16.2.20

Grande Angular - A morte na primeira pessoa

Por António Barreto
No debate sobre a eutanásia e o suicídio assistido, há elementos lamentáveis. As confusões deliberadas, feitas por políticos, activistas e jornalistas, entre suicídio assistido e eutanásia, assim como entre eutanásia activa e passiva, ou entre eutanásia voluntária e involuntária, são o resultado da ignorância ou da vontade de enganar. É igualmente deplorável que se trate o referendo como uma faculdade de mero oportunismo: quando convém, somos a favor do referendo; quando se receia o resultado, somos contra. É finalmente lastimável que haja quem utilize um tema como este para incomodar um partido ou obrigar a realinhamentos partidários. Mas paciência! A democracia é assim. A política também. Não vale a pena aspirar, nem sequer em temas como este, a uma discussão serena.
Como sempre, o debate sobre a substância transforma-se em discussão sobre os procedimentos e as intenções. O recurso ao referendo, por exemplo. É um clássico. Defendem-no os que têm possibilidades de ganhar, os que querem incomodar os adversários e os que desejam compensar uma previsível derrota no Parlamento. Os seus adversários são exactamente o contrário. A mesma pessoa ou o mesmo partido pode ser sucessivamente a favor ou contra.
Sou geralmente favorável ao referendo e à iniciativa popular. Gosto de referendos, com serenidade, peso e medida. São mecanismos de recurso ao soberano com méritos evidentes: associam a população a decisões importantes, implicam as pessoas em obra comum, fortalecem uma decisão, permitem que muita gente se associe à política sem ser exclusivamente pela via partidária e dão a oportunidade a um debate público. Mas também com enormes defeitos, como sejam a demagogia, o populismo e a simplificação de problemas complexos para além dos limites razoáveis. E bem sabemos que os referendos, a quente, podem ser demagógicos.
Não me parece razoável recorrer a referendos para certas questões que impliquem a vida, a religião e alguns direitos fundamentais. Mas, se houver quem queira e se existir uma percentagem importante de pessoas e de instituições que o pretendem, então que se faça! Mesmo se não concordo. Sempre defendi o referendo da Constituição e da integração europeia, que nunca se fizeram, mas não defendi o referendo ao aborto, que se fez. Não apoiaria um referendo aos impostos (“Concorda com a percentagem máxima de 10% do rendimento para o volume de impostos pagos?”), mas percebo que haja quem o queira e iria votar se houvesse. O problema é que não se pode gostar dos referendos quando convém e eliminar a hipótese quando há riscos de perder.
O “referendo à eutanásia” é para mim desajustado e equívoco, mas percebo que haja quem o queira, até para tentar contrariar uma provável maioria parlamentar. Se houver, lá estarei. Se houver assinaturas em quantidade suficiente, se houver pressão social (da Igreja, por exemplo), se houver debate e sobretudo tempo, faça-se! 
Reconhecendo os perigos do referendo, é possível imaginar dispositivos que os diminuam. Exigir participação ou maiorias qualificadas, por exemplo. Estes mecanismos moderam os ânimos. Mas há um outro, essencial, o tempo. Entre a proposta de um referendo e a sua realização deveria decorrer um prazo de amadurecimento de vários anos, o que teria o condão de diminuir a demagogia, de arrefecer os entusiasmos e de obrigar a ponderar os argumentos. Tempo é reflexão.
Lamento que tanta gente levada pelo entusiasmo das guerras de religião, simplifique o que não o deve ser. E que faça amalgama de argumentos. A designação de “morte assistida” é deliberadamente equívoca. Há uma diferença abissal entre suicídio assistido e eutanásia. Como existe uma diferença essencial entre vários tipos de eutanásia. Os que misturam tudo têm evidentemente intenções escondidas: incomodar os adversários, desviar os méritos da questão ou reduzir o debate a uma batalha campal com interesses partidários evidentes.
A minha vida é… minha! Não é de Deus, nem do Estado, nem da Família. Quero ser só eu, tão informado e lúcido quanto possível, a decidir sobre a minha vida. São muitos os motivos que me podem levar a querer continuar ou terminar a vida: dor, sofrimento, desespero, resignação, arrependimento, erro, culpa, demissão, abandono, solidão e outras. Sou adversário de qualquer decisão que dispense a minha escolha. Tentarei elaborar um testamento vital, como tentarei dar instruções aos médicos, aos parentes e aos amigos íntimos. Mas, se não conseguir fazê-lo (imprevisão, acidente, perda de razão, etc.), não quero que o Estado, o médico ou um familiar me substituam. Quero que a medicina faça o que tem a fazer, sem encarniçamento. E isso não inclui a legalização da eutanásia. Há mil situações de fronteira, incluindo algumas com riscos, que devem ser consideradas, em cada caso, em cada situação, mas que não exigem lei geral. Sou favorável à despenalização do suicídio assistido, na exacta medida em que essa decisão depende de mim. A minha liberdade é o principal critério de decisão. E não a religião, a dignidade, a lei ou a pressão familiar.
Os defensores da eutanásia invocam o argumento da dignidade (na vida e na morte) da pessoa humana. Fazem bem. E têm alguma razão. Mas não toda. Também há dignidade na maneira como se suporta a dor e o sofrimento. Também pode haver dignidade no modo como se desiste ou renuncia. Por isso, o argumento da dignidade não deve ser invocado. O principal argumento é para mim a liberdade pessoal, a decisão autónoma, expressa e conhecida.
Aludir a outras prioridades, como sejam o desenvolvimento económico, a educação ou a corrupção é absolutamente demagógico: objectivos e prioridades estão em planos diferentes e não são alternativos ou incompatíveis. Do mesmo modo, a utilização do argumento dos cuidados paliativos é semelhante. Não são alternativos. Com ou sem eutanásia, com ou sem suicídio assistido, os cuidados paliativos são essenciais e urgentes. Não é admissível que se dê a entender que existe uma alternativa: eutanásia ou paliativos!
A legalização da eutanásia involuntária é perigosa e moralmente discutível. E remete para o médico e os serviços de saúde, públicos ou privados, decisões polémicas que não deveriam ser as suas. Por isso, respeito a legalização do suicídio assistido. Para quem a liberdade individual é o critério essencial, a decisão pessoal é o factor chave. Sem o factor primordial, a decisão pessoal do doente e a sua liberdade, a eutanásia não deve ser legalizada.
Público, 16.2.2020

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2 Comments:

Blogger Luísa Castelo-Branco said...


A sua opinião é a mais humana, lúcida e profunda com que me deparei.
Luísa Castelo-Branco

19 de fevereiro de 2020 às 21:31  
Blogger Unknown said...

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