25.5.08

Carta de um telespectador

Circula na Internet um curioso texto que - como refere o Sorumbático, um dos seus contribuidores e a crónica que este aqui afixou hoje mesmo - se achou por bem divulgar:
-oOo-
O drama de Pacheco Pereira, de Nuno Brederode… e dos telespectadores da RTP
CHEGOU À PRAÇA PÚBLICA um tremendo rugido de protesto, implacável e ao mesmo tempo desesperado, contra o estado a que chegou a informação nos telejornais portugueses: Pacheco Pereira perdeu a cabeça (ou usou-a como nunca) clamando contra “A cultura da irrelevância (que) está a crescer exponencialmente” (“Público” de 17 de Maio). E escreve, mortificado: “Futebol, futebol, futebol, fumei, pequei, vou deixar de fumar, a Esmeralda entre o pai afectivo e o pai biológico, futebol, directo do acidente na A1 que provocou três feridos, os pais da pequena Maddie, futebol, tenho um cancro-tive um cancro-vou ter um cancro, futebol, futebol, futebol.”
.. Dias depois, adesão insuspeita: Nuno Brederode Santos junta a sua pena demolidora às diatribes de Pacheco Pereira para lamentar “… ter de saber que, no hotel do estágio, a ementa de hoje foi canja de galinha e carne à jardineira (e o cozinheiro já vai explicar porquê), mas também que o craque A, afectado por uma ligeira indisposição, comeu pescada.” (“Diário de Notícias” e blogue “Sorumbático” de 25 de Maio).
.. O ridículo elevado ao delírio? A imbecilidade transformada em cartilha editorial dos telejornais? Pode ser, mas resulta muito pior quando praticados na antena do serviço público – vulgo RTP.
.. Ora eu, que não ostento de Pacheco e Brederode a fama e glória, também tenho a minha história de rebelião contra este filme de massacre futebolisivo.
.. Enviei a seguinte carta ao Provedor do Espectador da RTP:
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.. “Senhor Provedor,
Às 20 horas de ontem, dia 12 de Maio, os editores do Telejornal já possuíam a notícia e as imagens: oito mil e quinhentos seres humanos tinham morrido, poucas horas antes, num terramoto na China. Sabiam também que novecentas crianças estavam debaixo dos escombros da sua escola. Mais de oitenta por cento das casas de uma grande cidade estavam derrubadas, com gente lá dentro.
Os senhores editores do Telejornal sabiam isto tudo às 20 horas. Até porque as grandes cadeias de televisão mundiais ( BBC, Sky e CNN) já tinham transmitido reportagens sucessivas sobre todo esse horror.
Parece que uma notícia desta magnitude iria abrir o jornal do serviço público lusitano, com devido trabalho jornalístico.
Mas não, senhor Provedor: Os primeiros DEZASSETE MINUTOS do Telejornal foram integralmente dedicados ao anúncio dos jogadores escolhidos para chutar a bola na selecção nacional!
Que valem milhares de mortos ao lado da conferência de imprensa do treinador Scolari?
Senhor Provedor:
Temos o direito, todos os que ainda nos reclamamos da cultura e da inteligência, de ouvir da boca dos editores do Telejornal de ontem as inqualificáveis razões editoriais para tamanho insulto aos espectadores. Por isso me dirijo a V. Exa, que tantas provas de verticalidade nos tem trazido em cada um dos seus excelentes programas.
Com a maior consideração,
N.”
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.. Chegou resposta, assinada pela chefe de gabinete, D. Fernanda Mestrinho. Em dois secos parágrafos estilo Formulário-Norma-4 agradecia a mensagem e mandava à m…era procura de um programa do Provedor que fora emitido meses antes.
.. Tenho a certeza cega de que o ponderado Prof. Paquete de Oliveira desconhece esta troca de correspondência, nem que mais não seja pela boçalidade que enforma e ele é, além de inteligente, um homem de finesse.
.. Que isto se tenha passado assim com um ignoto espectador, diz apenas de quem assessora o Provedor. Mas a coisa fia mais fino quando dois comentadores de nomeada exibem, em dois dos maiores jornais do país, o mesmíssimo cartão vermelho à RTP e… tudo fica na mesma. Aí o povo contorce as mãos, desesperado, e percebe quão majestático é o poder da tv estatal, sem se dignar explicações, mantendo inalterável o rumo soturno do seu navio fantasma. E os telejornais continuam a dedicar os seus primeiros quinze a vinte minutos a banalidades insípidas que rodeiam os treinos da Selecção de futebol em Viseu. Noite após noite, os directos espremem não-notícias, vulgaridades sonolentas, opiniões vazias de passantes sem o menor interesse. E a tal pescada que o jogador comeu, em vez de bife. Puro lixo televisivo. Vejo os telejornais estatais de Espanha, França, Inglaterra e Itália e nenhum se atreve a tamanho desperdício de tempo com tamanhas ninharias das suas selecções de jogadores. Só mesmo a RTP, até à náusea.
.. E porquê? Acho que sei, e até peço perdão se estou errado.
.. Sem ofensa pessoal para ninguém envolvido, eu acho que Pacheco e Brederode tiveram apenas um azar de circunstância, que passo a explicar.
.. A RTP é como o Estado: são todos e ninguém. Preciso é distinguir quem vale e quem não vale. O segurança da RTP não vale para definir telejornais, mas há três pessoas que valem tudo para definir os conteúdos dos telejornais: o Zé, o Luís e a Cristina. Se eles lerem os dois cronistas e se a sua roda de amigos concordar com os cronistas e comigo, tudo vai mudar no telejornal desta noite. O país, em vez de vinte minutos de nha-nha de Viseu, só grama dois ou três minutos de nha-nha de Viseu, se gramar!
.. Basta que o Zé tome café com o Luís e a Cristina e se ponham de acordo. Podia ser: o Zé Alberto é director de Informação e até pode decidir sozinho. Mas como a matéria é gravíssima para os interesses estratégicos de Portugal, admito que não queira utilizar o seu formidável poder sem ouvir o Luís Marinho que era seu chefe até ontem mas hoje é administrador da empresa. Os dois teriam quórum mais que bastante para colocar o terramoto da China antes das canelas do Petit a abrir o telejornal, mas vamos supor que isso teria implicações formidáveis no orçamento da TV pública e portanto conviria ouvir a Cristina Viegas, a sempre presente directora do subdepartamento comercial da empresa. Que diabo, a campanha publicitária que tem Nuno Gomes aos saltinhos e gritinhos poderia estar-se nas tintas para os mortos na China e exigir prioridade a Viseu Petit.
.. Portanto, seria superiormente recomendável um cafezinho a três – o Zé, o Luís e a Cristina. Belém reúne o seu Conselho de Estado por bagatelas bem menores do que o primeiro quarto de hora do Telejornal.
.. Simples, não é? Tudo arrumado em dez minutos de um café de bom senso. Pois não senhor: isso jamais acontecerá. O drama de Pacheco, Brederode e de todos os espectadores da RTP é que um dos três – acho eu – não gosta de café.

7 Comments:

Blogger Jorge Oliveira said...

Esta questão do futebol está a tornar-se uma verdadeira paranóia televisiva. Os responsáveis das estações põem no ar aquilo que pensam que vai cativar o maior número de espectadores. Mas, relativamente ao futebol, talvez estejam a laborar numa avaliação errada.

Pela minha parte, gosto imenso de futebol, mas de jogo jogado. E bem jogado, porque se alguma das equipas entra numa toada de passes para o guarda-redes, sem que o jogo desenvolva, mudo de canal.

Assim como nunca vejo as conversas da treta à volta do futebol, quer dos analistas, quer dos treinadores ou jogadores. Não me interessam para nada e julgo que muitos dos apreciadores de futebol também não querem saber de conversa que não acrescenta nada à qualidade e ao resultado dos jogos.

Os directores de programas de televisão, de qualquer dos canais, deviam ter mais respeito pelos espectadores, muitas vezes obrigados a ver aquele lixo televisivo porque todos os canais estão a transmitir o mesmo ao mesmo tempo.

Se querem pôr à disposição dos portugueses este tipo de parvoíces, comprem ou tomem participação nos jornais “desportivos”. Só compra quem quer.

De outra forma, arriscam-se a que cada vez mais espectadores mudem de canal para ver, por exemplo, um dos filmes das séries policiais do AXN, da Fox, etc, bem mais interessantes do que as lengalengas dos bastidores do futebol.

25 de maio de 2008 às 22:36  
Blogger Antunes Ferreira said...

Este extraordinário texto foi-me enviado por mail pelo meu querido Amigo (de décadas...) e colaborador deste nosso SORUMBÁTICO, Carlos Pinto Coelho. Achei-o tão interessante (infelizmente), sugestivo e crítico, que, além de o ter reenviado aos meus correspondentes (mais de 300...), publiquei-o no meu blogue TRAVESSADOFERREIRA.BLOGSPOT.COM.

Há preciosidades que não se podem perder. E ignorá-las é criminoso. Por isso o registei, por isso aqui deixo a minha total concordância com as verdades grandes que o texto contém e, se mo permite o Autor, subscrevo-o sem hesitações, com muita honra e prazer.

Nós somos assim, os Portugas: maus. Na esmagadora maioria, não prestamos. E trazemos sempre na boca duas expressões: o desenrascanço e a maledicência. O Sertório é que tinha razão: gente que não se governa, nem se deixa governar.

Quando será que nos emendaremos? Nós próprios respondemos, todos ou quase: no dia de São Nunca à Tarde...

25 de maio de 2008 às 23:13  
Anonymous Anónimo said...

Este é daqueles textos que se concorda com tudo e não há nada a acrescentar. Apenas os parabéns ao autor.
Ab

26 de maio de 2008 às 08:35  
Blogger Irina Melo said...

Basta! Há já 15 dias que somos bombardeados com a Selecçõa Nacional e o Euro a toda a hora, desde os programas entretenimento aos telejornais... Quando passam o Scolari a dar os nomes dos convocados até põem uma música melancólica por detrás a apelar à lágrima no canto do olho. Como se ganhar o Euro fosse um desígnio nacional!
E os portugueses, que tanto se queixam do dinheiro público mal gasto, responderam recentemente a uma sondagem que revelava que 80% estão de acordo com a organização por parte de Portugal do Mundial 2018 (provavelmente em conjunto com Espanha). Mais dinheiro empatado em mostros estádios de futebol, tantas vezes às moscas?
Como na velha roma: continuamos a gostar de circo!

26 de maio de 2008 às 10:50  
Blogger Irina Melo said...

Ah! E depois mostram os carros dos jogadores que custam milhares contos, as casas palacianas onde vivem, as centenas de pares de sapatilhas que têm... Tudo sem qualquer pudor, num verdadeiro atentado ao cidadão médio.
E isto no país com as maiores desigualdades sociais da Europa!

26 de maio de 2008 às 12:16  
Blogger R. da Cunha said...

23 de Maio na RTP:
Jornal da Tarde - notícia da visita do secretário-geral da ONU à Birmânia, cortada para um directo do aeroporto da Portela, onde acaba de chegar o futebolista Cristiano Ronaldo; na embalagem, ligam a Viseu para saber novas; depois é retomada a notícia interrompida.
Telejornal - a abrir, ligação a Viseu para sabermos novas da selecção de futebol. Duração: 15 minutos!
E o Europeu ainda não começou! O país não acabará por ficar enjoado?

26 de maio de 2008 às 19:17  
Blogger leao said...

Estranho que só agora se estejam a dar conta. A informação da TV, já há muito que é assim - se é que alguma vez foi diferente.

26 de maio de 2008 às 21:55  

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