8.10.15

Os meninos do Ordonho

Por C. Barroco Esperança 
Mais de seis décadas passadas, não posso garantir que todos os anos entrasse na escola um novo irmão, a memória já não é o que foi, e foram vários os filhos dos caseiros da Quinta do Ordonho que diariamente percorreram cerca de três quilómetros até à escola de Vila Garcia, no concelho da Guarda, e igual distância para o regresso a casa.
 A assiduidade era espantosa, só quebrada quando a ribeira do Noémi transbordava e, no caminho, submergia o pontão que ligava as duas margens.
Sapatos, onde os haveria, fosse verão ou inverno? A merenda, única refeição, se assim pode chamar-se ao que traziam os irmãos do Ordonho e as crianças do Carapito ou do Cairrão, as do Cume iam a casa enganar a fome, resumia-se a um naco de pão centeio, às vezes de cevada, com o parco peguilho que iam distanciando da boca para surdir até ao fim do pouco pão. Não eram diferentes de quase todos os alunos que, nas décadas de quarenta e cinquenta do século que foi, frequentavam a escola numa das mais pobres aldeias da Beira Alta.
 Apreciavam os ovos de um ninho que achassem sem recear o texto do livro único, tirar um ninho é roubar a casa dos passarinhos, por mais verdade que essa fosse, por entre as mentiras do livro único, tornada hipócrita pela fome. A professora ficava muda a olhar a carita deles perante a censura de outras crianças que gostavam de ser acusa-cristos.
 As rãs e, no verão, os lagartos e cobras esfolados e assados numa fogueira improvisada, ateada com os fósforos e lixa que se misturavam nos bolsos com a fisga, a navalha, o pião, a baraça, o sal e duas castanhas piladas, eram o manjar que se ofereciam apertados pela necessidade.
 O outono era a época das castanhas, que alegria, tombavam sadias para os caminhos ou, dentro dos ouriços que facilmente eram britados pelos pés nus habituados à inclemência do tempo e à dureza das pedras que saíam da terra batida. Nem os que usavam tamancos podiam, para os abrir, mantê-los calçados.
 O rebusco era também fonte de calorias, com as castanhas denunciadas na terra pelo despontar de um novo castanheiro e algum figo ou maçã abandonados nas poucas árvores de fruto que havia. Predominavam castanheiros, carvalhos e pinheiros, que não davam frutos, nas terras pobres da freguesia.
 Na década de cinquenta, a Cáritas passou a enviar leite em pó, queijo e farinha de trigo de que o forno comunitário fazia pão, com a ajuda solidária de quem o amassava, levedava, tendia e cozia, com rezas para crescer, no forno aquecido com lenha que todos acarretavam. Foi assim que a escola passou a dar a única refeição de muitos, o naco de pão, o pedaço de queijo e o copo de leite. E os milagres que operou! Acabaram as barrigas saídas que denunciavam carências proteicas e as crianças aprendiam melhor os nomes dos rios e afluentes, os órgãos do corpo humano, as serras de Portugal dos quatro sistemas orográficos, as estações das linhas e ramais dos caminhos de ferro. Até os reis de Portugal e os seus cognomes, os filhos bastardos e as batalhas vencidas eram mais facilmente memorizados. 
Quando a caridade internacional veio minorar a fome daquelas crianças, que à segunda-feira aguardavam ressarcir-se da ‘barrigada de fome’ do fim-de-semana, o rendimento escolar melhorou na escola onde a professora já antes conseguia um número assinalável de distinções na 4.ª classe.
 As senhas de racionamento não interessavam a quem nem as diminutas quantidades de mercearia, azeite ou petróleo podia pagar. Os géneros iam certamente parar à candonga de outras localidades mais abastadas por agiotas que faziam pela vida. 
Com o copo de leite, o pão e o queijo ficava menos soturno o ambiente da escola, onde chovia, com grades de fero nas janelas a que faltavam vidros, telhado há anos à espera de telhas, paredes com bolor e soalho apodrecido, com buracos de onde surgiam ratos e através dos quais se viam ossos de um antigo cemitério.
 Da parede que separava a sala da professora da da regente escolar pendia um Cristo de bronze pregado na cruz entre as fotos de Carmona e Salazar, todos alheados da pobreza dos alunos e do estado do edifício que, na década de sessenta, ruiu durante as férias de Natal. Sob os escombros jazeram os mapas rasgados, o quadro preto, a caixa métrica e as velhas carteiras salpicadas de azul com pingas de água que acertavam nos tinteiros.
 Correu na aldeia que fora milagre estarem de férias a professora, a regente e os cerca de sessenta meninos e meninas que usavam como casas de banho quintais diferentes mas, a avaliar pelo destino do crucifixo, o mais certo era o desmazelo que a escola merecia ao Estado Novo. Não faltaram ave-marias e padre-nossos a agradecer à Senhora de Fátima a benevolência de deixar sobreviver à derrocada quem resistia à fome. Até os invisíveis Anjos da Guarda, que as catequistas garantiam escoltar cada pessoa, e alguns meninos pensavam ingenuamente que residiam na cidade que distava duas léguas, até eles, foram implicados no alegado milagre.
Nos intervalos, que em lugares menos hostis eram destinados ao almoço, os meninos jogavam ao pião, à xona ou davam xutos numa bola de trapos e as meninas à macaca, ao pé coxinho, ou a pares, com as pedrinhas.
 No verão, à tardinha, o horário escolar era largamente alongado, à saída da escola, mal a professora desaparecia, os garotos do Cume* perseguiam os de Cairrão à pedrada, nas rivalidades tribais autóctones que o medo da professora arrefecia.
Em mais de seis décadas varreram-se-me da memória os nomes e as caras dos meninos com quem brinquei. Mantêm-se no afeto que resistiu ao tempo e à desmemória. E que saudades!
 Cume* = nome da aldeia que era a sede de freguesia a que pertenciam as localidades anexas de Cairrão, Carapito e as quintas do Ordonho e do Sr. Morgado.
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Ponte Europa / Sorumbático

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3 Comments:

Blogger opjj said...

Eu sou da aldeia e vivi em várias aldeias e é a primeira vez que ouvi tal; cobras esfoladas e assadas?
Nos países asiáticos cães e cobras são petiscos,mas em Portugal!
Na guerra colonial vi comer ratos como protesto! Cobras nunca.

8 de outubro de 2015 às 14:58  
Blogger José Batista said...

Uma realidade tão triste quanto verdadeira. Creio que era assim por todo o interior do país. Vi(vi) coisas parecidas no fim da década de sessenta, mas sei-o principalmente pelos relatos dos meus pais e tios.
Num livro intitulado "Forcão", de autor transcudano, abundantemente documentado com fotografias alusívas à "capeia arraiana", lá se referem os lagartos capturados e esfolados, para se obterem os lombos que eram então assados com umas "arinhas" de sal trazidas no fundo dos bolsos.
O que me espanta(va) é que muitas pessoas, não obstante o sofrimento, sobretudo a fome, fome mesmo, tinham saudades das vivências da sua meninice.
Este texto parece-me uma radiografia de um tempo que, felizmente, não tem coincidência nos dias de hoje, apesar de tudo.

8 de outubro de 2015 às 23:31  
Blogger 500 said...

Um retrato que, com nuances, vivi noutra latitude, mais a Norte.

9 de outubro de 2015 às 00:09  

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