Os homens dispersos
Por Baptista-Bastos
OS ARTICULISTAS que, no estrangeiro, escrevem sobre Portugal não
dissimulam a perplexidade causada pela inanição do povo, ante a cega
"austeridade." Os termos usados são estes. E a palavra "totalitarismo"
começa a circular como definição do neoliberalismo, cuja tendência para
se dissimular corresponde a uma estratégia de não-responsabilização
individual. Ninguém conhece os rostos de quem manda. Mas não são
desconhecidos os serventuários de uma ideologia cujos estragos apenas
começam a ser avaliados. Estão nos Governos de quase toda a Europa.
Em
Portugal, a política deixou de ser uma actividade de relação. A
derrapagem semântica alterou o conceito de democracia. A tentativa de
homogenização da sociedade portuguesa é própria dos sistemas
totalitários. E não é preciso atribuir as culpas apenas a Estaline: a
forma de poder pessoal institucionalizou-se nas "democracias", através
de métodos enganadores.
Ouço, com a regularidade possível, os
programas de opinião pública das têvês. O vendaval de protestos já não
se enquadra, somente, nos partidos políticos. O que pode ser perigoso,
como rastilho para acidular acções inorgânicas, com consequências
absolutamente imprevisíveis. A lógica do indistinto afirma uma retórica
que tende a fazer desaparecer as referências e a pulverizar as normas.
Não somos, redutoramente, um "país de costumes brandos e hábitos
morigerados", como quis e impôs Salazar, com a censura, a polícia
política e sicários estipendiados nos serviços e nos órgãos de
comunicação social. Sei do que falo e conheço-lhes os nomes e as
indignidades. Ontem como agora. Quando nos revoltamos, a explosão
costuma ser violenta e impetuosa. O perturbador é que a nossa
actualidade possui semelhanças inquietantes com factos ocorridos.
A
opressão "democrática" acentua-se. O Governo já deu sobejas provas de
incompetência e de soberba. E, apesar de os resultados das políticas
aplicadas asfixiarem a população, o sufoco aumenta: tanto Passos Coelho
como Vítor Gaspar ameaçam, não tão veladamente, que a "austeridade" vai
continuar sob outras configurações. Tudo isto deixou de ser uma vergonha
para se transformar numa ignomínia. A questão dos enfermeiros é
significativa.
Em que momento um indivíduo se transforma em
cidadão? Quando a sua personalidade estabelece relações com a política, e
na política actua, a transforma e a molda segundo as urgências e as
necessidades da comunidade. O interregno trágico em que vivemos pode
causar perplexidade no estrangeiro e em muitos de nós; porém, não passa
de isso mesmo: interregno.
"Acusam-me de mágoa e desalento, / como
se toda a pena dos meus versos / não fosse carne vossa, homens
dispersos / e a minha dor a tua, pensamento." Cantou Carlos de
Oliveira, num dos grandes sonetos da Resistência. "Seja a tristeza o
vinho da vingança.
«DN» de 4 Jul 12Etiquetas: BB
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