Saudades da Vitória
Por Maria
Filomena Mónica
TENHO DE ME
LEVANTAR, a fim de, nos dias difíceis que atravesso, arranjar a árvore de Natal,
mas vou adiando a tarefa. A Vitória, de seu nome completo Maria Vitória Lopes
Nunes, teria resolvido o problema. Era ela quem mais gostava desta quadra. Chegara
a casa dos meus pais em 1953, através de um padre, que mencionara à minha mãe
uma família, cujo chefe morrera tuberculoso, tendo deixado a mulher e os filhos
em situação precária. Recrutou-a logo. O estatuto da Vitória era ambíguo: comia
à mesa connosco, dormia no quarto da minha irmã mais nova, então um bébé, e
mandava nas «criadas de servir».
Foi-nos dito, a mim e à minha irmã
Isabel, ser uma mademoiselle, equiparável
às francesas que os nossos amigos tinham em casa, e que, como tal, deveria ser
tratada. Não andava fardada e tratava-nos pelo nome próprio. Tão pouco
cozinhava: competia-lhe tão só «destinar» os almoços e os jantares, fazendo, quando
lhe apetecia, alguns doces. No Natal, esmerava-se no que considerávamos a sua
obra-prima, um bolo de castanha coberto a chocolate preto. Mais tarde, foi-lhe
atribuída uma função peculiar, a de vigiar o meu comportamento no que dizia
respeito a namorados. Não sendo parva, a minha mãe reparara não ser eu feita da
mesma massa da irmã que me seguia. Na Isabel, tinha a certeza de poder confiar;
comigo, o caso era diferente. Nessa época, os meus conflitos com a Vitória
estiveram sempre relacionados com o meu comportamento «imoral» – estar de mão
dada com namorados – coisa que, mal chegasse a casa, tinha obrigação de relatar
à patroa. Nessa altura, detestava-a.
Quando a minha irmã mais nova se
casou, a minha mãe «ofereceu-lhe» a Vitória. A coisa chocou-me, mas percebi que
ficara radiante: agora, era ela quem mandava. Foi o melhor período da sua vida,
até porque, a certa altura, passou a existir uma criança que educou o melhor
que podia e sabia. Tinha as suas preferências, entre as quais os meus filhos,
mas estava sempre à mão para aquilo de que a família carecesse. Todos
dependíamos dela, não só para os grandes, mas para os pequenos favores: tirar
nódoas difíceis, fazer um bolo, cozer uma bainha. Passei então a conversar
muito com ela. Quando, após a sua morte em Dezembro de 2002, o sacerdote
perguntou, na capelinha do Convento de Jesus, quem eram os familiares da
«falecida», além de uma irmã, uma cunhada e uma prima, foram os «seus» meninos
a levantar-se.
Eram outros tempos: bons para
famílias como a minha, mas opressores para os humildes. A disponibilidade da
Vitória teve um custo elevado: a anulação da sua vida pessoal. Chegou a ter um
capitão como namorado, coisa de que, na nossa maldade inconsciente, eu e a
Isabel fizemos troça: gostar de magalas era coisa de criadas. Desde o dia em
que transpôs a porta da nossa casa, quase deixou de frequentar os parentes. A
minha família considerava-a pouco inteligente, o que se não coadunava com as
funções que, a certa altura, passou a desempenhar (secretária do meu pai), nem com
o sentido de humor que possuía. Foi pouco o que por ela fizemos.
«Expresso» de 20 Dez 14
Etiquetas: FM
7 Comments:
Caro Carlos Medina Ribeiro
Eu sei que tem por norma não enviar certos comentários aos autores dos posts
Peço-lhe, contudo, que abra aqui uma exceção.
Desde há muito que tenho a Mónica muito bem "catalogada" na minha mente.
São os anos de Oxford ou Cambridge sempre a virem à tona, são as descrições das idas para a Praia das Maçãs com os Papás, em que estes metiam no carro os filhos, os animais, em que se incluía a gaiola do pássaro e finalmente, as criadas (sic), etc., etc..
Para quê perder mais tempo a caracterizar a personagem?
Eis que, de repente, e sem nada que o fizesse esperar,surge a divisão nas criadas.
Explicando, surge a Maria Vitória Lopes Nunes, personagem multifunções, de secretária do Papá a vigilante de comportamentos sexuais, sendo mesmo, a dada altura, "oferecida" à irmã mais nova.
A prosa é toda um nojo.
A dúvida que me assalta é a seguinte: quando iam no carro para a Praia das Maçãs, a Maria Vitória Lopes Nunes, entrava no carro antes das criada e antes dos animais, ou entre estes e as criadas?
Peço a sua ajuda.
Sim, um bocado para o pedante.
as pérolas da casa dos horrores.
as empregadas domésticas do antigamente são as escravas que ficaram no anonimato, porque todas as famílias com algum poder financeiro as tinham e tratavam muito mal.
gente de direita, esquerda ou do meio acarreta esse pecado sem remorsos.
sabem o que era a tortura da estátua? pois bem , a escrava ficava encostada à parede na melhor das hi+óteses, até os patrões e filhos regressarem das saídas nocturnas... não podiam adormecer, porque caíam!no dia seguinte não havia compensações. à hora toca a cumprir as habituais obrigações! muitas dessas escravas da Granja me confidenciaram cenas de terror.
no Interior do país,imaginem!
500, um bocado? Um bocado é muito pouco.
Faz-me lembrar a tia Jonet, a debitar conselhos de parcimónia aos destinatários das suas caridades, ou a da Comporta, a enxotar as moscas para brincar aos pobrezinhos.
Gente repugnante, para sermos educados...
Ó gentinha pequena das caixas de comentários, a tristeza que é ler e não perceber
Gosto da Maria Filomena Mónica. É uma mulher bonita, inteligente e frontal, talvez, por isso tão polémica.
Reconhecer e falar sobre a vida que teve, analisar a realidade e criticar os costumes da época, desde quando é pedantice? Não será, antes, uma forma de obrigar os leitores a debruçarem-se sobre um período do país que não se quer de volta?
Desde quando ser verdadeiro é pedantismo? Ou será que para alguns, só podem ter voz os que tiveram uma vida dura...
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