16.6.09

O mundo gosta de mim

Por Appio Sottomayor

AS CHAMADAS SUCEDEM-SE, num ritmo que me impede de ignorar ou descurar o assunto. Geralmente, o interlocutor identifica-se - «o meu nome é F.» E, logo a seguir, indica qual a empresa que representa. Segue-se um educado pedido de desculpas por estar a gastar o meu tempo, após o que passa ao ataque. Quer saber qual a operadora que uso para os meus telefonemas e, na posse desse conhecimento, aconselha-me paternal ou maternalmente a mudar de linha. E explicita todo o rol de vantagens que passarei a ter, as quais incluem, invariavelmente, chamadas de borla para múltiplos destinos e em não sei que dias. Juro que vou meditar no tema, enquanto ele (ou ela) me recomenda que o faça depressa porque «a campanha vai acabar». Mal desligo, vem outro/a gentil inquisidor querer saber como me sirvo da Internet e recomendando o sistema X por oferecer condições muito superiores e mais baratas - a menos que prefira usar o Y ou ainda o Z ou mesmo o W. Claro que com tantos números e opções, já tenho a cabeça em água. Mas falta ainda atender o senhor que descobriu que eu pago mensalmente uma fortuna em telemóvel e que poderia poupar mudando para as modalidades que passa a expor - e são muitas.

Meio alucinado, atendo ainda nova chamada, desta vez da gestora da pobre conta que tenho no banco. A prestimosa senhora quer aconselhar-me uns novos produtos que, segundo percebi, me deixarão rico. E desdobra diante do meu ouvido, atento mas incapaz de fixar todos aqueles filões, um rol de nomes, números, percentagens e prazos, deixando-me gago e sem saber qual o rumo a tomar para a fortuna.

Vou então à caixa do correio, onde verifico que todos os supermercados da área e mais alguns que moram longe fizeram questão de me informar de que não terei de me ralar com o IVA e aumentos anunciados: eles assumem.

De novo o telefone: «o senhor acaba de ganhar uma viagem para duas pessoas às paradisíacas ilhas» de não sei onde, diz-me uma voz entusiasmada que me convida a visitar o seu escritório para acertar pormenores. Fico danado por ter deixado caducar a validade do passaporte. É então que me anunciam o euromilhões.

É isto: o mundo todo gosta de mim - e eu, sempre distraído, nem dou conta.

«A Capital» de 29 de Julho de 2005
NOTA: como ontem aqui se anunciou, decorre neste momento um encontro na Figueira da Foz em que está presente o muito estimado autor desta crónica. E esta está aqui hoje porque, quando foi afixada no Sorumbático, pode ter passado despercebida - foi colocada em comentário e não em post próprio, como deveria ter sido. Outras duas, do mesmo autor, podem ser lidas [aqui] e [aqui].

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