8.3.08

Nó matrimonial

Por Antunes Ferreira
MOÇA BEM LANÇADA, a Ermelinda. Com tudo nos devidos lugares. Boa pra milho dizia-se na tasca do Jaquim, a malta era lixada, a Rua Maria Pia uma confusão, a Meia Laranja uma porra! Droga de toda a qualidade (?), dimensão e feitio, desde o charro até à pastilha, e raparigas da vida, ou melhor, putas. Os carros estacionados fora de qualquer lei, uma boa parte de foras-da-lei, dificultam o trânsito «normal» e os condutores «saudáveis» sabem que, ao passar por ali, enfrentam provas de rali que nem o mais pintado Loeb enfrentaria com destemor q.b..
Continuando. A jovem até já fora candidata a miss não se sabe exactamente o quê, num concurso organizado por revista – hoje diz-se magazine, muito mais bué de fixe – supostamente feminina e patrocinado, vejam lá, por uma marca de telemóveis e por um crédito pessoal pelo telefone, antes deveria ser via pombo correio. Arrancara um honroso terceiro lugar, subira ao pódio, levara faixa. E ramo de flores, está bem de ver.
Como escrevia a Maysa do Correio do Coração do Diário Ilustrado em papel cor-de-rosa (lembram-se? Não? Eu trabalhei lá e, na doença do Roussado Pinto, Ross Pyn para efeitos de livros policiais, dei corpo à hipotética conselheira amorosa. Nos anos cinquenta e tais. Justificado, portanto: não se recordam, nunca o viram, não entram na categoria do Palyentosaurus Akromagnonicus. Eu, sim.), pois, como escrevia a suposta pitonisa, miss sem ramalhete – não chega.
Ermelinda, consequentemente, era objecto de cobiças as mais despudoradas, dos dichotes mais insinuantes e alguns mesmo até menos elegantes, despertava desejos inconfessados, sonhos lubrico-sensuais e assim. Babadinhos, muitos. Presos pelo beicinho, mais. Começaram a surgir os pedidos de namoro. E as propostas mais ousadas, para não dizer indecorosas. Em pleno século XXI, em que o sexo perdera quase todo o encanto que anteriormente tinha, os avanços da malta eram constantes e persistentes.
Abro aqui uma parentética. Na Proto História, mais coisa, menos coisa, em que comecei a olhar para as miúdas, era proibido, por exemplo, o biquini. Havia muito mais coisas interditas aos cidadãos, mas esta é apenas a demonstração da estupidez e do obscurantismo do regime salazarento. Contava-se, então, a anedota do cabo-de-mar que, na praia de Carcavelos, se deparara com uma jovem em tais preparos. A autoridade avançou logo com um severo «minha senhora, é proibido o uso de fatos de banho com duas peças»!
A donzela era francesa, o seu aspecto denotava isso, mas o brioso agente não se intimidara. A lei é lei, há que cumpri-la. Dura lex, sed lex diziam os Romanos – e diziam bem. O caso era que a gaulesa biquinizada tinha os avós naturais de Mirandela e, por isso, entendia perfeitamente o Português e falava-o bem, ainda que carregando nos erres e anazalando sons que não o deviam ser. «Senhorr Põlicia, qual das duas peças querre que eu tirre»? Galhofa, só galhofa. Andava uma mãe a criar um filho, para que ele viesse a sujeitar-se a tais desmandos.
Isto para vos dizer que era mais o mistério que envolvia um tornozelo bem torneado, que permitia considerar como seria o resto, um ombro menos tapado que possibilitava imaginar a continuação dele, uma blusa mais cingida que levava a sonhar com o conteúdo bem dimensionado. Quando entrei para a Faculdade de Direito, a malta atravessava a terra de ninguém, ou seja o largo entre a nossa e a de Letras, encimado pela nova Reitoria, para ir ver as meninas. Era o que então se chamava empernanço de pestana...
Hoje, a nudez e a cópula andam por aí, como o Dr. Santana Lopes, sem peias nem adivinhações. O fruto proibido é sempre o mais apetecido, vox populi. Era, pelos vistos. Agora, todas (ou quase) as práticas sexuais são às escâncaras, nem sequer à média luz. O tango correspondente já foi, será que terá existido o Carlos Gardel? Já basta de parênteses sobredimensionado e sem sustentação aparente. Ponto final, parágrafo. Na outra linha.
Hermenegildo era um dos aspirantes à terceira classificada, sem coroa, mas com buquê. Um trinca-espinhas, tão, tão, tão, que os amigos dele diziam que conseguiria, se o tentasse, tomar banho num carril de eléctrico da Carris. Exagero. Os mais comedidos apenas afirmavam que ele mesmo sob uma bátega de água, não se molhava pois podia passar por entre os pingos da chuva. Nada, não. Era mais um gozo, face ao esquelético.
Para obviar a tais enxovalhos, ainda que amigáveis, o rapaz, no Inverno que corria, passou a usar quatro camisolas sobrepostas, por cima da camisa e da camisola interior. O que lhe dava uma massa corporal aceitável, no mínimo. Ceroilas, dois pares, calças de pijama e a forrar isso tudo, os jines. Não se tornara num hércules-de-bairro, mas estava muito mais apresentável. Feitios.
A verdade é que a Ermelinda atentou nele. E ele, claro, nela. Foi um namoro de fórmula um, terminado na igreja, que os pais dela eram praticantes de missa semanal e comunhão. Hermenegildo, ainda que respeitador e pacato, não se dava muito a essas práticas, nem sequer tinha algum amigo sacerdote. Mas, o dever assim o exigira, e ala que se faz tarde, fato preto e arcaboiço enchumaçado convenientemente, como se lhe tornara habitual.
Segundo andar na Falagueira, por cima de uma loja de móveis e electrodomésticos, olha que novidade por tais bandas, entrada inicial como prenda dos sogros do nubente, mobílias e afins da responsabilidade dos da noiva, os padrinhos dela avalizaram o empréstimo bancário e os dele, gente apessoada e com bagalhuço, um carrito coreano, ar condicionado, GPS e avisadores sonoros da marcha atrás, porreiros para o estacionamento em espaços mais apertados.
Depois da fuga estandardizada no final do copo de água, ei-los no lar, doce, lar. O Hermenegildo, se se despisse a descoberto, seria uma catástrofe, pensava. Quanto ao resto, não tinha dúvidas: a fornicação era tiro e queda, nisso era ele seguro. Mas, na ossadura é que estava o busílis. Que diria a recém casada? Por isso, entre os primeiros beijos e os correspondentes ensarilhansos linguais, sussurrou-lhe ao ouvido cujo lóbulo mordiscava, que se metesse na cama, despidinha, e apagasse a luz, que era um fetiche dele. Assim se fez.
O macho despojou-se das camadas de roupa, ficou em pelota, afastou o lençol matrimonial e com um entusiasmo desmedido atirou-se à esposa. Esta, na escuridão, deu um grito lancinante: Hermenegildooooooo!!!! Porra, que aconteceu, meu amor, tens assim tanto medo? E ela, não meu querido, caiu-me em cima o crucifixo que estava pendurado na parede, por cima da cama. Ele há dias em que um homem não pode deitar-se, à noite.

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1 Comments:

Blogger Quidquid latine dictum sit, altum videtur said...

Parabéns. Que belo e profundo texto lavrou Carlos Medina Ribeiro.

8 de março de 2008 às 16:44  

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