13.2.13

Um pouco de ternura e nada mais

Por Baptista-Bastos
NO DOMINGO, 27 de Janeiro, às 5 da tarde, fui internado de urgência no Santa Maria. Respirava com extrema dificuldade, era assaltado por terríveis acessos de tosse, não me mantinha equilibrado e estava apossado de funesta sonolência. Andava nesta obstinada teimosia há uma semana, ante os reparos dos filhos e as reprimendas da Isaura, que custodia as minhas disposições com a benevolência e a firmeza que lhe conferem cinquenta anos de vida em comum. Éramos dois miúdos e durante estes anos todos temos enfrentado vendavais sem conta. Continuamos dois miúdos, um pouco mais velhos.
Cheguei, pois, ao hospital num estado deplorável, em razão da minha presunção e soberba. Presumiu-se que uma virose me atacara; depois, talvez fosse vítima de embolia pulmonar. O despiste das doenças não impediu a minha acentuada fraqueza. Fui rodeado imediatamente de atenções e de solicitudes que logo notei serem iguais para todos quantos haviam entrado naquele crisol de sofrimento e de espanto. Pertencia, agora, a esta comunidade na qual o abatimento, a dependência, a fragilidade e a perda do recato pertencem ao mesmo número de resignadas admissões.
Pouco depois fui transferido para o Hospital Pulido Valente. Explicaram-me que, na Unidade de Cuidados Intermédios, dispunha de assistência assídua e especializada, e a minha miséria encontrava resposta na bondade, no carinho, no desvelo de um grupo de raparigas e de rapazes não só atento à medicação, procurando magoar-me o mínimo possível, com o furo nas veias débeis, como me lavavam, me limpavam, me cuidavam com a grandeza de quem não precisa de reciprocidade. A dimensão da humanidade na sua expressão acaso mais nobre. Sou-lhes eterno devedor.
Ao observá-los e à sua compassiva densidade, apreendi que os macacos sem fé e sem sonho, que nos governam, desejam não só dar cabo do Serviço Nacional de Saúde: eles querem, sobretudo, dissolver os laços de benevolência, essa ligação suave, decente e poderosa entre alma e coração, substância e essência que constituem a construção social e o espírito do SNS. O que são alianças de piedade e de solidariedade entre os que sofrem e os que cuidam, ajudam e amparam, eles ambicionam transformar em gélidas demonstrações profissionais, "justificadas" pelo dinheiro.
Estes que tais encontram, porventura, na maldita frase do banqueiro Ulrich ["eles aguentam, aguentam"] o mais sórdido apoio aos seus projectos de demolição social e ética. Estão do outro lado das coisas, ignoram a natureza concêntrica das grandes simpatias humanas. Têm o coração oco. Nada sabem dessa humanidade assustada, desvalida, a quem querem roubar o pouco que lhes resta, que sofre nas ruas, nos hospitais, que envelhece no pasmo de desconhecer o que lhes acontece. E ocorre-me a frase de Raul Brandão: "Apenas anseiam por um pouco de ternura e nada mais."
«DN» de 13 Fev 13

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2 Comments:

Blogger 500 said...

Tocante.

13 de fevereiro de 2013 às 19:02  
Blogger José Batista said...

Estimo a mais completa recuperação.

Eu, que, de alguns anos a esta parte, passei a colocar no mais alto patamar da minha admiração a gente de enfermagem. Que Portugal tem, da melhor.

13 de fevereiro de 2013 às 19:43  

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