11.2.12

Preciso daquela cara, sim

Por Ferreira Fernandes

NAS PIETÀ, todas, a de Miguel Ângelo, de El Greco, de Van Gogh, o objeto da compaixão é Cristo, corpo sem sopro. Juntamo-nos ao outro personagem do quadro ou da escultura, Maria, para partilhar o que o seu olhar, a inclinação do pescoço e o rito da boca mostram: piedade. O duo foi feito em função dele, mas a força emana dela. Por ela, vamos para ele.
A vencedora do Word Press Photo do Ano 2011, do espanhol Samuel Aranda, parece uma Pietà, mas não é. Numa mesquita de Saná, no Iémen, convertida em hospital durante manifestações, um corpo de homem, magro como Cristo, sofrido, abandona--se sobre uma mancha. Esta é uma makrama, veste negra que cobre as iemenitas da cabeça aos pés, com nesga por onde os olhos mal se adivinham.
O homem é vítima de alguma coisa mas não comove. Ao contrário de Cristo, para quem vão as nossas emoções - impelidas pela força de Maria -, aquele iemenita não existe. A foto vencedora do Word Press Photo do Ano 2011 tem personagem única, tão forte quanto nem aparece. Adivinha-se para lá do negrume das vestes.
Mais bordoada, menos bordoada, o homem da foto é uma vítima banal, talvez alguém que exigia uma passagem de peões em Queluz e escorregou. Mas o ser apagado pela makrama, tão apagado que nem sabemos se chora, esse, é uma tragédia tão enorme que anula tudo à sua volta.
Se alguém me diz que não preciso daquela cara para saber o que ela exprime, desminto. Preciso, até para saber o que há à sua volta.
«DN» de 11 Fev 12
NOTA (CMR): a foto referida, que achei por bem afixar a ilustrar o texto, vem nos jornais de hoje.

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3 Comments:

Blogger Maria said...

Quando vi a Pietá, foi o rosto dela que olhei. Talvez por ser mãe de três filhos, caí de joelhos e as lágrimas correram. Mirei-a toda. Os braços, o regaço, onde Cristo está deitado, são de uma mãe.
Nela vi, as mães todas do mundo, que perderam e vão continuar a perder filhos.
Aquela expressão dolorosa, os olhos que contemplam o filho morto, é que fazem toda a diferença. Sem elas, não haveria emoção.
Não gosto da que publicou. Não me comoveu.
Maria

11 de fevereiro de 2012 às 11:47  
Blogger José Batista said...

Concordo com Maria.

Imagens de pessoas, se não têm olhos (e olhar), impressionam(-me) pela perda/falta que sinto nelas.
A que está publicada, seja lá pelo que for, desagrada-me.
Se não me fosse dito a que se refere, podia até imaginar uma montagem com farsantes, a descoberto e debaixo da burka.
Os olhos dão expressão (ou ausência de variação dela, como no caso dos cegos) e a expressão permite que lhe demos significado.

Por outro lado, há imagens e/ou objetos capazes de nos perturbarem, por razões mais ou menos claras,
incluindo a falta de hábito da sua contemplação: um dia ouvi o professor Gentil Martins falar de uma separação de siamesas presas pelo abdómen, em que era imperioso fazer-lhes um umbigo. Parece que uma barriga sem umbigo causa uma sensação horrível de estranheza e desconforto.

11 de fevereiro de 2012 às 18:20  
Blogger Helena said...

"Mas o ser apagado pela makrama, tão apagado que nem sabemos se chora, esse, é uma tragédia tão enorme que anula tudo à sua volta."
A "tradução" certa da fotografia.
Senti o mesmo, mas não soube nem o conseguiria dizer desta maneira.

12 de fevereiro de 2012 às 00:49  

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