Esta foi a semana
Por António Barreto
ESTA FOI A SEMANA em que foi ratificado o novo Tratado da União Europeia, vulgo Tratado de Lisboa, alcunhas da Constituição Europeia. A aprovação, no Parlamento, foi triste e sorumbática. Quase clandestina. A cerimónia foi recheada de banalidades. Um viveiro de lugares-comuns. Esta ratificação, a que falta a promulgação pelo Presidente da República, substituiu o referendo nacional (e os outros referendos nacionais) que os governos europeus tudo fizeram por afastar e proibir. Referendo esse que o governo de José Sócrates tinha prometido realizar. Desapareceram a discussão e o debate sobre a Europa e a sua União. Desapareceram o entusiasmo e o interesse. Em toda a Europa, o debate sobre estes temas, cruciais, transformou-se numa cacofonia burocrática. De “furtiva”, como lhe chamavam os pais fundadores, a “construção europeia” tornou-se velhaca. A União Europeia assume de modo crescente a sua característica de Europa dos Estados contra os povos. Esta é uma atitude concertada e deliberada dos dirigentes europeus. Apesar disso, ou por causa disso mesmo, estes são depois férteis em queixumes sobre a falta de participação dos povos e, sobretudo, dos jovens. Criaram o silêncio e chamaram-lhe paz!
ESTA FOI A SEMANA em que se fez, mais uma vez, a comemoração oficial do 25 de Abril. Na Assembleia da República. Com intermináveis discursos, geralmente bacocos. Tentando fugir à banalidade, o Presidente da República trouxe uma sondagem sobre a participação política da juventude. Parece ter ficado genuinamente surpreendido com o estado em que se encontram as mentes juvenis. Mais que o desinteresse pela política, o que realmente choca é a incultura dos jovens inquiridos, em grande parte estudantes. Como em quase tudo na vida portuguesa, todos se voltam para as soluções milagrosas. Quase todos pensam que, com o ensino da História e uma disciplina de “educação cívica”, se resolveria o problema. Para alguns, a resposta é ainda mais simples: uma versão “correcta” do 25 de Abril nos manuais de História bastaria! “O problema é da educação”, dizem uns. “A comunicação social tem um papel muito importante a desempenhar”, acrescentam outros. “O problema é das mentalidades”, concluem ainda outros. Há décadas que se ouve isto. A propósito de tudo, do civismo, do ambiente, das desigualdades, da educação, da justiça, dos graffiti nas paredes e dos acidentes de viação. Não se aprende nada!
ESTA FOI A SEMANA em que as lutas no PSD atingiram a cor e a temperatura do ferro em brasa. A fazer lembrar a família Adams, mas com menos ternura e graça. Ou será a família Soprano, noutro ramo de negócios? Nunca, em mais de trinta anos, o debate dentro de um partido atingiu um tão baixo nível de educação e inteligência. Eles próprios se tratam de barões e baronetes, caciques, incompetentes, demagogos, oportunistas e suicidas. Não se consegue perceber o que politicamente os divide. A protecção social? A empresa privada? O mercado? A justiça? A educação? A saúde? A defesa nacional? Ninguém diz ao que vem. Ninguém anuncia programas e estratégias. Uns desgrenhados, outros arrumados. Uns bem-falantes, outros a vociferar. Uns básicos, outros sofisticados. Parecem bandos à solta, grupos esfomeados à procura de poder e poleiro. É possível que a luta entre famílias do PSD venha ajudar Sócrates e os socialistas. Mas esse é o menor dos males. Grave é o mal que faz ao país.
ESTA FOI A SEMANA em que o governo aprovou a sua proposta de revisão do Código de Trabalho, que entra agora em fase de negociação com os sindicatos e os patrões. É uma proposta razoável e moderada, feita pelo mais competente dos ministros do actual governo, Vieira da Silva. Insuficiente, em muitos aspectos. Apesar da redução dos prazos, ainda mantém um ano de processo judicial para resolver um litígio por despedimento. Inventa bonificações para os empresários que reduzam os recibos verdes e aumentem os contratos sem termo, criando assim mais regimes especiais, uma das pragas do sistema em que vivemos. Cria ou desenvolve uma cláusula de “inadaptação tecnológica” cujo principal valor é o da ambiguidade. Insiste em procedimentos burocráticos, a fazer cumprir pelos empresários, que tornam tudo mais difícil. E não obriga o Estado aos mesmos deveres que os privados. Mas o projecto melhora em vários aspectos: na segurança e na flexibilidade. Aumenta as possibilidades de uma empresa e os seus trabalhadores arranjarem sistemas próprios, como sejam os bancos de horas ou os créditos de tempo. Faz caducar contratos colectivos obsoletos. Dá mais liberdade às negociações bilaterais entre trabalhadores e empresas. O projecto é socialmente equilibrado, mas não será por causa disto que o investimento e o emprego aumentarão. Até porque, nos últimos anos, têm sido justamente os empregos a recibo verde que têm sido responsáveis pela maior criação de emprego.
ESTA FOI A SEMANA em que, mais uma vez, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou o Estado português e os seus tribunais por terem considerado um jornalista culpado de comportamento impróprio e ilegal. O jornalista Eduardo Dâmaso teria infringido a lei do segredo de justiça. O Tribunal Europeu considerou, novamente, que os tribunais portugueses têm uma concepção limitada das liberdades de imprensa e de expressão e uma noção restrita do interesse público.
ESTA FOI A SEMANA em que a flor dos jacarandás voltou à cidade! Os primeiros a florescer, tímidos, apareceram no Rato (mão amiga me levou lá!), em Belém e na Av. D. Carlos I. Mesmo previsíveis, as rotinas e as repetições têm destas coisas. Umas, como as comemorações oficiais do 25 de Abril, são cada vez mais maçadoras e destituídas de sentido. Outras, como a floração anual dos jacarandás, anunciam, com alegria, o eterno recomeço.
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Correcção: Há duas semanas, citei, nesta coluna, uma carta atribuída ao antigo Alto-comissário em Angola, Rosa Coutinho. Esse documento fora reproduzido em fac-símile num livro de Américo Botelho editado em Lisboa em 2007, “Holocausto em Angola”. Desde então, que eu soubesse, a sua autenticidade não tinha sido posta em causa. O Almirante Rosa Coutinho acaba de negar, na revista “Visão”, a autoria de tal carta. Lamento ter utilizado como argumento esse documento apócrifo. As minhas desculpas ao senhor Almirante e aos leitores.
«Retrato da Semana» - «Público» de 27 Abr 08
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8 Comments:
Mas também não se preocupou em investigar a autenticidade de uma carta abundante em indícios de que teria sido forjada. Preocupou-se antes em alimentar mentiras e em sujar, desrespeitosamente, não só o senhor Almirante, como o MPLA, o PCP e Fidel Castro. De qualquer forma, quem sujou as mãos a dar cabo da Reforma Agrária já não sente a diferença.
António Barreto, que leio e ouço com apreço, não foi suficientememte cuidadoso com o assunto de Rosa Coutinho, o que é lamentável.
É inaceitável que António Barreto se limite a este curto esclarecimento e pedido de desculpas em mero apêndice a um artigo.
Não apenas por um simples dever de justiça relativamente à pessoa de Rosa Coutinho, independentemente de concordarmos ou não com a sua actuação política relativamente a Angola, mas porque aquela carta, a ser verdadeira, constituiria um assunto demasiado sério para ser abordado desta forma frouxa.
Na verdade, como já foi dito por vários comentadores, o documento divulgado continha elementos suficientes para lançar dúvidas sobre a sua autenticidade. Mas isso não parece ter alertado, nem o autor do livro, nem as personalidades que sobre ele se pronunciaram. É o que se pode concluir ao ler as seguintes declarações :
- Custa ler as memórias angolanas de Américo Cardoso Botelho. Mas é indispensável fazê-lo. José Manuel Fernandes (jornalista)
- O livro é surpreendente. Chocante. (...) Não é um livro de história, nem de análise política. É um testemunho. António Barreto (sociólogo)
- «Holocausto em Angola» destaca-se pela envergadura, pelo extremo rigor e pelo pormenor dos testemunhos. José Eduardo Agualusa (escritor)
Extremo rigor! Pois sim. Estamos bem servidos de intelectuais, estamos….
È no minimo estranho que a dita carta já conhecida há vinte anos (20) pelo "Grande Almirante" nunca a tenha negado a sua veacidade e nunca tenha o "brio" de colocar na barra dos tribunais o autor ou quem a publicara.
Isto de chegar e dizer que não é ele o autor não chega.
De qualquer forma não chega para o ilibar de toda a sua actuação em prol do MPLA.
Portanto, Alfredo, Rosa Coutinho tem que provar que está inocente... Extraordinário!
J. Medeiros Ferreira, autor-convidado do 'Sorumbático', escreve hoje, acerca deste assunto, no seu blogue «Bicho Carpinteiro»
(http://bichos-carpinteiros.blogspot.com/):
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ANTÓNIO BARRETO
Fiquei aliviado com o pedido de desculpas que o meu amigo António Barreto apresentou na sua crónica no Público pelo crédito que deu a um texto repelente cujo estilo cheirava que tresandava a provocação legionária.
bloom said...
Portanto, Alfredo, Rosa Coutinho tem que provar que está inocente... Extraordinário!
Meu caro,
não se trata de Rosa Coutinho ter de provar a sua inocência, trata-se da sua honorabilidade. Eu no lugar dele procurava uma reparação judicial. A acusação que lhe é feita é muito grave.
Sei que a historia está cheia de documentos falsos, mas neste caso dado o comportamento do almirante continuo a achar tudo muito estranho.
No ABRUPTO, Pacheco Pereira afixa a imagem e escreve:
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A "CARTA" DE ROSA COUTINHO A AGOSTINHO NETO
Uma carta que circula há muitos anos, supostamente escrita por Rosa Coutinho a Agostinho Neto, apareceu num livro recente sobre as enormes violências em Angola e foi citada por António Barreto a partir do livro como sendo verídica. António Barreto já corrigiu essa atribuição face às dúvidas suscitadas entre outros por Ferreira Fernandes, admitindo o seu engano. Desse ponto de vista a questão está encerrada.
No entanto, a carta merece mais alguma atenção na medida em que é um fabricação, aliás grosseira, que pode ter sido feita ou por um habilidoso envolvido nos eventos ou por um serviço qualquer de desinformação. O seu objectivo é fazer uma campanha negra, contra Rosa Coutinho, que não precisava da carta para ter tido um papel sinistro nos eventos da descolonização de Angola.
Já li, por razões profissionais do meu trabalho histórico, literalmente milhares de documentos oriundos do universo comunista, não só os escritos com “língua de pau”, mas também os mais escondidos de todos, cartas com instruções secretas, relatórios do NKVD e do KGB, actas de encontros, comunicações de espionagem, papéis de polícia, denúncias, relatos de tortura, manuais de guerra revolucionária, e nunca encontrei um único documento genuíno que corresponda no teor, conteúdo e linguagem à carta atribuída a Rosa Coutinho. Pelo contrário, encontrei múltiplas fabricações exactamente iguais.
Nenhum comunista secreto ou público escreveria isto: “após a última reunião secreta que tivemos com os camaradas do PCP...” Se é secreta não se nomeia nem se diz com quem foi. E muito menos se poriam num papel perguntas retóricas como esta: “Não dizia Fanon que o complexo de inferioridade só se vence matando o colonizador? camarada Agostinho Neto, dá, por isso, instruções secretas aos militantes do MPLA para aterrorizarem por todos os meios os brancos, matando, pilhando, incendiando a fim de provocar a debandada de Angola”. Mais ainda este absurdo: “Sede cruéis sobretudo com as crianças, as mulheres e os velhos para desanimar os corajosos” Tudo resto é assim, tão de encomenda, tão destinado a suscitar a repulsa, caso viesse a público, como absurdo.
Há documentos genuínos com este tom, mas em movimentos doutro tipo, milenários, religiosos, étnicos, mas não existe nada de parecido no movimento comunista. Eu não estou a dizer que os comunistas não possam cometer as maiores atrocidades, cometeram-nas na URSS, na China, no Cambodja, em África, mas não as colocam no papel assim.
Espero que mais ninguém se engane com esta falsificação.
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