18.2.25

DO LABORATÓRIO À COZINHA

Por A. M. Galopim de Carvalho

Vinte e quatro anos depois da jubilação, eis-me a publicar mais um livro em que se fala de açordas, migas e outros comeres, como diziam os rurais alentejanos no tempo em que, como adolescente, pude conviver com eles. Nos três anteriores, “Com Poejos e Outras Ervas”, “Açordas Migas e Conversas” e “Com Coentros e Conversas à Mistura”, além de receitas culinárias, fala-se “de tudo e mais alguma coisa”, da crónica à ficção, da mineralogia e geologia à história e à filosofia, das artes à sociologia. Neste, síntese dos anteriores, a que se acrescenta o que fui editando na minha página do Facebook apenas das muitas confecções aprendidas e criadas, todas elas da gastronomia alentejana ou nela inspirada.

Durante quarenta e quatro anos, primeiro como aluno, depois como docente e investigador nas Universidades de Lisboa e de Paris, no domínio das rochas sedimentares e dos seus minerais, o laboratório, com recursos à química e à física, foi uma constante na minha vida. Um laboratório foi, ainda, o que, respondendo a uma solicitação do saudoso professor Orlando Ribeiro, criei no Instituto de Geografia da Faculdade de Letras de Lisboa, onde a investigação em sedimentologia estava na base da geomorfologia.

Quando o limite de idade me arrumou, contra minha vontade, na “prateleira dos reformados e pensionistas”, toda a parafernália laboratorial que por amor à arte, por assim dizer, me entrara no coração, parece ter encontrado continuidade e conforto na da cozinha. Gobelets, provetas e erlenmeyers viraram tachos, panelas e frigideiras; cloretados, oxidados e sulfatados tomaram o lugar dos refogados, guisados e estufados; átomos e iões foram substituídos por bagos de ervilha e por feijões; a torneira com água fria e quente é a mesma, os queimadores de gás do fogão passaram a bicos de Bunsen e o forno fez as vezes da estufa.

Acontece que, em criança de 9,10 e 11 anos, era eu que, a mando de minha mãe, ia ao talho e ao mercado municipal, com o recado bem metido na cabeça, comprar o peixe, as hortaliças e a fruta. Ia também à mercearia, em busca do arroz e das massas, do feijão e do grão, do açúcar e da farinha, da manteiga e do azeite, nesse tempo, tudo a granel, aos quilos e meios-quilos, litros e meios-litros. Com essa experiência aprendi a relacionar os produtos que trazia para casa com as confecções que vinham à nossa mesa, numa família de pai, mãe, seis filhos e uma tia viúva, irmã da minha mãe, uns 18 anos mais velha do que ela. Acontece, ainda, que muito cedo ganhei interesse pela cozinha e que a minha mãe teve gosto e paciência para me ensinar os rudimentos que me permitiram caminhar “pelo meu pé”, descobrir o que fui descobrindo e criando o que o acaso fez surgir, sempre inspirado na cozinha tradicional alentejana.

Nos anos em que fui profissional a tempo inteiro, mais precisamente, entre 1961 e 2001, sempre gostei de, aos fins-de-semana, feriados e períodos de férias, me entreter na cozinha. Nos outros dias trabalhei naquilo em que me tornei profissional. E com que gosto! Com tanta a entrega e tanta a obsessão que costumava dizer estar sempre em férias, modo eufemístico de dizer que nunca me lembrava delas. Nos três anos que vivemos em Paris, no 5ème arrondissement, Rive Gauche, a Isabel e eu, alugámos um apartamento com uma pequena, mas funcional, kitchenette, íamos ao mercado na Rue Mouffetard, tal como os nossos vizinhos, e cozinhámos o tempo todo, ora um, ora outro.

Este outro livro, certamente o último que farei, encaro-o como um poema à gastronomia alentejana, como arte colectiva e ancestral de um povo que aprendeu a tirar das ervas, que a Natureza pôs à sua disposição, os aromas e os sabores que a caracterizam.

Importante atractor do já chamado turismo gastronómico, a gastronomia regional é um pilar da identidade da área territorial a que se refere e um património cultural que valoriza a relação entre a mesa e a sociedade locais. A gastronomia oferece ao viajante verdadeiras experiências muito pessoais e autênticas dos locais por onde passa, uma vez que, sentar-se à mesa para almoçar ou jantar, é uma necessidade de todos os dias. E a verdade é que quem viaja procura, cada vez mais, experiências que liguem os locais visitados ou a visitar às respectivas raízes culturais, e os “sabores” são uma parte importante dessas raízes. É por isso que, no dizer do colunista gastronómico espanhol Xavier Domingo (1929-1996), «Los libros de cocina son materia prima para historiadores, sociólogos, psicólogos, filósofos e incluso – termina com humor - para cocineros”. Sabemos que a gastronomia representa uma fatia importante do turismo cultural e também sabemos que este está intimamente ligado ao turismo rural, pela relação que tem com a agricultura e a pecuária que estão na base dessa mesma gastronomia.

Quem me conhece sabe que cozinhar tem sido para mim um hobby, à semelhança de outros, como a bricolage, a escultura, a pintura e, ultimamente, a escrita. Não sendo gastrónomo, gosto de ler sobre gastronomia, a «nona arte», como a distinguiu o conhecido gastrónomo, escritor e jornalista, Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949), além de que aprecio, e muito, os bons sabores e gosto de «pôr as mãos na massa», no dizer de José Quitério (1942-), o jornalista fundador da secção de gastronomia do semanário Expresso.

Revejo-me nas palavras de Alfredo Saramago (1938-2008) que escreveu, em 1994, «O homem que gosta de cozinhar é um ser social por excelência.» E é isso mesmo que eu sei que sou. Com efeito, é em confraternizações de amigos e familiares que mais gosto de cozinhar.

“Do Laboratório à Cozinha” é um apanhado de ideias e sugestões passadas a escrito, cujo objectivo é dar a conhecer confecções caseiras, muito simples, vindas de pais e avós, amigos e conhecidos, citadinos e rurais, quase sempre com a marca mais ou menos visível da grande província que é a minha. Não indica quantidades nem tempos, nem se preocupa com os modos de preparação. Neste propósito, destina-se a toda aquela ou todo aquele que conheça os rudimentos da cozinha, deixando a cada um a liberdade de fazer delas o que melhor entender.

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17.2.25

No "Correio de Lagos" de Janeiro de 2025

 

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No "Correio de Lagos" de Janeiro de 2025

 

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No "Correio de Lagos" de Dezembro de 2024

 

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15.2.25

Grande Angular - O debate está na praça pública

Por António Barreto

Bem ou mal, bem e mal, a questão da imigração está no centro dos debates políticos que vão dominar as próximas eleições, das autárquicas e legislativas, às europeias e presidenciais. Assim como ocupar discussões parlamentares e académicas. Não há por onde fugir e ainda bem. Vão aos poucos desaparecer os que insistem em que “não há problema”, que “é só racismo”, que não passa de uma “moda nacionalista”. Vão-se encolhendo os que garantem que as soluções são simples, tal como “fechar as portas aos imigrantes” ou “abrir as portas aos que querem para cá vir”. Nunca se calarão, mas falarão mais baixo, os que asseguram que os nacionais são virtuosos e os estrangeiros pulhas. Já se percebeu que não faz sentido garantir que os imigrantes sejam todos iguais, legais ou ilegais, estrangeiros ou naturalizados, de primeira ou segunda geração, respeitadores da lei ou criminosos, de cultura e tradição próximas ou absolutamente alheias e distantes das portuguesas. É bom que assim seja. Que se diga tudo. Que haja divergências e acordos. Que se consiga melhorar a legislação e a vida no espaço público. 

 

Se assim for, se a discussão pública tiver como efeito a moderação dos preconceitos e o melhoramento da legislação e se aumentar um pouco a racionalidade dos argumentos, vale a pena contribuir para o debate. A começar pela enumeração de princípios e valores, que poderá contribuir para a formação de opiniões.

 

As pessoas não têm o direito de imigrar para o país que lhes apeteça, de ter autorização legal para se estabelecer onde quer que seja e instalar-se ilegalmente onde quiserem. As pessoas têm o direito de solicitar residência, autorização, ajuda e apoio noutros países. Os países de acolhimento possível têm o dever de responder afirmativa ou negativamente a qualquer solicitação, com autoridade e humanismo, de acordo com as suas leis e com as suas capacidades.

 

Cada povo tem o direito de escolher quem prefere ou a quem oferece melhores condições de acolhimento. A inversa não é verdade: um povo não tem o direito de se instalar onde quiser, nas condições que prefere. As regras são feitas pelos povos dos Estados de acolhimento.

 

Os imigrantes não têm os mesmos direitos do que os nacionais (naturais ou naturalizados). A começar pelo direito de voto nas eleições, nomeadamente as que implicam a criação e a escolha dos órgãos de soberania, a revisão ou a aprovação da Constituição, a declaração de guerra e paz ou as decisões sobre o Estado de sítio.

 

Qualquer povo tem o direito de exigir reciprocidade de direitos com os países de proveniência dos imigrantes legais (com exclusão dos refugiados políticos). Não é obrigatório fazê-lo, mas pode fazê-lo.

 

Um Estado deve garantir a universalidade dos direitos fundamentais, por exemplo vida, justiça, liberdade de expressão, segurança social, saúde e educação, não distinguindo entre imigrantes ou nacionais. Mas os direitos políticos dos imigrantes, designadamente o direito de voto e de participação nas eleições, podem ser reduzidos, restritos e diferentes dos direitos dos cidadãos nacionais (ou naturalizados).

 

Um Estado tem o direito e o dever de proibir práticas e costumes que infrinjam directamente as suas leis vigentes, mas também práticas e costumes que, sem infringir directamente as leis, contrariem direitos fundamentais ou regras estabelecidas, como nos casos de incesto, de vestuário que contraria direitos de outrem (o uso da Burca, por exemplo), de violência paterna ou materna, de ameaças conjugais e de tratamento dos animais.

 

Um Estado tem o direito e o dever de proibir todas as práticas condenadas nas suas leis, mas permitidas nas leis dos países de origem dos povos imigrantes: poligamia, excisão, casamento forçado, casamento contratado, uso de véus que escondem a identidade, proibição de frequentar o espaço público, justiça pelas próprias mãos, todas as formas da “lei de Talião” e negação de direitos às mulheres e às crianças.

 

Um Estado tem o direito e o dever de facilitar a imigração e a legalização de quem se predisponha a aceitar medidas de integração, designadamente aprendizagem da língua. Um Estado tem o direito de proibir ou punir pessoas e comunidades imigradas que se recusem, por exemplo, a frequentar a escola obrigatória nacional.

 

Um Estado tem o direito (até talvez o dever…) de exigir que os imigrantes cumpram todos os deveres de legalidade, de inscrição e contribuição para os sistemas nacionais de impostos, segurança social e outros. Um Estado tem o direito de não conceder acesso aos serviços sociais e públicos a quem não se encontra devidamente legalizado e registado.

 

Um Estado tem o direito e o dever de garantir que o trabalho imigrante não contribua para a redução dos salários, nem para a exploração dos imigrantes nas suas condições de alojamento e de emprego.

 

Um Estado tem o direito de contemplar a recusa de autorização e a suspensão, a expulsão ou a deportação de estrangeiros imigrantes não naturalizados, em casos de crimes tipificados, incluindo as falsas declarações para obter autorizações de residência e trabalho, os crimes violentos e o tráfico de produtos proibidos e ilegais.

 

Um Estado tem o direito e o dever de aprovar uma política de população e de imigração, indispensável para o respeito pelos direitos dos cidadãos nacionais e dos imigrantes. A exploração de imigrantes, o abaixamento dos níveis de salários, a habitação em péssimas condições, o tráfico de trabalho, as redes internacionais de pessoas e de bens ilícitos e a desorganização dos serviços públicos resultam também da falta de políticas de migração. O descontrolo e a desatenção das autoridades relativamente às questões das migrações só agravam as vidas dos nacionais e dos imigrantes, incluindo o não reconhecimento dos seus direitos.

 

Do ponto de vista internacional e demográfico, Portugal tem uma situação muito interessante, pois é simultaneamente país de emigração e país de imigração. O facto traduz realidades menos felizes (há falta de oportunidades para os nacionais, ao mesmo tempo que há falta de trabalhadores para muitas actividades). O país perde população com aptidões e recebe população sem qualificações. Mas, ao mesmo tempo, permite ter uma visão mais completa dos problemas. Nesse sentido, Portugal tem o direito e o dever de exigir aos imigrantes o que outros países exigem aos emigrantes portugueses. Com uma certeza: são os países autoritários, as ditaduras, que proíbem as migrações.

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Público, 15.2.2025

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9.2.25

Grande Angular - Vencedores e derrotados

Por António Barreto

Parece haver consenso: vivemos tempos de mudança e de transição como não se via há décadas. É tão forte, profunda e rápida esta mudança, cujo princípio conhecemos e cujo fim nem sequer imaginamos, que não é arriscado afirmar que, dentro de vinte ou trinta anos, aos olhos de hoje, o mundo será irreconhecível.

 

Não é o conceito abstracto de mudança que suscita apreensão. Na verdade, sempre o mundo mudou. Devagar ou depressa. Pacífica ou tumultuosamente. Para melhor ou pior. Mas sempre mudou. “O mundo é feito de mudança”, como está escrito há séculos. O que inquieta muitos são a radicalidade e a velocidade da mudança.

 

A verificação de que estamos em grande, secular e histórica mudança é comum a muita gente, é visível todos os dias. As balanças de poderes económicos, sociais, políticos, financeiros, militares, culturais e religiosos, nem sempre coincidentes, são já hoje o que nem sequer se imaginava há quarenta anos. Não se sabe se esta mudança, esta transição global e profunda, ainda vai no princípio ou se vai a meio caminho. Só sabemos que não está no fim. Ao contrário da mudança quotidiana, permanente, feita de mais ou menos solavancos, de transformações e ajustamentos imperceptíveis, a transição de que aqui se fala é mais rápida e mais brutal, a ponto de se poder afirmar que, em poucos anos, o ponto de chegada se encontra a anos-luz do ponto de partida.

 

Em todas as mudanças, sempre houve vencedores e derrotados. E sempre foi perigoso lidar com uns e com outros. Os vencedores afirmam-se dominando, conquistando, explorando e comandando, à força ou com jeito. Os vencidos reagem sempre mal, com sabor amargo da derrota, deixando-se submeter ou procurando a vingança.

 

Na actual transição, é o mundo inteiro que está em causa. Ninguém escapa. E todos serão vencedores ou derrotados. Perdem a Europa e os Estados Unidos, cuja hegemonia cessou inexoravelmente. Perde o Ocidente liberal. Perde o Império Russo, czarista, soviético ou plutocrata. Ganha a China. Ganham os outros grandes países asiáticos (a começar pela Índia). Perde a África, em conjunto ou aos bocados. Ganham os países islâmicos, sobretudo os produtores de petróleo. Perde a América Latina, a do continente ou a dos países individuais.

 

O passado recente ajuda-nos a perceber. Basta olhar para a participação de cada conjunto geográfico e político no total. Ver o que cada parte representa no total do mundo do PNB, da riqueza disponível, da população, do emprego, da força militar, da produção industrial, das patentes registadas, das exportações e de outros temas e sectores com significado. Em cada um destes sectores ou temas, com raras excepções, a Europa está sempre a perder importância. Já representou, ainda há pouco tempo, um quarto ou um terço do total mundial do produto, está agora próxima dos 10% ou pouco mais.  Até os Estados Unidos, em vários destes temas, deixaram de ter posição dominante. Antigamente, os Estados Unidos ditavam. Hoje, tentam a guerra comercial.

 

Que vão fazer, nesta transição, nesta quase reviravolta, os derrotados? E os vencedores? Olhando com cautela para a Europa, a América, a Rússia e a Ucrânia, a China e Taiwan e quase toda a África, rapidamente se percebe que grandes acontecimentos e grandes dramas esperam por nós.

 

Mas há assuntos que nos afligem mais. Perder domínio político ou poder económico é duro e difícil. Mas, perder a liberdade e a democracia é um verdadeiro desastre. Ora, aquilo de que aqui se fala é provavelmente, desde meados do século XX, o maior perigo ou a maior ameaça contra a sociedade democrática ocidental e contra o regime de democracia liberal. Estamos a assistir ao recuo da democracia e das tentativas democráticas em todo o mundo desde finais do século XX. O mundo democrático tem hoje menos poder e menos importância do que há algumas décadas. E há cada vez menos povos e menos Estados que aspiram a uma qualquer forma de democracia.

 

Há, evidentemente, ameaças “internas “e “externas”. Entre as primeiras, a ascensão rápida da extrema direita e gradual da extrema-esquerda. Ou as fissuras abertas entre aliados, como sejam os Estados Unidos e a Europa. Assim como os erros sucessivos dos governos democráticos. Para já não falar do crescimento do populismo e dos plutocratas. Além, evidentemente, do êxito das ideias antidemocráticas favoráveis às “políticas correctas” do género, das minorias, das raças e do multiculturalismo acrítico.

 

Quanto às ameaças externas, estas encontram-se previsivelmente na concorrência internacional, na competição política e militar e na guerra comercial agora desencadeada. E nas ambições dos novos poderes.

 

Além da velha rivalidade entre continentes, países e Estados, vivemos agora um confronto entre democracia e não democracia. Entre liberalismo e autoritarismo. O Ocidente e a democracia já perderam muito. Os regimes não democráticos ganham, dia a dia, posições importantes. Na força militar, na economia, na produção industrial e no acesso a recursos naturais no mundo inteiro. Pior ainda do que este confronto é a ascensão permanente, dentro das democracias, das vozes, das populações, dos políticos e dos eleitores não democráticos. A este fenómeno deve-se grande parte do declínio da democracia, tanto quanto ao avanço da não democracia.

 

Talvez o recuo da democracia e da liberdade dos ocidentais seja inevitável. Mas o que é decisivo não é o renascimento imperial. É, isso sim, a preservação das liberdades internas e da democracia como valor inalienável. E insubstituível. Mas há dificuldades no caminho. A primeira reside no facto de a diminuição de força económica e militar poder acarretar a perda de força política e o declínio da segurança democrática. A segunda encontra-se claramente no facto de as convicções democráticas e a crença nas liberdades estarem enfraquecidas pela abdicação e pela descrença. A Europa, o Ocidente, a democracia e as liberdades não estão em perda apenas na competição internacional. Começam a ser derrotadas pelos próprios. Por nós.

Público, 8.2.2025

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5.2.25

Arroz de coelho

Por A. M. Galopim de Carvalho

O nosso arroz de coelho, preparado com a metade dianteira do animal, o “devant de lapin” no dizer dos franceses, nasceu em Paris, no início dos anos 60 do século que passou, no antigo Hotel Blanadet, 51, Rue Monge, no 5 ème arrondissement, em plena rive gauche, designação dada a esta zona na margem esquerda do Sena, então muito frequentada por artistas e intelectuais. Aí se situavam o Museum National d’Histoire Naturelle, o Collège de France, a École de Mines, a Sorbonne, a École Politechnique e outras instituições de ensino superior e de investigação científica onde estudavam e estagiavam uma dezena de portugueses, entre geólogos, físicos, biólogos e até um sociólogo, todos eles residentes no velho e simpático hotel. Concentrados no 6º andar, que um de nós baptizou de “Avenida das Tílias”, aí se viveu, por mais ou menos tempo, em apartamentos ou em quartos simples, consoante se tratasse de casal ou de pessoa só.

Muitas e muitas vezes, aos domingos, reuníamo-nos em longos e animados almoços, ora no nosso apartamento ora no dos Martinhos, os únicos com o espaço suficiente para sentar uma dezena de lusitanos, ávidos de falar a própria língua, ao fim de uma semana literal e, às vezes, penosamente francófona, saudosos de saborear qualquer coisa que nos trouxesse a casa e nos recompusesse para mais uma semana de Réstaurant Universitaire, de self-services ou de refeições comidas à pressa, à base baguettesjambonpatées ou queijo Brie. Foi neste contexto que, um certo domingo, servimos aos nossos conterrâneos, colegas e vizinhos o dito e saboroso arroz de coelho.

Nessa altura, em que o franco francês rondava os seis escudos (o preço de um litro de gasolina), comprava-se no talho um coelho médio por sete a oito francos, com a curiosa particularidade de a metade dianteira, o devant, quase sempre rejeitado por uma clientela de viver mais desafogado, ser vendido aos clientes de menores posses, como era o nosso caso, por apenas um franco, e o dérrière, pelos restantes seis ou sete.

Com as cabeças, mãos, costelas e fressuras de quatro ou cinco coelhos comia-se, no dizer de todos, o melhor arroz do dito, um pouco ao jeito do sabor da cabidela perfumada com cominhos.

– Este manjar, - dizia o Miguel Ramos, um dos lusitanos, a chupar à mão, uma a uma, as finas costelinhas, – devia ser comido acompanhado de louvores à Natureza e à arte de quem o confeccionou.

Tais almoços, bem regados por bons tintos du Rhône e outros bem escolhidos, e pela sempre fresca, saborosa, perfumada e estaladiça baguette, prolongavam-se tarde fora, de mistura com muita conversa e animação, que crescia na razão inversa do nível do líquido nas respectivas bouteilles.

– Abre aí outra – dizia o António Ribeiro – que esta já disse o que tinha a dizer.

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3.2.25

São raros os meus familiares...

Por A. M. Galopim de Carvalho

São raros os meus familiares, amigos e colegas de trabalho que continuam a resistir à gadanha do tempo. Já quase todos partiram e, sem dramatismo, isso diz-me aquilo que todos nós sabemos. O meu Bilhete de Identidade perpétuo (já não me foi passado o Cartão de Cidadão) diz que sou um velho de 94 anos. Isso é mais que evidente e, todas as manhãs, o espelho da casa de banho o confirma. Mas a minha alma não envelheceu e eu tenho plena consciência disso. Mantenho, a um tempo, a ingenuidade e a transparência da criança feliz que fui, a insatisfação, ousadia e aventureirismo da adolescência, a energia e positivismo da idade madura e a ponderação, tolerância, paciência e resignação dos velhos. Não perdi o sentido de humor e o amor à vida. O corpo e, em especial, as pernas é que não ajudam. Mas, aqui, sentado, frente ao monitor, a dedilhar no teclado as palavras ditadas pelo pensamento, não tenho idade nem as dores do corpo dos velhos. Continuo a trabalhar e tenho a felicidade de o poder cumprir no que me dá prazer. Faço-o ao limite das minhas capacidades físicas, tenho consciência de que o produto do meu trabalho continua a ter utilidade e isso encoraja-me a continuar.

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31.1.25

UMA CURIOSIDADE EM QUE SE FALA DE CRISTALOGRAFIA.



Por A. M. Galopim de Carvalho

Hoje, ao falar de minerais, praticamente, já ninguém fala em sistemas cristalográficos (cúbico, tetragonal, monoclínico e outros), classes de simetria, eixos de rotação, planos de simetria, etc. Uma matéria linda que, quando mal ensinada, foi detestada pelos alunos que tiveram de a “empinar” para passarem no exame. Era a chamada Cristalografia Morfológica, disciplina de pendor geométrico e matemático que, no século XIX e primeira metade do XX, esteve na base de toda a investigação em Mineralogia. A recente Cristalografia Estrutural, possibilitada pela investigação com base na utilização dos raios X, é hoje um capítulo da Física do Estado Sólido e arrumou a dita Morfológica na “prateleira do esquecimento”.

Em termos da velha Cristalografia Morfológica, o quartzo α (alfa) representa a classe trapezoédrica trigonal, caracterizada pela existência de um eixo de rotação de grau 3 e de três de grau 2, situados no plano perpendicular ao eixo ternário, fazendo entre si ângulos de 120º. Nestas condições, não tem centro nem planos de simetria. O quartzo β (beta) pertence à classe trapezoédrica hexagonal, com um eixo de rotação de grau 6 e três eixos de grau 2, situados no plano perpendicular ao dito eixo, fazendo, entre si, ângulos de 60º. À semelhança do quartzo α , a conjugação destes operadores implica a ausência de centro de simetria. Hoje fala-se das respectivas estruturas íntimas, ou seja, do arrumo dos iões nas respectivas redes ditas cristalinas.

 

Quando se fala de quartzo, sem mais qualificativos, referimo-nos ao quartzo α (alfa) ou de baixa temperatura, presente e abundante em todos os grandes grupos de rochas da crosta, das ígneas ou magmáticas às metamórficas, passando pelas sedimentares e, ainda, pela imensa maioria dos corpos filonianos pegmatíticos e hidrotermais.

 

Por tradição, o conceito de cristal implicava o carácter poliédrico (facetado) do sólido, fosse ele uma substância mineral ou orgânica, natural ou produzida artificialmente. Tal concepção foi abandonada a partir do momento em que (com a descoberta dos raios X) se tornou conhecida a estrutura íntima, à escala atómica, dos corpos no estado sólido. Assim, cristal é hoje entendido como uma porção uniforme de matéria cristalina, isto é, matéria caracterizada por uma disposição geométrica dos seus átomos, segundo redes tridimensionais, próprias de cada espécie. Um tal arranjo geométrico interno deste tipo é posto em evidência, entre outras manifestações, pelas faces do cristal pela existência e orientação dos planos de clivagem e das maclas.

Mas nem sempre a matéria cristalina se manifesta com a configuração de um cristal, no sentido vulgar do termo, isto é, no de um corpo poliédrico, total ou parcialmente limitado por faces planas. Um grão de quartzo, no seio do granito ou solto, como grão de areia da praia, não tem forma poliédrica, mas é matéria cristalina.

 

Vem isto a propósito da fotografia, do lado direito, inferior, da imagem, onde são visíveis pequenos triângulos.

Fotomicrografia obtida ao microscópio dito de varrimento (“scan”) põe em evidência a classe trigonal do quartzo alfa ou de baixa temperatura e mostra que mesmo um simples grão de areia, (arrancado por erosão de uma qualquer rocha (não vulcânica), é matéria cristalina. É, digamos assim, parte de um cristal que não teve condições para se manifestar. como foi o caso exemplificado na outra fotografia.

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17.1.25

“SOPAS DE CARNE”






Por A. M. Galopim de Carvalho

Numa fria manhã de inverno, com 7º C, aqueçamo-nos, recordando o calor de um dia de Verão alentejano, com cerca de 40ºC.

Bom fim-de-semana.

Foi num dia quente e seco de Julho, nos finais dos anos 40 do século que passou, com o sol quase a pino, na Herdade das Cortiçadas, ali para os lados de São Sebastião da Giesteira. Eu, o meu irmão Mário e mais dois companheiros calcorreávamos os campos amarelecidos do restolho da última ceifa, nesse tempo, ainda feita a braços de homem e mulher, de foice numa mão e dedeiras de cana a proteger os dedos da outra mão.

Vencida uma suave colina, deparava-se-nos, na planura que se abria aos nossos olhos, a locomóvel fumegante, accionando a grande debulhadora de madeira e ferro, há algum tempo e à distância, anunciada pelo matraquear cadenciado daquela espécie de locomotiva do século XIX. Concebida para se deslocar de seara em seara, ano após ano, sempre no pino do calor, fazia a debulha do trigo de várias herdades e encharcava a camisa da dezena de homens que andavam com ela.

Era a grande azáfama à nossa frente, ruidosa, escaldante e poeirenta, lançando no ar nuvens de moínha amarelada que inflamava os olhos de quem os não protegesse com uns óculos rudimentares, próprios para esse trabalho. Enquanto uns homens iam alimentando, com molhos, a voracidade da máquina, outros iam empilhando os fardos de palha que dela saíam a um ritmo alheio ao seu cansaço.

Não longe desta cena, à sombra de uma velha azinheira, a cocaria era uma correnteza de panelinhas de barro aconchegadas ao brasido ali atamancado, entre pedras, com a lenha que havia à mão. Uma mulher, cuja tarefa era vigiar este cozinhado colectivo, ia dando, a cada panelinha e de vez em quando, a conveniente volta, operação que consistia em pegar-lhe pela asa e dar-lhe uma sacudidela rápida e certeira, fazendo com que o que estivesse por baixo passasse para cima e que o que estivesse por cima fizesse o invés. Estava ali, aferventando baixinho, quase pronto, à espera do jantar dos homens, ao apitar do meio-dia. A meio daquele alinhamento, destacava-se uma panelinha maior. Era a dela e do marido ali ao lado, na debulha.

— Ora então, bom dia! - Disse um dos meus companheiros, quando nos aproximámos, de olhos postos no cântaro encostado ao grosso tronco da árvore, fazendo adivinhar frescura, sob a única sombra ao nosso alcance.

— Bom dia é como quem diz. - Respondeu a mulher plena de bom humor e em jeito de bom acolhimento. - Já estamos quase na boa tarde.

Deu-nos água fresca com o delicioso sabor a barro e satisfez-nos a curiosidade no respeitante aquela cozinha ali improvisada no chão.

— Nós chamamos-lhe “cocaria”. Já no tempo do meu avô era assim que se dizia. Cada um traz a sua panelinha e o avio que quer ou pode. A maioria traz um naco de toucinho e outro de chouriço e, às vezes um pedacito de carne da salgadeira. Junta-lhes uma cabeça de nabo, uma batatita e uma ou outra verdura com que fazem, chama-lhes a gente, umas “sopas de carne”. Migam-lhes pão à medida da vontade que têm e, depois, alguns deles estendem-se por aí, à sombra, e dormem a sesta até que o ganhão os acorde para acabarem a jorna até o sol-pôr.

O resto da tarde ficámos a conviver e, até, a ajudar naquilo que pudemos. Montámos, ali mesmo, acampamento, ceámos do que tínhamos e passámos o serão a conversar com o trabalhador que ficou de guarda às máquinas. Quando demos por terminada a confraternização, o meu irmão comunicou:

— Amanhã vou à venda a São Sebastião da Giesteira comprar o que for preciso para fazermos sopas de carne. 

—  E não te esqueças do raminho de hortelã. – Disse um dos companheiros, mas que o sono não me permitiu saber qual deles.

Na imagem (cuja autoria desconheço) vê-se, em primiro plano, a mulher que toma conta do "jantar" (no Alentejo, o jantar era a refeição do meio-dia) dos trabalhadores. Atrás dela a "aguadeira" com o cântaro de barro, numa mão, e o cocharro de cortiça, na outra.

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15.1.25

RENASCER


Por A. M. Galopim de Carvalho

No léxico geológico o vocábulo “palingénese”, radicado nos étimos gregos “palim” que quer dizer de novo, e “génesis”, que significa acto de gerar, veicula a ideia de renascer. O termo foi usado por alguns autores para referir a fase do ciclo petrogenético que conduz à geração do granito por fusão, no interior profundo de uma montanha em formação, das rochas nela envolvidas, rochas que, por sua vez, resultaram da acumulação dos sedimentos derivados da erosão de terrenos em que tinham lugar granitos de uma geração anterior.

Esta ideia suscitou-me a reflexão que aqui vos deixo, com votos de um bom Domingo, mesmo com chuva, que tanta falta nos faz,

 

Renascer é uma constante nas histórias do Universo, da Terra e também dos homens. 

 

 Renasce, todos os anos, plena de luz, a Primavera, pondo fim ao frio e sempre triste Inverno 

que, também ele, renascerá meses mais tarde. 

 

Todos os dias, o Sol morre no longínquo Poente, para renascer na manhã seguinte, do outro lado 

do mundo, numa alusão da morte e do renascer da natureza. 

 

Fénix, a ave da mitologia egípcia, ateava o fogo ao seu ninho e deixava-se consumir pelas chamas, 

renascendo depois, dos seus restos calcinados. 

Na expressão figurativa do cristianismo, o renascer da Fénix é o símbolo da ressurreição de Cristo. 

 

Há 14 anos, “Fénix 2” foi o nome escolhido para designar a cápsula que, numa operação prodígio

da engenharia mineira, fez renascer, um a um, os 33 mineiros da mina de São José, no Chile, 

soterrados a cerca de 700 metros de profundidade.

 

No final da Idade Média, na transição para a Idade Moderna, teve início, nas cidades de Florença e

 Siena, um período marcado por transformações em muitas áreas da vida humana, em particular 

nas artes, na filosofia e nas ciências, com evidentes reflexos na sociedade, na economia, na política 

e na religião. Foi a ruptura com as estruturas antigas em transição gradual do feudalismo para o 

ideal humanista e naturalista. Deu-se-lhe o nome de Renascimento, dado que fez renascer as 

referências culturais da Antiguidade Clássica

 

Renascem as cidades depois de destruídas por catástrofes naturais ou pelas guerras. Renascem, 

para a vida, as mulheres e os homens que se libertam dos agentes opressores, sejam eles outros

 homens ou mulheres ou as tristemente célebres substâncias psicoactivas.

 

Renascem os cravos vermelhos, todos os anos, em Abril e, logo a seguir, nos campos, renascem 

as espigas de trigo, as papoilas e, à noite, o tracejar dos pontos de luz dos pirilampos, ao mesmo tempo que, nas avenidas, praças e jardins, o chão se cobre de um tapete de pétalas lilases de jacarandás.

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13.1.25

“A LUZ DA CAL”


Por A. M. Galopim de Carvalho

“A Luz da Cal” é o título de um belo livro com texto de Urbano Tavares Rodrigues, e fotografia de António Homem Cardoso: Evoca as casas caiadas de branco dos campos do Alentejo. 

Para haver cal é preciso haver caleiros e nós conhecíamos um que, não só a fabricava como a vendia de porta em porta. Todos os anos, umas semanas antes da Páscoa, percorria as ruas da cidade numa carrocita puxada por uma mula e coberta por um toldo, servindo uma clientela sempre certa.

Fazer caianças em casa nos primeiros dias de sol, findo o Inverno, era uma tradição do Alentejo rural que muitas famílias da cidade continuavam a respeitar. Nos montes, as paredes exteriores e interiores das casas, quase todas térreas, eram caiadas de pincel na mão até à altura do estender do braço e com o dito na ponta de uma cana, daí para cima. 

Na cidade, com prédios de dois e mais andares, a caiança dos exteriores era entregue aos cuidados de caiadores, acrobaticamente empoleirados em grandes escadas de encostar à parede, e com os pincéis sabiamente amarrados na extremidade de compridas canas, estes profissionais de trabalho incerto e arriscado, não dispunham de qualquer protecção. Trabalhavam por conta própria e, em caso de acidente, não havia seguro que lhes valesse. 

Nas residências das famílias mais desafogadas, havia pinturas dos interiores e esse trabalho era entregue a profissionais, considerados artistas e habitualmente designados por pintores. Nestas pinturas a base da tinta era sempre a cal, sendo que as cores pretendidas se obtinham misturando-lhes com mestria certas anilinas à venda nas drogarias. Nas da generalidade da população não havia pinturas, havia simplesmente caianças e essa tarefa, quase um ritual, era feita pelas mulheres da casa, com a cal que compravam ao caleiro.

Sentado no varal da carrocita, o Júlio caleiro, de há muito conhecido da minha mãe, parava sempre à nossa porta pois sabia ter ali freguesa certa. À semelhança do que era regra nos montes, muitas famílias da cidade faziam as suas caianças uns dias antes da Páscoa. Mandava o brio das alentejanas que, entre os Ramos e o Domingo de Festa, tudo reluzisse de brancura.

Na caleira que herdara do pai, o Júlio arrancava a pedra a tiros de dinamite e partia-a a guilho e a golpes de marreta, até terem o tamanho adequado a encher o velho forno. Empilhada a preceito, esta montanha de calcário transformava-se em cal-viva, branca de neve, pela acção do fogo intenso de feixes de lenha, sabiamente metidos na base. Esta cal, bem seca era guardada num barraco, protegendo-a de eventuais chuvas e depois era só encher a carroça, tantas vezes quantas as necessárias para servir a numerosa freguesia.

- Cal branca! – Ia apregoando. – Arre mula! Anda Violeta!

Não raras vezes, começando manhãzinha cedo, carregado à medida da força do animal, chegava ao meio-dia com o carro vazio.

O tempo chuvoso era mau para o negócio, A humidade estragava-lhe a cal, mesmo a que estivesse ao abrigo da chuva.

A minha mãe comprava-lhe sempre umas pedras de cal que metia num pote de barro próprio para esse fim, a que depois juntava a quantidade de água necessária. .Esta operação que despertava grande curiosidade, emitia um som de água a ferver e libertava calor, um processo químico que, só mais tarde, compreendi, quando me foi explicado numa aula do liceu o que era uma reacção química exotérmica. No outro dia a cal de caiar estava pronta a ser usada.

- É boa a sua cal, este ano, senhor Júlio? – Perguntava a minha mãe. – Olhe que a do ano passado já não tinha força. Estava meio-morta.

- Foi do tempo, Dona Adília. Toda a gente se tem queixado. Choveu a maior parte do ano. Quase não tivemos Verão e não ganhei para o trabalho que tive. Mas esta, este ano, é da melhor que já fiz. Está bem viva. Vai ver quando a derregar.

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5.1.25

20º ANIVERSÁRIO do SORUMBÁTICO

 

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4.1.25

Grande Angular - Ao serviço de todos

Por António Barreto

São conhecidos os motivos de luta política. O poder, puro e simples, pessoal ou de grupo. A luta das classes, entre o trabalho e o capital. A luta entre Estados. A luta entre religiões, sempre pronta a ressuscitar. A luta entre etnias. A concorrência entre empresas. A luta entre o centro, geralmente a capital, e a periferia, habitualmente interior. A luta entre o interesse público e os interesses privados.

 

Há quem diga que tudo isso se reduz à luta das classes, a mais importante, a que resume os diferendos. É mentira, mas é um argumento interessante. Como há quem diga que já não há luta das classes, que agora são outras lutas, como entre produtores e consumidores ou entre gerações. Também é mentira, mas também é argumento interessante.

 

Um olhar atento para os debates parlamentares, assim como, nova maneira de viver a democracia, para os discursos feitos à saída do restaurante ou à entrada do asilo, revela que a luta das classes não está no centro de coisa nenhuma. Nível de vida, salários do sector público, pensões, saúde, educação, imigração, racismo, segurança e defesa nacional parecem hoje estar no topo das preocupações.

 

A vida política resume-se, hoje mais do que nunca, a dinheiro. Europeu ou nacional, público ou privado, mas dinheiro. O Governo quer aumentar as pensões, os salários dos grupos profissionais do Estado e o salário mínimo. Tal como quer diminuir impostos. A oposição quer aumentar tudo ainda mais, assim como diminuir impostos muito mais. Ambos querem dinheiro para distribuir pelas autarquias, pelas empresas e pelas profissões. Ambos querem investir muito, nem sempre se sabendo onde nem em quê. O debate político orienta-se cada vez mais para esta grande cornucópia dos dinheiros públicos. Mais dinheiro para quê, para quem, como e para onde?

 

natureza humana é, em geral, assim. E a dos Portugueses também. É pena que, assim, o debate político, que deveria ser claro, formador e informativo, se tenha transformado nesta espécie de contabilidade em que o mais importante é saber quem gasta mais. Fica a perder o sentido do gasto. Ficam a perder o rigor, a racionalidade e a eficácia. O que o Estado gastou, nas últimas décadas, com a TAP e o aeroporto, com os comboios e os transportes urbanos, com o serviço nacional de saúde e a educação, com a electricidade e as grandes empresas falidas, é enorme, mas também é ineficaz, inútil e de muito duvidosa moral.

 

Não há, em Portugal, Tribunal de Contas, tribunais administrativos e de justiça, inspecções de finanças, reguladores sectoriais, conselhos gerais e outras entidades fiscais, que cheguem para responder a esta simples pergunta: por que se gastou tão mal tanto dinheiro? Será mesmo verdade que se gastou mal? Que não se avaliaram os resultados? Que não se corrigiu o caminho do desperdício? Que se prestam tão poucas contas? 

 

A melhor medida é a dos serviços públicos. A do atendimento. A das relações entre pessoas e entidades. A da maneira como não se defende os interesses dos consumidores, dos clientes e dos utentes diante de outrem, Estado, autarquia ou empresa privada. Actualmente, a grande miséria nacional não está nos bairros de lata, nas barracas, nos campos despovoados, nos solos abandonados ou nas instituições culturais. Não. A miséria é a dos serviços públicos, a maneira como os utentes são tratados, o modo hediondo como os consumidores são atendidos, a incompetente prestação de serviços e a desprotecção dos que recorrem aos serviços públicos.

 

As autoridades têm ao seu serviço, para redigir leis e estratégias nacionais disto e daquilo, dezenas de “Observatórios”, de “Conselhos consultivos", de “Entidades reguladoras” e de “Inspecções” quase absolutamente incapazes de prever, de organizar com cuidado, de fomentar a cortesia no trato e de aumentar a eficácia no atendimento. Só não acredita quem não viu as filas de espera no serviço nacional de saúde, as maternidades e as urgências que fecham aos fins de semana, as ambulâncias que não chegam a tempo, as escolas que não têm professores e as que não abrem a horas. Só quem não sabe o que é ser enganado pelas entidades que usam a “fidelização” para explorar os crédulos e as pessoas de boa fé. Só quem não presenciou as filas de espera diante dos serviços de imigração, dos tribunais e das lojas do cidadão. Só quem não se interessa pela maneira como os cidadãos, os utentes e os consumidores são feitos pagantes mudos e reféns passivos das grandes empresas e dos serviços de gás, electricidade, água, telefones e televisão. Só quem não percebe as técnicas dos salteadores do “small print” dos contratos de serviços.

 

Esta situação de degradação nos serviços públicos e de desprotecção dos cidadãos deve-se aos dois partidos que asseguraram o governo durante as últimas três décadas. PS, com 22 anos de governo, e PSD, com 8, tomaram conta, decidiram, melhoraram aqui e ali o estado da nação, mas desperdiçaram tempo e dinheiro, deixaram correr, não se preocuparam com o estado dos serviços, com a amabilidade e a eficácia no tratamento das pessoas, nem com o aumento das zonas de livre escolha e de decisão informada.

 

É verdade que, ao longo das últimas décadas, muita coisa melhorou. Não na justiça, mas em quase todos os outros sectores. É verdade. Mas não mudou o suficiente. Não melhorou à altura da despesa feita e das necessidades dos cidadãos. Mas sobretudo não melhorou na eficácia de tratamento e na humanização do atendimento. O modo como são tratados os velhos, as crianças, os pobres, os imigrantes, os desempregados e os doentes é um bom retrato desta espécie de democracia de pacote.

 

Senhores ministros e senhores secretários de Estado: olhem bem para os rostos dos vossos concidadãos à espera dos comboios ou nas paragens de autocarro à chuva. Olhem para a tristeza das filas de espera na Segurança Social. Vejam bem os corações e as cabeças dos que batem inutilmente à porta da maternidade e dos que esperam pela ambulância. Reparem nas caras de desespero de quem espera 9 horas pela urgência médica, semanas pela consulta ou meses pelo exame. Sintam o desânimo de quem é explorado pelas agências de telecomunicação. Compreendam a triste resignação de quem tem quase medo de viver sem protecção dos seus direitos perante as empresas de serviços domésticos. Percebam os que já consideram normal a espera, a destituição de direitos e a exploração da passividade.

 

Se perceberem, se sentirem, saberão o que fazer.

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Público, 4.1.2025

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28.12.24

Grande Angular - A Europa em perigo

Por António Barreto

Estes anos vão ficar na história da Europa. Pelas boas ou pelas más razões. As boas: se a Europa, a sua União e as suas nações conseguirem ultrapassar as derrotas passadas e os perigos próximos. As más: se a Europa e as suas nações soçobrarem, perderem, forem derrotadas e não saibam ou não consigam recuperar. Parece apocalíptico? É. Exagerado? Talvez não. Possível? Sim.

 

Nas derrotas (políticas, militares, económicas, desportivas e outras), o pior é quando o potencialmente derrotado não se dá conta e não percebe que caminha para a sua perda. Ainda por cima, quando tem meios para evitar a derrota, mas não sabe, não quer, não consegue ou prefere não os utilizar. É o caso da Europa. Está à beira de derrotas históricas, mas nega a evidência. Tem meios para, a prazo, evitar a derrota, mas não os utiliza. Sabe quais são os caminhos para vencer ou pelo menos evitar o pior, mas, por miopia política, recusa percorrê-los. Prefere a complacência. E esperar que as coisas acabem por correr bem.

 

Que erros já cometeu a Europa? Que novas derrotas se preparam? A começar pelo princípio: a Europa esticou excessivamente a corda federalista, sem a conseguir finalizar; destronou as nações, sem as eliminar. Ficou a meio caminho, local de todas as derrotas: nem nações orgulhosas, nem federação poderosa. Os alargamentos foram excessivos e arriscados. O avanço a Leste foi imponderado.

 

A Europa deixou correr a NATO e os Estados Unidos, ficando paulatinamente para trás, poupando recursos e dinheiros, evitando gastos e investimentos, ameaçando a Rússia de modo inconsequente e substituindo a defesa pelos benefícios sociais. Ficou a reboque da América. E desarmada diante da Rússia.

 

O BREXIT constituiu uma das maiores derrotas da Europa em toda a sua existência. Da Europa continental, da União e da Grã-Bretanha. Uma das mais importantes nações europeias e mundiais, um dos melhores exércitos da Europa e do mundo e uma cultura empresarial única abandonaram a Europa. Para nunca mais voltar.

 

Ao longo de décadas, por cupidez e preguiça, por espírito snob e ganância, por facilidade e irresponsabilidade, a Europa deixou definhar a sua indústria, subsidiou a sua deslocalização, fomentou o recurso às empresas do Terceiro Mundo e entregou à China toda a sua capacidade manufactureira. A Europa libertou-se da sua sujidade, do seu lixo e da sua poluição: à custa da sua independência.

 

Por miopia e ilusão, a Europa entregou-se nas mãos da Rússia, do seu gás e do seu petróleo, enfraquecendo-se e fortalecendo aquele que é seguramente o mais vil dos actuais impérios à face da terra.

 

Há várias décadas que a Europa vende tudo o que tem. À China e à Rússia, à América e às ditaduras islâmicas, aos poderosos africanos e aos salteadores asiáticos e latino-americanos. Não só a empresas e Estados, mas também a bandidos e predadores. Fábricas e hotéis, serviços públicos e habitação, estradas e comboios, aeronáutica e telecomunicações, praias e montanhas, energia e barragens.

 

Há décadas que a Europa vem substituindo as suas personalidades, os seus intelectuais, escritores e cineastas, músicos e artistas, os seus académicos, cientistas e humanistas, os seus políticos esclarecidos e cultos, os seus sindicalistas de combate e os seus militares de confiança, por gestores das coisas dos outros, administradores de outrem, solicitadores de bens alheios e empregados de ocasião.

 

A Europa do cristianismo, do individuo, da dignidade da pessoa humana, dos gregos e do Renascimento, do iluminismo, da república, da cidadania, da democracia, dos direitos humanos, do sindicalismo, da ciência, da coesão social, das artes e das letras, essa Europa já é pouco mais do que recordação, tudo estando cedido em troca da arte digital, da inteligência artificial e da criação em streaming.

 

A Europa que viveu de milhões dos seus terem emigrado para outros continentes e de ter recebido milhões de emigrantes das suas e de outras nações, que soube misturar com carácter e acolher com personalidade, essa Europa está hoje enredada e prisioneira da desordem do tráfico de pessoas e dos mesquinhos interesses de dinheiros.

 

A Europa nunca chegou a ser Governo e Parlamento. Deixou de ser Banco. Não é mais Fábrica. Já tinha deixado de ser a Universidade. Já não é Igreja. A Europa é tudo isso, a prestações, mal e toscamente, sem personalidade nem identidade. A Ilustre Casa Europeia, casa de fidalgos arruinados e de pomposos gestores dos interesses de outros, perde todos os dias força e carácter. E, como acontece nas fábulas, não sabe que está a perder. Ou nega.

 

Em crise, nas vésperas de previsíveis derrotas de civilização, a poucos dias do novo e terrível presidente americano, a semanas ou meses de uma temível derrota ucraniana, no início de uma hegemonia sino-americana conflituosa, perto de uma verdadeira conquista islâmica e à beira da humilhação que será a do abandono da Europa pela América, os europeus, muitos europeus, sobretudo os seus dirigentes, comportam-se como se de nada se tratasse. À iminência do desastre chamam exagero e ansiedade. Como antes, aos cemitérios, outros chamaram paz.

 

Como sempre na vida e na história, a glória e a fama não conseguem esconder a vilania e a maldade. Os grandes feitos europeus não fazem esquecer a conquista, a escravatura, a opressão e a ditadura. Mas a Europa soube sempre ser a primeira a criticar os seus próprios erros, as suas malfeitorias e os seus desmandos. Será agora novamente capaz de reconhecer erros e evitar derrotas?

 

A Europa e as suas nações ainda têm alguma força, algumas empresas, alguns cientistas, alguns políticos, alguns intelectuais, alguns trabalhadores, alguns artistas e alguns militares com os quais se possa imaginar que seja possível evitar o desastre, transformar a derrota em vitória e garantir, mais do que uma ressurreição, um renascimento. A Europa tem beleza, natureza, cultura, tradição, história, reputação, património, diversidade e riqueza suficientes sobre as quais pode reconstruir e recomeçar. E ainda tem empresas e instituições.

 

Basta a vontade? Não. De modo nenhum. É necessário um colossal esforço. Muito estudo. Trabalho e ciência. Investimento. Defesa própria. Segurança autónoma. Muita liberdade e crítica. Direitos humanos. E liderança política.

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Público, 28.12.2024

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