13.3.07

Curtas-letragens

Paixão

JOHN ANTHONY O’NIEL conheceu a urgência da paixão aos quatro anos de idade. Nas férias grandes entrou com a mãe numa loja de artesanato e um segundo depois fixou os olhos azuis nos olhos azuis de uma Alexandra portuguesa da mesma idade, da mesma estatura, de iguais cabelos louros encaracolados sobre a tez branca. Desprendeu-se da mão que o levava e tomou a mão que o recebeu, para não mais a soltar em toda a tarde. Falavam sem pausa, segredavam, riam, entendiam-se, sabe Deus como, nessa linguagem buliçosa e indecifrável das crianças felizes. A mãe dele e o pai dela acharam graça, combinaram deixá-los juntos por mais umas horas não sem antes ficar este com o passaporte da senhora enquanto não voltasse para devolver a filha.
O resto da tarde, entre compra e compra, os dois viveram um paraíso de brincadeira e gargalhada, de correrias e gritos, esse mesmo que a vida mais tarde lhes roubará para sempre. Incansáveis, incombustíveis, determinados, regressaram enfim à loja, mãos dadas. De repente grave porque assim o aconselhavam as circunstâncias, John Anthony puxou a saia da mãe e declarou num tom inquestionável: “levamo-la para casa”.
Muito se riram os pais com a solenidade do desplante mas ele não achou piada nenhuma: puxando de novo a saia, repetiu a declaraçâo, um tudo-nada mais alto e mais sério. A mãe tentou explicar-lhe entre sorrisos e argumentos desconchavados a impossibilidade de tal desejo, sem êxito. Então o pai da pequena Alexandra sentiu-se na obrigaçâo de terçar na matéria e portuguesmente puxou ao sentimento, olhando-o nos olhos: o que seria dele sem a sua pequenita, sem a sua alegria, sem o seu carinho, a tristeza lá em casa, as saudades... e John Anthony, sem perceber patavina do que aquele senhor falava, entendia muito bem as inflexões da voz e os arroubos, os gestos empolados desenhando súplicas no vácuo, os ares tão dramáticos de sofrimento paterno. Quanto mais o senhor falava mais ele apertava a mãozita da Alexandra e enrolava os dedos na saia da mãe...
Vencido finalmente por tanto e tão expressivo parlapié, mas não convencido, tornou a puxar a saia da mãe, esta vez com determinação última. Ergueu a cabeça para ela com ar de fastio e condescendeu sem convicção, contrariado, no seu inglês macarrónico: “Tá bom, levamos o pai dela também”.

Etiquetas:

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

que delícia!...

13 de março de 2007 às 13:52  
Anonymous Anónimo said...

Uma beleza!

13 de março de 2007 às 18:46  

Enviar um comentário

<< Home