29.6.19

SE NÃO HOUVESSE VENTO, NÃO HAVIA SURF, NEM BODYBOARD, NEM CERTOS PROCESSOS NATURAIS.

Por A. M. Galopim de Carvalho
Como toda a gente vê, estes dois desportos têm, por suporte natural, a vaga em rebentação na praia, o tipo de litoral a que aludi no post de ontem. Acontece que esta onda, um dos principais agentes da dinâmica actuante na zona litoral, não é mais do que a agitação da camada superficial das águas numa determinada “área de geração”, lá longe, no oceano, soprada pelo vento. A ondulação transporta quase toda essa energia (a do vento), sob a forma de ondas ou vagas, a caminho dos litorais, consumindo-a aí, quer na rebentação, quer nas “correntes litorais“, (um tema a abordar noutro post) a que dão origem. 
Ao aproximar-se de terra, e à medida que a profundidade se reduz, a crista da onda torna-se, progressivamente, assimétrica, tombando para a frente até rebentar.
As características físicas da ondulação (altura, período, frequência, etc.) reflectem a energia disponível e dependem da intensidade do vento, da duração da sua incidência e da “distância de colecta”, isto é, a extensão, em comprimento, da região do mar soprada pelo vento. Com poucas perdas durante a propagação, as vagas atingem os litorais, exercendo aí, sobretudo, erosão e transporte. Nos fundos arenosos não consolidados, situados a profundidades susceptíveis de sofrerem as acções das vagas, estas remobilizam uma parte mais superficial da cobertura móvel (em geral, areia, promovendo sedimentação (ou ressedimentação) muito particular, reconhecida pelas marcas de ondulação, ou “ôndulas”, que lhe são próprias.
A retenção, nas grandes albufeiras das barragens hidroeléctricas, da 
maior parte dos inertes , em trânsito nos rios, é uma das causas dos recuos verificados em certas linhas de costa. Outra causa reside na extracção industrial de inertes (areias e/ou cascalho), na ordem de muitos e muitos milhões de toneladas por ano, das praias, das dunas e dos rios, incluindo os estuários. O desassoreamento de portos e barras constitui uma outra causa dos referidos recuos. A construção de enrocamentos, como sejam os molhes e os esporões, com o fim de proteger determinados sectores da costa, acabam sempre por transferir o mesmo tipo de problemas para jusante e, geralmente, de forma agravada. A adulteração da paisagem física em nome do desenvolvimento é um facto que está a atingir proporções preocupantes. Os reflexos no litoral da intervenção do homem são hoje bem visíveis e as soluções encontradas, para os minimizar ou eliminar, nem sempre são as melhores. A conclusão a tirar desta realidade é a de que não se pode continuar a planear o litoral de costas viradas para os conhecimentos que a ciência já está apta a fornecer. Há, pois, que saber conviver com o mar e respeitar os seus códigos que já conhecemos com razoável pormenor. No sentido de minimizar estes inconvenientes, tem-se recorrido a ensaios realizados em tanques especiais, onde, em modelos reduzidos, se procuram simular as condições naturais e as alterações a introduzir, a fim de estudar os seus efeitos. Modernamente, com o desenvolvimento dos meios informáticos, estão a utilizar-se modelos matemáticos com idênticos propósitos.
Em conclusão e resumidamente, pode afirmar-se que a geometria e as características dinâmicas desta franja “onde a terra se acaba e o mar começa” resultam de um conjunto de factores e condicionantes naturais, a que se têm vindo a sobrepor outros, próprios da civilização, que não é despiciendo conhecer melhor. Para além das oscilações do nível do mar, ou eustáticas , e das deformações da crosta, quer epirogénicas quer orogénicas , sobressaem, por serem mais visíveis: a natureza e a estrutura das rochas (e a sua maior ou menor vulnerabilidade à erosão); o clima, em especial no que diz respeito à pluviosidade, à temperatura e aos ventos; e, ainda, outros factores, próprios do mar, como sejam as vagas (intensidade e orientação), as marés e as correntes marinhas. Em complemento das acções mecânicas destes agentes forçadores, são ainda importantes as de alteração química e/ou de dissolução que a água do mar exerce sobre as rochas do litoral, com efeitos variáveis em função das respectivas naturezas. Por outras palavras, pode dizer-se que esta interface da hidrosfera com a litosfera se define pelas leis naturais, ou seja, pelas leis da física e da química, sempre subjacentes aos processos geológicos e biológicos.
As vagas, desencadeadas por acção do vento, transmitem até ao litoral a energia que dele recebem e têm a sua acção erosiva grandemente potenciada pelo efeito abrasivo dos materiais (areias, seixos, blocos) que põem em movimento. Em resultado desta acção formam-se os litorais de erosão, ou catamórficos, caracterizados por arribas, ou falésias alcantiladas, que recuam à medida que aumenta a plataforma litoral ou de abrasão marinha. Deste recuo restam como testemunhos pontas rochosas, promontórios ou cabos escarpados, muitas vezes prolongados mar adentro por pontuações igualmente rochosas (ilhéus, baixios, escolhos, abrolhos, calhaus, pedras, etc., nos diversos modos de dizer locais), com destaque para a Costa Vicentina e para os cabos da Roca, de S. Vicente, de Sagres e do Carvoeiro, com a conhecida e elegante Nau dos Corvos.

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