26.8.24

FRANCISCO D’OLLANDA


Por A. M. Galopim de Carvalho

Francisco d’Ollanda, assim se escrevia, viveu entre 1517 e 1585. Foi uma das maiores figuras do Humanismo, um vanguardista apaixonado pela arte da Antiguidade Clássica e um dos mais ilustres tratadistas no Renascimento Europeu. Foi pintor e desenhador, arquitecto, ensaísta, historiador de arte e um dos primeiros e maiores críticos de arte da Europa do seu tempo. Francisco foi isto tudo a um elevado nível de excelência. Filho de um virtuoso iluminista muito próximo da Corte, começou por ser, como o pai, um profissional da iluminura, arte que considerava “soprada por Deus”. 

A pintura foi de todas as artes a mais desenvolvida e a que atingiu maior projeção entre nós, durante este período. Ainda predominantemente religiosa, a pintura começou a ter por clientela, não só o clero, mas alguns nobres e burgueses mais endinheirados. Executada, geralmente, sobre madeira de carvalho, a pintura destinada à clientela fora da igreja constava, maioritariamente de pequenos altares portáteis. A destinada aos altares das igrejas consistia em grandes retábulos ou painéis isolados ou múltiplos, passíveis de serem dobrados em duas, três ou mais partes, respectivamente conhecidos por dípticos, trípticos e polípticos.

Após o terrível terramoto de 1531, D. João III transferiu a corte para o palácio, em Évora e, aí, o jovem Francisco, com 14 a 15 anos, foi moço de câmara do seu filho mais velho, D. Afonso, e beneficiou da proteção da sua esposa, que lhe possibilitou receber, ao lado dos infantes, a melhor educação, na escola criada por mestre dominicano André de Resende. Grande ideólogo do Humanismo e do Renascimento, doutorado em Salamanca, Resende apercebeu-se das capacidades extraordinárias do jovem e encaminhou-o para uma estadia em Roma, como bolseiro da Coroa, a fim de prosseguir a sua formação. 

O século XVI foi, em Portugal, um tempo de absorção do Humanismo renascentista. A Corte teve papel importante nessa realidade, mandando vir, de Itália, humanistas credenciados, para a educação dos príncipes e promovendo a circulação de bolseiros portugueses pelos principais centros da cultura europeia de então. Francisco beneficiou desta política e, entre 1538 e 1540, frequentou o círculo de Vittoria Colonna, marquesa de Pescara, poetisa e personagem notável do Renascimento italiano, onde se relacionou com a elite dos pensadores e artistas europeus do século XVI, entre os quais o grande Miguel Ângelo, que despertou nele o fervor pelo Classicismo, de quem se fez fervoroso discípulo. Foram dois anos intensos a conviver com os grandes intelectuais do Renascimento europeu e a conhecer os maiores artistas desse século. Francisco foi ali testemunha privilegiada do trabalho dos mestres do seu tempo, e dos do passado, da arte italiana que se estava a produzir e da que se produziu no Mundo Antigo que tanto admirava. 

Regressado a Lisboa, continuou a beneficiar da protecção de D. João III. Com pouco mais de vinte anos, iniciou, na corte deste monarca, o “período dourado da sua vida”, cerca de duas décadas, como cortesão, escudeiro e fidalgo, artista reconhecido e intelectual escutado. Pelos muitos desenhos que foi esboçando na sua estadia em Itália, Francisco revelou-se, logo aí, um virtuoso na ilustração de "Antiguidades de Itália", importante manual para o estudo do património arqueológico da Roma antiga e da arte italiana, na primeira metade do século XVI. Foi nesta fase, no auge da intensa criatividade. que produziu o tratado “Da Pintura Antiga”, a primeira grande obra escrita, de que se serviu para valorizar a pintura, como trabalho intelectual, e introduzir o neoplatonismo na Teoria da Arte, ideias que foram recuperadas pelos italianos, meio século mais tarde.

Este importante tratado, que dedicou ao monarca, concluído em 1549, só foi publicado no século XIX. Consta de duas partes, a primeira trata de todos os géneros e modos de pintar; a segunda, intitulada “Diálogos de Roma”, tem Miguel Ângelo por interlocutor. Foi neste tratado que se tornou possível identificar a obra de Nuno Gonçalves. A sua paixão pelo Classicismo está patente neste seu tratado, no qual podemos conhecer o essencial da obra do grande artista italiano e da generalidade da arte que se produzia em Roma no segundo quartel do século XVI. Este trabalho é ainda importante para o conhecimento e apreciação da pintura da época O respectivo manuscrito, o original, levado para Espanha por um dos Filipes, é hoje propriedade da Real Biblioteca de Madrid. 

“Da Pintura Antiga” é considerado como o seu trabalho de maior consistência teórica, onde é visível a influência da obra do humanista, arquitecto, e teórico de arte genovês, Leon Battista Alberti (1404-1472). Eivado de um misticismo doentio e mergulhado nos ideais filosóficos do neoplatonismo florentino, Francisco foi também fortemente influenciado pela obra “Da Hierarquia Celeste”, do teólogo cristão e filósofo neoplatónico, Dionísio, o Areopagita (século I), onde se diz que o artista, desde que se mantenha em pureza, qual um sacerdote, tem o privilégio de expressar, com formas visíveis, as imagens de entidades invisíveis, como os anjos ou o próprio Deus. Francisco afirmava que o pintor se baseia em ideias sublimes, algo divinas, subjacentes à criação artística. Neste tratado, há uma divinização do artista, cuja obra é vista como uma criação de Deus. Deus que ele dizia ser o primeiro pintor. Como apêndice a este tratado, “Do Tirar Polo Natural”, é o primeiro estudo europeu sobre o retrato. Imbuído do ideal estético do Renascimento, Francisco afirmava que o objectivo primordial do artista era o de “incentivar a sua íntima originalidade, e depois seguir a lição da natureza, entendida como puro espelho do Criador.

Entre as suas principais obras, “Os desenhos das Antigualhas que vio Francisco d’Ollanda, pintor português”, com desenhos e aquarelas feitos em Roma, entre 1539 e 1540, é um precioso códice versando a arquitectura, a escultura, os jardins, as fontes, os costumes populares. Outro importante trabalho que realizou, entre 1540 e 1547, foi “Antiguidades de Itália", uma série de desenhos que põem em evidência a sua grande versatilidade intelectual, valioso contributo para o estudo do património arqueológico romano e da arte italiana da primeira metade do século XVI. Entre 1543 e 1573, desenhou “De Aetatibus Mundi Imagines”, um códice com representações espiritualizadas, animadas, com aparências oníricas e flutuantes e grande quantidade de abstrações. Aqui, ele, não só concretiza os princípios que enuncia teoricamente em “Da Pintura Antiga”, como transmite a mensagem bíblica, usando todo um conjunto de imagens visuais com sentido doutrinal, fruto da sua própria reflexão, devoção e experiência contemplativa.

“Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa” (1571) é um seu estudo pioneiro sobre o que falta à cidade de Lisboa, em termos de organização urbana, dedicado a D. Sebastião. É o primeiro ensaio sobre urbanismo publicado na Península Ibérica. Tem considerações inovadoras e muito inteligentes acerca deste problema nesta velha cidade, com projetos de melhoria. Nele, Francisco pretendeu, em vão, chamar a atenção do rei, mas a sua importância na Corte estava já muito apagada.

Por volta de 1545, Francisco começou a trabalhar naquela que foi a sua obra maior, um códice de imagens sobre a Criação do Mundo. Nos desenhos e nas pinturas que aqui nos deixou, ele, como se tem dito, “imitava-se a si próprio”. Aqui ele procurou tornar visíveis as suas convicções e teve, como também se tem dito, “a audácia de propor algo completamente diferente”. Este trabalho, de desconcertante originalidade, só ficou concluído em 1584, pouco antes de deixar este mundo. Após quase quarenta anos de trabalho e já sem o apoio do rei, Francisco de Holanda perdeu importância, viu-se afastado da Corte e passou a ser alvo do olho censório da Inquisição. Por exemplo, em “Da ciência do desenho”, concluído em 1549), a mão censória da Santa Sé corrigiu-lhe as ideias vanguardistas.

Como Arquitecto militar, desenhou, em 1541, a planta para fortaleza de Mazagão, em Marrocos, 

Nota:

Areopagita - Era a qualificação dada aos membros do Areópago, antigo tribunal ateniense, conhecido pela imparcialidade e honestidade com que operava a justiça, cujas reuniões aconteciam a céu aberto na coluna dedicada a Marte, a noroeste da Acrópole, em Atenas.

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