27.4.08

Laranjas e capitães

Por Nuno Brederode Santos
SENTADO NO MURO, no seu equilíbrio instável, disse Humpty Dumpty, o ovo inglês: "A questão está em saber quem manda." Isto foi antes de oscilar e cair - e nem a solicitude de todos os cavalos e soldados do Rei conseguiu devolver-lhe a integridade. Com o ovo português foi diferente. Desde logo, porque os cavalos e soldados do Rei nada fizeram por ele. A suplicada vaga de fundo foi tão de fundo que do fundo não passou e nada tugiu à superfície. Depois, porque, se Humpty Dumpty se mostrava preocupado com o poder, com "quem manda", o ovo português dilapidara-o por quantos pequenos autarcas, aparatchiks e senhores da guerra conseguiu juntar. Então, à míngua de poder, quis simulá-lo: foi o espectáculo dos mais caprichosos ziguezagues programáticos; a retórica pesada; o brado inócuo; os simbolismos discricionários. É uma velha chibata administrativa chamada autoritarismo, que imita o poder para esconder a sua falta. Há quem diga que a queda foi arbitrária e acidental. Talvez. Mas tudo, na sua curta existência, lhe foi arbitrário e acidental.
Já o não foi, porém, a rapidez com que os cavalos e os soldados do Rei passaram à busca de alternativas. Fugindo ao incansável fantasma de Santana Lopes, tentaram tentar Cadilhe e acabaram num Jardim que não se resigna a um futuro em prosa. Excitado, este disse à imprensa que não tinha tropas no "Continente" (um problema que, de resto, só o aflige no partido, pois na sociedade tem até uma imensa horda bélica, que os anos e os abusos reuniram contra ele) e soltou Guilherme Silva e outras vozes privativas. Gozou até dos últimos brios de Menezes. Mas esse assalto esbarrou no savoir-faire de Santana para tudo o que é vago, etéreo, translúcido, virtual e mediático. Sendo ele próprio a paixão que o cega, o narcísico ex-primeiro-ministro travou Jardim, usando os media para darem por consumado o que o não estava. Santana ganhou a dança de espectros. Jardim abandonou para, como habitualmente, poder falar grosso depois de chegar a casa. Pede agora, em seu favor, um 25 de Abril no partido (a mesma data que recentemente tanto depreciou na Região). Mas Santana tem custos por pagar. Estruturas poderosas, como o Porto e a Madeira, não lhe perdoarão o desaforo.
A divisão dos "populistas" sorri a Passos Coelho e Manuela Ferreira Leite. Ele - um liberal amável que, naquele mundo, sobressai pelo seu apego ao chá das cinco - conquistou os seus direitos. Pode tentar a sua sorte de hoje sem prejudicar um amanhã que a dispense. Assim lho permitam as vagas de órfãos de Menezes que agora o vão assediar. Ela, com maior reconhecimento social e um passado a atestar que não faz luta política fora do institucional. Mas com dois problemas pela frente. Um é a suspeição e o desconforto da relação com Cavaco. Outro é o quebra-cabeças: será que para enfrentar quem, magoando-nos, controlou o défice, a solução virá de quem, magoando-nos, nem sequer o conseguiu?
Aqui chegados, põe-se a questão: será normal, na comemoração do 34.º aniversário do 25 de Abril, falarmos da crise interna do maior partido da oposição e das pequenas veleidades e grandes ambições dos seus principais agentes? Será esta a homenagem devida a esses jovens que, numa jornada corajosa e breve, arriscaram carreiras e vidas, sem rede nem sucedâneo? Creio que o é. Abril trouxe-nos o brio de volta. E a liberdade e responsabilidade de escolhermos, nos relativos e humanos termos em que a escolha existe. Para que tenhamos mérito no que a vida nos deu de bom e culpa própria nos erros cometidos. Por estranho que aos novos pareça, a nossa insatisfação de hoje (e espero bem que de sempre) é o tributo maior que devemos aos jovens capitães inconformados. Sem prejuízo das liturgias do nosso apreço e das celebrações da nossa memória.
E, se assim é, desçamos à terra do a-propósito com uma nota prática de circunstância. Senhor ministro: mandou porventura afixar, por sobre a entrada da Academia Militar, a dantesca prevenção do "abandonai toda a esperança, ó vós que entrais"? Reinstituiu o parlamento à socapa o instituto da morte civil? Se nem uma coisa nem outra, queira matar no ovo essa peregrina ideia de sonegar cidadania aos militares reformados. A nossa gratidão histórica agradece (a retalho), mas o simples bom senso (que é grossista) agradece muito mais.
«DN» de 27 Abr 08

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1 Comments:

Blogger antónio m p said...

Quando eu julgava que não valia a pena dizer uma palavra sobre esta tragi-comédia sem pés (para andar) nem cabeça (para racionalizar), e que intoxica a difusão social, deparo com um texto de Nuno Brederote dos Santos que faz flores literárias e políticas sobre esse areal.

Afinal, algum mérito haveria de ter a polémica indecorosa com que somos bombardeados nos tempos que não correm.

27 de abril de 2008 às 18:26  

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