Drama de faca e garfo
Por Ferreira Fernandes
ERA, TALVEZ, a última boa certeza da vida: a mesa é cada vez mais farta. Na comparação com o passado esse era o único item imbatível da modernidade. Diz-se e bem: hoje já não há a segurança (nem a música, nem o Benfica) de antigamente.
Até nessa questão da comida, num ponto - os sabores -, a memória ganhava sobre o presente: oh, as ameixas de quando eu era miúdo! Tudo de antes é melhor que hoje, com aquela excepção: à mesa já não se passa fome. "Em minha casa dividia-se a sardinha em três", é a frase com que os avós julgam curar o fastio dos netos.
Era a última boa certeza da vida, a tal mesa farta. Mas não é que até isso começa a desmoronar? Olhem as notícias da arca vazia. As reservas mundiais de alimentos estão no ponto mais baixo desde há 30 anos. E, pela primeira vez na sua história, os EUA racionam a compra do arroz: nos supermercados só se pode levar, por pessoa, quatro sacos de nove quilos de arroz!
É ainda muito arroz, mas é uma garfada num símbolo.
«DN» de 26 Abr 08 - c.a.a.Etiquetas: F.F
1 Comments:
No «DN» de 27 Ab 08, Ferreira Fernandes retoma o tema. O texto é colocado aqui, em "comentário" (e não em 'post' próprio, como é habitual), para evitar a afixação de duas crónicas seguidas, sobre o mesmo assunto e do mesmo autor.
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O PÃO, O BIOCOMBUSTÍVEL DAS REVOLTAS
Maria Antonieta nunca disse: "O povo não tem pão? Que coma brioches!" Em Confissões, livro escrito em 1766, Jean-Jacques Rousseau atribui a frase a uma "grande princesa" e nessa data Maria Antonieta tinha 10 anos e vivia em Viena. Mas interessa-me a frase porque prova que o estômago vazio é que dá horas às revoluções, não a falta de liberdade. O povo de Paris foi cercar o palácio de Trianon, protestando pelo preço do pão, primeiro, e só mais tarde é que decidiu libertar os presos da Bastilha.
Lembro-o pelas revoltas que vão por todo o mundo, do México à Malásia, por causa da escassez de comida. Segundo o Banco Mundial, o preço dos bens alimentares subiu 83% nos últimos três anos. Para explicar o drama global, nada como a língua global: em inglês, esfomeado (hungry) e revoltado (angry) são palavras próximas na escrita e pronunciam-se de forma ainda mais parecida. Entre o engolir em seco e as barricadas vai um intervalo mais curto que uma digestão saudável.
E tudo porque o petróleo sobe a 120 dólares o barril. Subindo, incentiva a compra de biocombustíveis (sem precisar da Rainha Isabel de Inglaterra dizendo: "O povo não faz o pleno com gasóleo? Que encha com etanol!"). Logo, sobe o preço do milho e do açúcar. Não se podendo comprar tanto milho, compra-se mais arroz. O preço do arroz dispara por causa do barril de petróleo, apesar de os seus sacos de bagos não servirem para mover bielas de um motor.
Ciclo infernal. A economia é uma ciência. A ciência é uma coisa de laboratórios. Nos laboratórios há vasos comunicantes. Os vãos comunicantes explicam que nada se perde, tudo se transforma, o que esvazia daqui, enche ali. Quando uma borboleta bate as asas numa refinaria do Iémen, há uma tempestade nos arrozais da Índia. E tudo à volta do essencial, o pão.
D' Os Miseráveis, de Hugo, a Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch, de Soljenitsin, tudo anda à volta de um pão. Quando John Ford quer contar um sonho, um símbolo de fartura, a Califórnia, pára numa cena de As Vinhas da Ira. Durante a Grande Depressão, a família de Tom Joad percorre a estrada 66 numa fuga bíblica. Numa estação de serviço (olhem, já lá está o petróleo), os Joad não podem comprar sanduíches e imploram para levar pão seco (olha, o pão). O sonho simbólico não vale nada comparado com aquela premência (e preeminência também) enfarinhada.
Que não se brinque com ele, o pão. Habituados que estamos que os conflitos venham de fundamentalistas saciados (com reivindicações de Club Méditerranée, com paraísos e virgens), era bom que descêssemos à terra. O pão é o biocombustível das revoltas a sério. Esse, sim, é um problema que não tem outra solução senão resolvê-lo.
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