O meu vizinho dinamarquês
Por Maria Filomena Mónica
HÁ CINCO ANOS, apanhei um susto. Não recordo o dia exacto, mas lembro-me que era Verão, porque a minha mãe morrera pouco antes. Soube, por terceiros, que um dinamarquês comprara a cave que, como a minha, dá acesso a um jardim. Como o antigo proprietário raramente lá ia, habituara-me a trabalhar, olhando, em paz e sossego, os gatos selvagens, os pardais e o melro que todos os dias apareciam. Antes de o vender, aquele perguntara-me se o queria comprar. Querer, queria, mas não tinha dinheiro. Temendo que o silêncio, de que até então usufruíra, pudesse vir a ser quebrado por meninos a saltar, adolescentes a nadar e adultos a festejar, entrei em pânico.
Sem razão, pois, como vim a constatar, o novo vizinho é um homem civilizado. Pouco depois de ter igualmente comprado o 5.º andar, organizou, no jardim, um cocktail para os condóminos, a fim de explicar o que iria fazer. Depois, perguntou-me que flores gostaria de ter diante da minha janela – respondi hortênsias - e convidou-me para jantar em sua casa. Durante a refeição, conversámos sobre as obras que tencionava fazer, nomeadamente aquelas que se destinavam a repor o traçado original das janelas. Passados alguns meses, reparei que nada acontecera. Durante quatro anos, o processo andou, de mão em mão, entre a Câmara Municipal de Lisboa e o IPPAR. Que estrangeiro quererá investir num país onde as mãos têm de ser «oleadas» para se obter uma licença de construção?
Um dia, contei-lhe as minhas aventuras quando o esgoto colectivo rebentara na minha cave, mencionando-lhe que, por estas latitudes, era comum fazer-se tudo secretamente ou, em alternativa, meterem-se «cunhas», coisas que, talvez por ingenuidade, eu havia recusado. Com ar sério, informou-me respeitar o Estado de Direito, pelo que tão pouco considerava a hipótese. Passaram-se dias, semanas, meses, anos. Licença, nem vê-la. O antigo dono do 5.º andar, um polícia que fizera alterações ilegais, deve ter-se rido dos pruridos do escandinavo. Sem motivo, porque a corrupção pode levar Portugal à desgraça. O meu vizinho conhece a frase «Em Roma, faz como os romanos», mas sabe que tal corrói a alma.
A corrupção nos países do sul da Europa é difícil de erradicar - dos 549 condenados por corrupção em Portugal nos últimos dez anos só 50 tiveram pena de prisão efectiva - mas isso não me impede de ficar deprimida, quando olho a posição de Portugal nos rankings internacionais. Em 2010, no índice organizado pela Transparência Internacional – segundo o qual 0 significa altamente corrupto e 10 altamente limpo – Portugal obteve a classificação de 6 (ocupa o 32.º lugar, ao lado do Botswana), enquanto a Dinamarca atingia os 9,3 (o que a torna o país menos corrupto do mundo). Não precisava de olhar estas estatísticas. Bastara-me falar com o meu vizinho para notar a diferença que existe entre as culturas a que pertencemos. Ele inveja o clima que temos, eu o sentido ético dos seus compatriotas.
HÁ CINCO ANOS, apanhei um susto. Não recordo o dia exacto, mas lembro-me que era Verão, porque a minha mãe morrera pouco antes. Soube, por terceiros, que um dinamarquês comprara a cave que, como a minha, dá acesso a um jardim. Como o antigo proprietário raramente lá ia, habituara-me a trabalhar, olhando, em paz e sossego, os gatos selvagens, os pardais e o melro que todos os dias apareciam. Antes de o vender, aquele perguntara-me se o queria comprar. Querer, queria, mas não tinha dinheiro. Temendo que o silêncio, de que até então usufruíra, pudesse vir a ser quebrado por meninos a saltar, adolescentes a nadar e adultos a festejar, entrei em pânico.
Sem razão, pois, como vim a constatar, o novo vizinho é um homem civilizado. Pouco depois de ter igualmente comprado o 5.º andar, organizou, no jardim, um cocktail para os condóminos, a fim de explicar o que iria fazer. Depois, perguntou-me que flores gostaria de ter diante da minha janela – respondi hortênsias - e convidou-me para jantar em sua casa. Durante a refeição, conversámos sobre as obras que tencionava fazer, nomeadamente aquelas que se destinavam a repor o traçado original das janelas. Passados alguns meses, reparei que nada acontecera. Durante quatro anos, o processo andou, de mão em mão, entre a Câmara Municipal de Lisboa e o IPPAR. Que estrangeiro quererá investir num país onde as mãos têm de ser «oleadas» para se obter uma licença de construção?
Um dia, contei-lhe as minhas aventuras quando o esgoto colectivo rebentara na minha cave, mencionando-lhe que, por estas latitudes, era comum fazer-se tudo secretamente ou, em alternativa, meterem-se «cunhas», coisas que, talvez por ingenuidade, eu havia recusado. Com ar sério, informou-me respeitar o Estado de Direito, pelo que tão pouco considerava a hipótese. Passaram-se dias, semanas, meses, anos. Licença, nem vê-la. O antigo dono do 5.º andar, um polícia que fizera alterações ilegais, deve ter-se rido dos pruridos do escandinavo. Sem motivo, porque a corrupção pode levar Portugal à desgraça. O meu vizinho conhece a frase «Em Roma, faz como os romanos», mas sabe que tal corrói a alma.
A corrupção nos países do sul da Europa é difícil de erradicar - dos 549 condenados por corrupção em Portugal nos últimos dez anos só 50 tiveram pena de prisão efectiva - mas isso não me impede de ficar deprimida, quando olho a posição de Portugal nos rankings internacionais. Em 2010, no índice organizado pela Transparência Internacional – segundo o qual 0 significa altamente corrupto e 10 altamente limpo – Portugal obteve a classificação de 6 (ocupa o 32.º lugar, ao lado do Botswana), enquanto a Dinamarca atingia os 9,3 (o que a torna o país menos corrupto do mundo). Não precisava de olhar estas estatísticas. Bastara-me falar com o meu vizinho para notar a diferença que existe entre as culturas a que pertencemos. Ele inveja o clima que temos, eu o sentido ético dos seus compatriotas.
«Expresso» de 1 Out 11
Etiquetas: FM
5 Comments:
"dos 549 condenados por corrupção em Portugal nos últimos dez anos só 50 tiveram pena efectiva"
MF,
quase 11%... não pensei que chegasse a tanto, embora seja evidentemente uma nulidade.
Cumprimentos.
Após a constatação, resta-nos apurar, se o indefectível sentido ético e incorrupto do povo Dinamarquês, fica ou não a dever-se à clausura imposta pela adversidade climatérica.
Ou seja, se o facto de durante uma boa parte do ano em que o clima quase os impede de sair à rua, é compensado com a aquisição de uma cultura mais sólida e cívica.
Se e sse facto fôr comprovado, impõe-se que seja feita uma sondagem à população Dinamarquesa, no sentido de se apurar a percentagem de cidadãos daquele país que esterão dispostos (a exemplo do vizinho da autora) a trocar civilização por por sol e ética por "desenrascanço".
E depois... só para equilibrar os pratos da balança, inquirir-se também os Portugueses...
;))
Caro Bartolomeu:
A questão é que nesses países as pessoas sempre que podem apanham ar fresco :-)
O facto de o sol se destapar menos significa que lhe sabem dar mais valor e aproveitá-lo melhor :-)
Abraço
Imagino que assim seja, caro Luís... e a comprova-lo temos os depoimentos dos escandinavos que nos visitam e se apaixonam pelo sol e pela hospitalidade portuguesas. Chegando alguns deles a trocar todo o civismo em que se se habituaram a viver desde que nasceram, pela a anarquia reinante neste pequeno rectângulo à beira-mar ancorado.
Talvez ao chegarem, consigam intuír aquilo que no noss espírito parece ter adormacido ha muito... que a este povo falta ainda cumprir-se...
;))
Prosa bafienta, salazarenta, com resquícios do tempo em que os papás da Madame metiam num carro a família, as louças, o pássaro, o gato...e as criadas (sic), a caminho da Praia das Maças.
Felizmente desta vez escapámos à vivência em Londres e à superioridade intelectual daí decorrente.
Não vai ser por muito tempo...
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