patamar da minha admiração a gente de enfermagem. Que Portugal tem, da melhor.
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