31.8.24

Grande Angular - Referendar a imigração

Por António Barreto

Pretender, de um dia para o outro, referendar a imigração, um dos mais complexos problemas de Portugal e da Europa, revela as intenções dos seus proponentes. Que são demagógicas e oportunistas. Oferecer-se para trocar a iniciativa de um referendo por um voto do orçamento exibe a baixeza moral e o cinismo dos seus autores. Felizmente que Ventura e Chega fizeram esta proposta, pois ela acaba definitivamente com as dúvidas que poderiam subsistir quanto aos seus planos. Fazem tudo o que podem e lhes deixam fazer para possuir a democracia, capturar o regime e sentar-se no poder. Nem sequer têm vergonha para esconder as suas intenções: revelam-nas abertamente, na convicção de que a provocação paga dividendos. O que não impede que tenham trazido a público dois problemas importantes. Primeiro: para que servem e como se convocam os referendos. Segundo: a necessidade urgente de uma política de imigração séria e consequente.

 

Os portugueses em geral e a classe política em particular não têm mostrado especial afecto pelo referendo. Foi recusado na Constituição e pudicamente aceite, mais tarde, numa sua revisão. Foi utilizado duas vezes para o aborto e uma para a regionalização. A participação eleitoral ficou abaixo dos 50%, o que é insuficiente: a lei considera o referendo não vinculativo.

 

A grande oportunidade histórica para realizar um referendo, a aprovação da primeira Constituição democrática, foi deliberadamente perdida, os poderes não quiseram e a opinião pública não se importou. Outras oportunidades de semelhante poder simbólico foram as duas mais importantes revisões constitucionais (1982 e 1989), igualmente afastadas. Outra hipótese, bem calhada, era a adesão plena à União Europeia: foi posta de parte pelos partidos e pelas autoridades do seu tempo. As razões pelas quais não se gosta de referendos são difíceis de determinar. Receio de que a opinião pública critique os partidos? É possível. Confiança absoluta nos mecanismos partidários clássicos da democracia representativa? É crível, mesmo sabendo que muitos países com pergaminhos democráticos recorrem ao referendo e à iniciativa popular com frequência. Receio do veredicto popular que possa contrariar os poderes do dia? Certamente. E muitas mais razões. Na verdade, o referendo não é por si próprio um vício. Nem uma virtude. É aceitável que certos temas não possam ser referendados em qualquer situação, por razões de ordem constitucional, legal e até moral. Por exemplo, não se pode referendar a perda de independência. Nem o estabelecimento de ditadura. Nem a declaração de guerra. Mas poderia em teoria referendar-se a maior parte dos grandes temas da política nacional. O que não é o caso entre nós. Na verdade, a Constituição exclui da possibilidade de referendo uma quantidade excessiva de matérias.

 

É frequente ouvir quem tolere o referendo, desde que não se aplique a certas condições. É natural que assim seja. Mas é forçoso pensar que não se deve aceitar o referendo apenas quando não há risco de perder. Quem luta contra o referendo sobre matéria constitucional, a integração europeia, a liberdade religiosa ou a imigração teria o dever de estar disposto a qualquer resultado, favorável ou não às suas opiniões.

 

Outra coisa é a condição concreta. Um referendo sob pressão dos acontecimentos é condenável. Referendar a prisão perpétua ou a pena de morte, depois de crimes hediondos, é demagógico. Referendar qualquer tema no seguimento de factos que comoveram a opinião e que tenham uma qualquer relação com o terrorismo, o conflito social, o crime abominável, a perseguição religiosa, a violência familiar, o tráfico sexual, o racismo e a imigração ilegal é o mesmo que procurar soluções preconceituosas para problemas complexos. 

 

Referendar qualquer princípio ou política a título de compensação política é igualmente negativo. Por isso, é razoável que a legislação preveja condições especiais para realização de um referendo. Por exemplo, entre a apresentação de uma proposta e a sua realização deveria mediar um longo prazo de pelo menos três a cinco anos, para que haja reflexão, debate, estudo e ponderação. E ânimos acalmados. Além disso, uma proposta de referendo deverá recolher pareceres circunstanciados das autoridades parlamentares, governamentais e presidencial, além de apreciações fundamentadas das grandes instituições judiciais, científicas, religiosas e outras. Sobre o conteúdo e a oportunidade.

 

Neste aspecto, o tema da imigração, proposto pelo Chega, é uma aberração. Pretendem os seus autores realizar o referendo o mais rapidamente possível, quando na sociedade há questões de vivacidade excessiva, isto é, a conjuntura não é favorável. Além disso, os seus proponentes não estão interessados nos resultados, nem sequer convencidos da justeza das suas opiniões. Com efeito, eles próprios anunciaram as suas condições, em especial o facto de renunciarem à sua proposta no caso de obterem um ganho de causa na votação do orçamento! 

 

Por outro lado, é sabido que uma parte dos problemas da imigração reside na percepção dos residentes nacionais e dos imigrantes. Há ou não racismo nas instituições e na política? A imigração está ligada ao trabalho clandestino, às más condições de vida e à marginalidade? A imigração é fonte de comportamentos ilegais perante os trabalhadores, as crianças, os velhos e as mulheres? A imigração tem correlação com o tratamento desumano de animais? Há ou não há relações entre as comunidades imigrantes e o recrutamento e treino de actividade terroristas? Em que condições é que os residentes nacionais têm comportamentos desumanos, odiosos e violentos para com os imigrantes? A imigração é fonte de dispêndio excessivo e injusto em saúde e educação? 

 

Nada disto está devidamente estudado. Há opiniões sobre tudo e mais qualquer coisa, dependendo das crenças de quem as exprime. Sobre todas estas realidades, há percepções, desconfiança, generalizações e medos, quase não há factos nem certezas. A ideia de não estudar estes assuntos, nomeadamente de não inquirir a naturalidade, a prática religiosa e a pertença a certas comunidades, constitui erro inadmissível. Deriva de uma boa intenção, a de não estabelecer desigualdades, mas resulta exactamente no seu contrário, aumenta o preconceito e provoca o comportamento irracional.

 

A obscura proposta de Ventura e Chega vai adiar e criar dificuldades à definição de uma política de imigração, necessidade indiscutível.

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Público, 31.8.2024

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3 Comments:

Blogger opjj said...

Relembro V.EXª que era TABU e crime quando Ventura começou a falar de imigrantes. Hoje é conversa constante nos políticos.
Daqui a 20 anos não estaremos cá e pela reprodução, Portugal enfermará de sérios problemas. Meu Pai emigrou - a salto- com 60 anos de idade e como tantos outros tinham trabalho garantido e nada de subsídios. Já vejo indianos no metro e não só a pedir esmola e descalços?

1 de setembro de 2024 às 13:03  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Este comentário foi removido pelo autor.

1 de setembro de 2024 às 19:15  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Pelo que eu percebo, o essencial desta crónica não é propriamente sobre imigração, mas sim acerca do facto de um partido querer fazer depender a aprovação de um Orçamento (algo circunstancial, válido apenas para 2025) de um Referendo acerca de algo que é, de facto, um problema muito sério — e não só da sociedade portuguesa.
Isso é querer fazer troca-por-troca de coisas com alcance completamente desproporcionado.

1 de setembro de 2024 às 19:17  

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