‘Angola é nossa!’
Por António Barreto
SÓ HOJE ME CHEGOU ÀS MÃOS um livro editado em 2007, “Holocausto em Angola”, da autoria de Américo Cardoso Botelho (Edições Vega). O subtítulo diz: “Memórias de entre o cárcere e o cemitério”. O livro é surpreendente. Chocante. Para mim, foi. E creio que o será para toda a gente, mesmo os que “já sabiam”. Só o não será para os que sempre souberam tudo. O autor foi funcionário da Diamang, tendo chegado a Angola a 9 de Novembro de 1975, dois dias antes da proclamação da independência pelo MPLA. Passou três anos na cadeia, entre 1977 e 1980. Nunca foi julgado ou condenado. Aproveitou o papel dos maços de tabaco para tomar notas e escrever as memórias, que agora edita. Não é um livro de história, nem de análise política. É um testemunho. Ele viu tudo, soube de tudo. O que ali se lê é repugnante. Os assassínios, as prisões e a tortura que se praticaram até à independência, com a conivência, a cumplicidade, a ajuda e o incitamento das autoridades portuguesas. E os massacres, as torturas, as exacções e os assassinatos que se cometeram após a independência e que antecederam a guerra civil que viria a durar mais de vinte anos, fazendo centenas de milhares de mortos. O livro, de extensas 600 páginas, não pode ser resumido. Mas sobre ele algo se pode dizer.
O HORROR EM ANGOLA começou ainda durante a presença portuguesa. Em 1975, meses antes da independência, já se faziam “julgamentos populares”, perante a passividade das autoridades. Num caso relatado pelo autor, eram milhares os espectadores reunidos num estádio de futebol. Sete pessoas foram acusadas de crimes e traições, sumariamente julgadas, condenadas e executadas a tiro diante de toda a gente. As forças militares portuguesas e os serviços de ordem e segurança estavam ausentes. Ou presentes como espectadores.
A IMPOTÊNCIA OU A PASSIVIDADE cúmplice são uma coisa. A acção deliberada, outra. O que fizeram as autoridades portuguesas durante a transição foi crime de traição e crime contra a humanidade. O livro revela os actos do Alto-Comissário Almirante Rosa Coutinho, o modo como serviu o MPLA, tudo fez para derrotar os outros movimentos e se aliou explicitamente ao PCP, à União Soviética e a Cuba. Terá sido mesmo um dos autores dos planos de intervenção, em Angola, de dezenas de milhares de militares cubanos e de quantidades imensas de armamento soviético. O livro publica, em fac-simile, uma carta do Alto-Comissário (em papel timbrado do antigo gabinete do Governador-geral) dirigida, em Dezembro de 1974, ao então Presidente do MPLA, Agostinho Neto, futuro presidente da República. Diz ele: “ Após a última reunião secreta que tivemos com os camaradas do PCP, resolvemos aconselhar-vos a dar execução imediata à segunda fase do plano. Não dizia Fanon que o complexo de inferioridade só se vence matando o colonizador? Camarada Agostinho Neto, dá, por isso, instruções secretas aos militantes do MPLA para aterrorizarem por todos os meios os brancos, matando, pilhando e incendiando, a fim de provocar a sua debandada de Angola. Sede cruéis sobretudo com as crianças, as mulheres e os velhos para desanimar os mais corajosos. Tão arreigados estão à terra esses cães exploradores brancos que só o terror os fará fugir. A FNLA e a UNITA deixarão assim de contar com o apoio dos brancos, de seus capitais e da sua experiência militar. Desenraízem-nos de tal maneira que com a queda dos brancos se arruíne toda a estrutura capitalista e se possa instaurar a nova sociedade socialista ou pelo menos se dificulte a reconstrução daquela”.
ESTES GESTOS DAS AUTORIDADES portuguesas deixaram semente. Anos depois, aquando dos golpes e contragolpes de 27 de Maio de 1977 (em que foram assassinados e executados sem julgamento milhares de pessoas, entre os quais os mais conhecidos Nito Alves e a portuguesa e comunista Sita Vales), alguns portugueses encontravam-se ameaçados. Um deles era Manuel Ennes Ferreira, economista e professor. Tendo-lhe sido assegurada, pelas autoridades portuguesas, a protecção de que tanto necessitava, dirigiu-se à Embaixada de Portugal em Luanda. Aqui, foi informado de que o Vice-cônsul tinha acabado de falar com o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Estaria assim garantido um contacto com o Presidente da República. Tudo parecia em ordem. Pouco depois, foi conduzido de carro à Presidência da República, de onde transitou directamente para a cadeia, na qual foi interrogado e torturado vezes sem fim. Américo Botelho conheceu-o na prisão e viu o estado em que se encontrava cada vez que era interrogado.
MUITOS DOS RESPONSÁVEIS pelos interrogatórios, pela tortura e pelos massacres angolanos foram, por sua vez, torturados e assassinados. Muitos outros estão hoje vivos e ocupam cargos importantes. Os seus nomes aparecem frequentemente citados, tanto lá como cá. Eles são políticos democráticos aceites pela comunidade internacional. Gestores de grandes empresas com investimentos crescentes em Portugal. Escritores e intelectuais que se passeiam no Chiado e recebem prémios de consagração pelos seus contributos para a cultura lusófona. Este livro é, em certo sentido, desmoralizador. Confirma o que se sabia: que a esquerda perdoa o terror, desde que cometido em seu nome. Que a esquerda é capaz de tudo, da tortura e do assassinato, desde que ao serviço do seu poder. Que a direita perdoa tudo, desde que ganhe alguma coisa com isso. Que a direita esquece tudo, desde que os negócios floresçam. A esquerda e a direita portuguesas têm, em Angola, o seu retrato. Os portugueses, banqueiros e comerciantes, ministros e gestores, comunistas e democratas, correm hoje a Angola, onde aliás se cruzam com a melhor sociedade americana, chinesa ou francesa.
PARA OS PORTUGUESES, para a esquerda e para a direita, Angola sempre foi especial. Para os que dela aproveitaram e para os que lá julgavam ser possível a sociedade sem classes e os amanhãs que cantam. Para os que lá estiveram, para os que esperavam lá ir, para os que querem lá fazer negócios e para os que imaginam que lá seja possível salvar a alma e a humanidade. Hoje, afirmado o poder em Angola e garantida a extracção de petróleo e o comércio de tudo, dos diamantes às obras públicas, todos, esquerdas e direitas, militantes e exploradores, retomaram os seus amores por Angola e preparam-se para abrir novas vias e grandes futuros. Angola é nossa! E nós? Somos de quem?
«Retrato da Semana» - «Público de 13 Abr 08
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20 Comments:
Isto que aqui fica exarado é uma calamidade, uma vergonha colectiva.
Se ninguém vier, convincentemente, desmentir estas declarações, estes testemunhos - pessoalmente ainda me custa a crer no li, em particular, na carta atribuída a Rosa Coutinho - é caso para entrarmos em mais uma grave depressão colectiva. Espero com ansiedade os desmentidos.
Sendo o artigo assinado por António Barreto, a credibilidade do afirmado é elevada, mas todos, mesmo os mais advertidos, podem ser induzidos em erro.
De alguma coisa, do imenso acervo de atrocidades ocorridas em Angola, na sequência do 25 de Abril de 1974 – tudo a pesar sobre esta data, cada vez mais equívoca –já todos sabíamos, mas isto ultrapassa a capacidade de sofrimento da nossa já muito torturada memória política da era contemporânea.
Se isto tudo se confirmar, como poderemos ainda, aos olhos dos nossos compatriotas vindouros, alcançar eventual redenção, de tamanha tragédia colectiva, irresponsavelmente consentida ?
Consultemos todos a nossa consciência mais profunda…
A carta atribuída a Rosa Coutinho, caso seja autêntica, deixa-me arrasado.
Fiz o meu serviço militar na Armada e algumas vezes me cruzei com ele na vedeta que fazia a travessia para o Alfeite.
Estávamos antes do 25 de Abril. Rosa Coutinho era um oficial e nós simples cadetes, mas a simpatia e boa disposição que aquele homem irradiava punha-nos à vontade.
E, apesar das divergências políticas pós 25 de Abril, não havia motivos para deplorar a recordação de Rosa Coutinho como pessoa.
Esta revelação, a ser verdade, pela barbaridade inominável que traduz, vem desferir um rude golpe na minha recordação de Rosa Coutinho.
Já não tenho idade para acreditar mais, ou acreditar menos, no mundo e nas pessoas, tantas têm sido as revelações que fui recolhendo ao longa da vida, mas há coisas que continuam a custar.
Independentemente de se tratar de Rosa Coutinho, o conjunto de recomendações constantes daquela carta é de uma tal desumanidade que coloca o seu autor ao nível do mais asqueroso réptil.
Pelos termos em que a tal carta está escrita, só apetece dizer que não tem pés nem cabeça, pelo que me parece improvável, à luz do senso-comum, que seja verídica.
Toda a gente sabe que, em tempo de guerra, essas coisas que nela se lêem, quando muito, "dizem-se" mas NUNCA se "escrevem".
Por sinal, o JPP ainda há dias publicou no ABRUPTO fac-similes de textos em tudo semelhantes. Eram versões do «AVANTE!» escritas pela PIDE, e até o linguajar era o mesmo.
Palpita-me que A. Barreto ainda vai ter alguns dissabores se, como penso, caiu num conto do vigário.
Esperemos para ver, pois esta crónica, com certeza, vai ter repercussões.
O meu Pai foi, durante um certo período, parceiro de bridge de Rosa Coutinho. Parou porque o achava "repugnante". Não sei se pode, ou deve, extrapolar de uma mesa de cartas para a política, mas a carta não choca com aquilo que dizia em público nos anos de 74 ou 75 - é só um bocado pior, não é uma surpresa total.
O homem era de facto repugnante - mas forçoso, e triste, é reconhecer que não foi, nem de longe, o único.
Eu até acredito que o R.C. seja repugnante, que haja outros ainda piores, etc.
E também acredito no que A.B. diz na crónica, com excepção do teor da carta, pois é, pura e simplesmente, IMPLAUSÍVEL que alguém, mesmo que pensasse tudo aquilo, o escrevesse.
Não só no conteúdo, como nos termos. Ninguém escreve "aquilo" nem "assim", muito menos alguém com um mínimo de experiência militar e política como é o caso do R.C.(pense-se dele o que se pensar).
Em termos de credibilidade, uma coisa apresentada como sendo "um fac-simile de um papel timbrado do XPTO" não vale um caracol.
Mas, como atrás disse, aguardemos, pois o assunto deve ter seguimentos interessantes.
Apenas para que se saiba do que é que se está a falar, aqui fica:
Seja ele verdadeiro ou uma mera falsificação grosseira, o fac-simile referido na crónica pode ser visto [aqui].
Ora ainda bem que o link para o fac-simile foi afixado! É que o que ali se vê está ao nível das minhas brincadeiras quando, aos 10-12 anos, "rènava" aos polícias e ladrões.
Desculpem, meus amigos, mas agora já acho que não é só o "documento" que não tem pés nem cabeça. São também os que o levam a sério, como tenho lido em vários blogues onde ele é referido, suscitando os impropérios de quem, pelos vistos, é capaz até de acreditar no Pai Natal.
Não tenho opinião sobre R.C., mas parece-me impensável que alguém com a sua bagagem e responsabilidade, se atravesse a pôr aquilo por escrito. E logo um militar e marinheiro?
Segundo sei, de acordo com a carta de Rosa Coutinho a Agostinho Neto, enquanto este primeiro sugeria que fossem dadas instruções aos "militantes do MPLA para aterrorizarem por todos os meios os brancos (...) a fim de provocar a sua debandada de Angola" enviava os filhos para a escola integrados numa coluna militar armada até aos dentes.
Finalmente alguém mexe neste vespeiro...
Como sempre, as velhas feridas do colonialismo, o cataclismo da descolonização e a crítica pós-colonial.
Fanon, Said, Spivak e nenhuma teoria basta para explicar o fenómeno mais hegemónico da idade contemporânea: o imperialismo.
Tivéssemos seguido o conselho do Eça e do Ortigão e vendido as colónias e quiçá...
Bem sei que o tema "descolonização" mexe e muito com a chamada boa consciência de certa gente, mas decorridos trinta anos, há que fazer justiça!
Na África do Sul existe uma comissão para o apuramento da Verdade e a promoção da Reconciliação e da Justiça. A Verdade da "descolonização" é bem conhecida, embora calada pelos seus mais directos beneficiários. A Reconciliação está feita, conhecendo-se bem o carácter altaneiro das gentes que orgulhosamente não renegando o passado, souberam estender as mãos aos carrascos que lhes destroçaram as famílias e os privaram dos bens. Falta a Justiça. Aos crimes perpetrados pela soldadesca portuguesa e dos movimentos guerrilheiros, somam-se aqueles que premeditados e autorizados pelos mais altos responsáveis do poder, carecem de punição exemplar. O Tribunal Internacional de Haia que julga os crimes de limpeza étnica cometidos na Bósnia, alerta o mundo para as consequências que recaem sobre os mandantes e autores morais, julgados tão responsáveis como os simples executores. Chegou a altura do ajuste de contas. Quem consultar os jornais delirantemente publicados durante os anos de 1974, 75 e 76, encontrará sobejas provas de delito e de reivindicação dos crimes. Precisaremos de um Baltazar Garzón?
A crónica de hoje de Ferreira Fernandes, no 'DN', é sobre a carta aqui referida. Como ele é um dos cronistas convidados deste blogue, o texto foi também afixado.
Está em 'post' próprio, [aqui].
Carta falsa "porque sim"?
Convenhamos que é curto...
Jacinto,
Se lhe derem para a mão uma nota de 4 euros, perde muito tempo a explicar a alguém porque é que acha que é falsa? Simplesmente porque uma nota desse valor não existe.
Da mesma forma, a carta é de tal modo idiota (nem os putos escrevem coisas dessas quando brincam aos polícias e ladrões!) que fico sem saber o que pensar de quem, lendo-a, a leva a sério.
Há um ditado que diz «Facilmente cremos quando queremos». Neste caso é isso que sucede.
Eu também não gosto do PCP, nem do Rosa Coutinho nem do MPLA. Mas nunca pensaria usar uma indigência destas como argumento. E tenho pena que A. Barreto (pessoa que muito aprecio) tenha aceite uma espécie de "nota de 4 euros".
Se não houvesse gente a acreditar em gnomos nem em gambusinos, este mundo não tinha graça nenhuma.
QUOD VOLUMUS FACILE CREDIMUS
Mendonça diz: "palpita-me que A. Barreto ainda vai ter alguns dissabores se, como penso, caiu num conto do vigário".
Mas esta "carta" publicada por António Barreto (AB) foi efectivamente, e como diz Ferreira Fernandes, originalmente publicada num jornal sul-africano em 1975 e é comprovada e simplesmente FALSA. Hoje, quase só sites ultraminoritários e de extrema direita (e agora A.B.!!) citam esta "carta" (por ex. um tal "pena e espada" e "anticomunistainternacional").
Ou seja, para mim, infelizmente, este é um caso de má fé, apenas. Não posso acreditar que um eminente sociólogo com a experiência de vida de A.Barreto seja um pobre incauto. Ele cai é na tentação de se atirar a tudo o que cheire a vermelho quando pode. Creio sinceramente que tem complexos por resolver dos tempos em que foi ministro da agricultura.
Quando se tem razão não é preciso mentir. Este caso, vindo da parte dum "cientista social" (e que sabe que é lido e ouvido com particular atenção), é triste, lamentável, inaceitável, vergonhoso!
Katynia,Lyssenko, Chernobyl - alguns dos "gambuzinos" que nunca teriam existido,segundo a benemérita agremiação...
Apenas me vou pronunciar sobre a "carta":
Qualquer pessoa que tenha "feito a tropa", especialmente no tempo da Guerra Colonial, sabe perfeitamente que "documentos" como esse eram o B-A-BA da contra-informação e feitos às dúzias.
O único problema deste, em concreto, é ser demasiado mau. Mas, pelos vistos, o labrego que o escreveu foi mais bem sucedido do que seria de imaginar!
Claro, o pacto germano-soviético também nunca existiu, nem os milhões de mortos no gulag, nem os fuzilamentos em Cuba, nem o massacre de ex-soldados negros portugueses na Guiné, Angola e Moçambique. Tudo invenções capitalistas. Os senhores meçam bem o nível moral e intelectual daqueles fulanos e na euforia e fuga para a frente do momento, podem ter feito coisas bem piores. A tropa portuguesa portou-se miseravelmente no 7 de Setembro em Moçambique, qualquer maguérre ou tombazana o confirma. Portou-se escabrosamente em Angola durante a pretensa transição. Vão aos arquivos da rtp e vejam documentários. Consultem a BBC. Leiam os jornais da época e interiorizem bem o que aquela gente dizia com o ar mais sério deste mundo.
Uma pergunta: após o acordo ortográfico, vão abolir a palavra traidor no dicionário? Claro que não, porque não consta na matéria em discussão. Ainda bem.
Ora aqui está o homem (António Barreto) que destruío a Reforma Agrária em Portugal depois da Gloriosa Revolução do 25 de Abril de 1974. 25 DE ABRIL DE SEMPRE, FASCISMO NUNCA MAIS! António Carvalho
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