13.1.25

“A LUZ DA CAL”


Por A. M. Galopim de Carvalho

“A Luz da Cal” é o título de um belo livro com texto de Urbano Tavares Rodrigues, e fotografia de António Homem Cardoso: Evoca as casas caiadas de branco dos campos do Alentejo. 

Para haver cal é preciso haver caleiros e nós conhecíamos um que, não só a fabricava como a vendia de porta em porta. Todos os anos, umas semanas antes da Páscoa, percorria as ruas da cidade numa carrocita puxada por uma mula e coberta por um toldo, servindo uma clientela sempre certa.

Fazer caianças em casa nos primeiros dias de sol, findo o Inverno, era uma tradição do Alentejo rural que muitas famílias da cidade continuavam a respeitar. Nos montes, as paredes exteriores e interiores das casas, quase todas térreas, eram caiadas de pincel na mão até à altura do estender do braço e com o dito na ponta de uma cana, daí para cima. 

Na cidade, com prédios de dois e mais andares, a caiança dos exteriores era entregue aos cuidados de caiadores, acrobaticamente empoleirados em grandes escadas de encostar à parede, e com os pincéis sabiamente amarrados na extremidade de compridas canas, estes profissionais de trabalho incerto e arriscado, não dispunham de qualquer protecção. Trabalhavam por conta própria e, em caso de acidente, não havia seguro que lhes valesse. 

Nas residências das famílias mais desafogadas, havia pinturas dos interiores e esse trabalho era entregue a profissionais, considerados artistas e habitualmente designados por pintores. Nestas pinturas a base da tinta era sempre a cal, sendo que as cores pretendidas se obtinham misturando-lhes com mestria certas anilinas à venda nas drogarias. Nas da generalidade da população não havia pinturas, havia simplesmente caianças e essa tarefa, quase um ritual, era feita pelas mulheres da casa, com a cal que compravam ao caleiro.

Sentado no varal da carrocita, o Júlio caleiro, de há muito conhecido da minha mãe, parava sempre à nossa porta pois sabia ter ali freguesa certa. À semelhança do que era regra nos montes, muitas famílias da cidade faziam as suas caianças uns dias antes da Páscoa. Mandava o brio das alentejanas que, entre os Ramos e o Domingo de Festa, tudo reluzisse de brancura.

Na caleira que herdara do pai, o Júlio arrancava a pedra a tiros de dinamite e partia-a a guilho e a golpes de marreta, até terem o tamanho adequado a encher o velho forno. Empilhada a preceito, esta montanha de calcário transformava-se em cal-viva, branca de neve, pela acção do fogo intenso de feixes de lenha, sabiamente metidos na base. Esta cal, bem seca era guardada num barraco, protegendo-a de eventuais chuvas e depois era só encher a carroça, tantas vezes quantas as necessárias para servir a numerosa freguesia.

- Cal branca! – Ia apregoando. – Arre mula! Anda Violeta!

Não raras vezes, começando manhãzinha cedo, carregado à medida da força do animal, chegava ao meio-dia com o carro vazio.

O tempo chuvoso era mau para o negócio, A humidade estragava-lhe a cal, mesmo a que estivesse ao abrigo da chuva.

A minha mãe comprava-lhe sempre umas pedras de cal que metia num pote de barro próprio para esse fim, a que depois juntava a quantidade de água necessária. .Esta operação que despertava grande curiosidade, emitia um som de água a ferver e libertava calor, um processo químico que, só mais tarde, compreendi, quando me foi explicado numa aula do liceu o que era uma reacção química exotérmica. No outro dia a cal de caiar estava pronta a ser usada.

- É boa a sua cal, este ano, senhor Júlio? – Perguntava a minha mãe. – Olhe que a do ano passado já não tinha força. Estava meio-morta.

- Foi do tempo, Dona Adília. Toda a gente se tem queixado. Choveu a maior parte do ano. Quase não tivemos Verão e não ganhei para o trabalho que tive. Mas esta, este ano, é da melhor que já fiz. Está bem viva. Vai ver quando a derregar.

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5.1.25

20º ANIVERSÁRIO do SORUMBÁTICO

 

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4.1.25

Grande Angular - Ao serviço de todos

Por António Barreto

São conhecidos os motivos de luta política. O poder, puro e simples, pessoal ou de grupo. A luta das classes, entre o trabalho e o capital. A luta entre Estados. A luta entre religiões, sempre pronta a ressuscitar. A luta entre etnias. A concorrência entre empresas. A luta entre o centro, geralmente a capital, e a periferia, habitualmente interior. A luta entre o interesse público e os interesses privados.

 

Há quem diga que tudo isso se reduz à luta das classes, a mais importante, a que resume os diferendos. É mentira, mas é um argumento interessante. Como há quem diga que já não há luta das classes, que agora são outras lutas, como entre produtores e consumidores ou entre gerações. Também é mentira, mas também é argumento interessante.

 

Um olhar atento para os debates parlamentares, assim como, nova maneira de viver a democracia, para os discursos feitos à saída do restaurante ou à entrada do asilo, revela que a luta das classes não está no centro de coisa nenhuma. Nível de vida, salários do sector público, pensões, saúde, educação, imigração, racismo, segurança e defesa nacional parecem hoje estar no topo das preocupações.

 

A vida política resume-se, hoje mais do que nunca, a dinheiro. Europeu ou nacional, público ou privado, mas dinheiro. O Governo quer aumentar as pensões, os salários dos grupos profissionais do Estado e o salário mínimo. Tal como quer diminuir impostos. A oposição quer aumentar tudo ainda mais, assim como diminuir impostos muito mais. Ambos querem dinheiro para distribuir pelas autarquias, pelas empresas e pelas profissões. Ambos querem investir muito, nem sempre se sabendo onde nem em quê. O debate político orienta-se cada vez mais para esta grande cornucópia dos dinheiros públicos. Mais dinheiro para quê, para quem, como e para onde?

 

natureza humana é, em geral, assim. E a dos Portugueses também. É pena que, assim, o debate político, que deveria ser claro, formador e informativo, se tenha transformado nesta espécie de contabilidade em que o mais importante é saber quem gasta mais. Fica a perder o sentido do gasto. Ficam a perder o rigor, a racionalidade e a eficácia. O que o Estado gastou, nas últimas décadas, com a TAP e o aeroporto, com os comboios e os transportes urbanos, com o serviço nacional de saúde e a educação, com a electricidade e as grandes empresas falidas, é enorme, mas também é ineficaz, inútil e de muito duvidosa moral.

 

Não há, em Portugal, Tribunal de Contas, tribunais administrativos e de justiça, inspecções de finanças, reguladores sectoriais, conselhos gerais e outras entidades fiscais, que cheguem para responder a esta simples pergunta: por que se gastou tão mal tanto dinheiro? Será mesmo verdade que se gastou mal? Que não se avaliaram os resultados? Que não se corrigiu o caminho do desperdício? Que se prestam tão poucas contas? 

 

A melhor medida é a dos serviços públicos. A do atendimento. A das relações entre pessoas e entidades. A da maneira como não se defende os interesses dos consumidores, dos clientes e dos utentes diante de outrem, Estado, autarquia ou empresa privada. Actualmente, a grande miséria nacional não está nos bairros de lata, nas barracas, nos campos despovoados, nos solos abandonados ou nas instituições culturais. Não. A miséria é a dos serviços públicos, a maneira como os utentes são tratados, o modo hediondo como os consumidores são atendidos, a incompetente prestação de serviços e a desprotecção dos que recorrem aos serviços públicos.

 

As autoridades têm ao seu serviço, para redigir leis e estratégias nacionais disto e daquilo, dezenas de “Observatórios”, de “Conselhos consultivos", de “Entidades reguladoras” e de “Inspecções” quase absolutamente incapazes de prever, de organizar com cuidado, de fomentar a cortesia no trato e de aumentar a eficácia no atendimento. Só não acredita quem não viu as filas de espera no serviço nacional de saúde, as maternidades e as urgências que fecham aos fins de semana, as ambulâncias que não chegam a tempo, as escolas que não têm professores e as que não abrem a horas. Só quem não sabe o que é ser enganado pelas entidades que usam a “fidelização” para explorar os crédulos e as pessoas de boa fé. Só quem não presenciou as filas de espera diante dos serviços de imigração, dos tribunais e das lojas do cidadão. Só quem não se interessa pela maneira como os cidadãos, os utentes e os consumidores são feitos pagantes mudos e reféns passivos das grandes empresas e dos serviços de gás, electricidade, água, telefones e televisão. Só quem não percebe as técnicas dos salteadores do “small print” dos contratos de serviços.

 

Esta situação de degradação nos serviços públicos e de desprotecção dos cidadãos deve-se aos dois partidos que asseguraram o governo durante as últimas três décadas. PS, com 22 anos de governo, e PSD, com 8, tomaram conta, decidiram, melhoraram aqui e ali o estado da nação, mas desperdiçaram tempo e dinheiro, deixaram correr, não se preocuparam com o estado dos serviços, com a amabilidade e a eficácia no tratamento das pessoas, nem com o aumento das zonas de livre escolha e de decisão informada.

 

É verdade que, ao longo das últimas décadas, muita coisa melhorou. Não na justiça, mas em quase todos os outros sectores. É verdade. Mas não mudou o suficiente. Não melhorou à altura da despesa feita e das necessidades dos cidadãos. Mas sobretudo não melhorou na eficácia de tratamento e na humanização do atendimento. O modo como são tratados os velhos, as crianças, os pobres, os imigrantes, os desempregados e os doentes é um bom retrato desta espécie de democracia de pacote.

 

Senhores ministros e senhores secretários de Estado: olhem bem para os rostos dos vossos concidadãos à espera dos comboios ou nas paragens de autocarro à chuva. Olhem para a tristeza das filas de espera na Segurança Social. Vejam bem os corações e as cabeças dos que batem inutilmente à porta da maternidade e dos que esperam pela ambulância. Reparem nas caras de desespero de quem espera 9 horas pela urgência médica, semanas pela consulta ou meses pelo exame. Sintam o desânimo de quem é explorado pelas agências de telecomunicação. Compreendam a triste resignação de quem tem quase medo de viver sem protecção dos seus direitos perante as empresas de serviços domésticos. Percebam os que já consideram normal a espera, a destituição de direitos e a exploração da passividade.

 

Se perceberem, se sentirem, saberão o que fazer.

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Público, 4.1.2025

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28.12.24

Grande Angular - A Europa em perigo

Por António Barreto

Estes anos vão ficar na história da Europa. Pelas boas ou pelas más razões. As boas: se a Europa, a sua União e as suas nações conseguirem ultrapassar as derrotas passadas e os perigos próximos. As más: se a Europa e as suas nações soçobrarem, perderem, forem derrotadas e não saibam ou não consigam recuperar. Parece apocalíptico? É. Exagerado? Talvez não. Possível? Sim.

 

Nas derrotas (políticas, militares, económicas, desportivas e outras), o pior é quando o potencialmente derrotado não se dá conta e não percebe que caminha para a sua perda. Ainda por cima, quando tem meios para evitar a derrota, mas não sabe, não quer, não consegue ou prefere não os utilizar. É o caso da Europa. Está à beira de derrotas históricas, mas nega a evidência. Tem meios para, a prazo, evitar a derrota, mas não os utiliza. Sabe quais são os caminhos para vencer ou pelo menos evitar o pior, mas, por miopia política, recusa percorrê-los. Prefere a complacência. E esperar que as coisas acabem por correr bem.

 

Que erros já cometeu a Europa? Que novas derrotas se preparam? A começar pelo princípio: a Europa esticou excessivamente a corda federalista, sem a conseguir finalizar; destronou as nações, sem as eliminar. Ficou a meio caminho, local de todas as derrotas: nem nações orgulhosas, nem federação poderosa. Os alargamentos foram excessivos e arriscados. O avanço a Leste foi imponderado.

 

A Europa deixou correr a NATO e os Estados Unidos, ficando paulatinamente para trás, poupando recursos e dinheiros, evitando gastos e investimentos, ameaçando a Rússia de modo inconsequente e substituindo a defesa pelos benefícios sociais. Ficou a reboque da América. E desarmada diante da Rússia.

 

O BREXIT constituiu uma das maiores derrotas da Europa em toda a sua existência. Da Europa continental, da União e da Grã-Bretanha. Uma das mais importantes nações europeias e mundiais, um dos melhores exércitos da Europa e do mundo e uma cultura empresarial única abandonaram a Europa. Para nunca mais voltar.

 

Ao longo de décadas, por cupidez e preguiça, por espírito snob e ganância, por facilidade e irresponsabilidade, a Europa deixou definhar a sua indústria, subsidiou a sua deslocalização, fomentou o recurso às empresas do Terceiro Mundo e entregou à China toda a sua capacidade manufactureira. A Europa libertou-se da sua sujidade, do seu lixo e da sua poluição: à custa da sua independência.

 

Por miopia e ilusão, a Europa entregou-se nas mãos da Rússia, do seu gás e do seu petróleo, enfraquecendo-se e fortalecendo aquele que é seguramente o mais vil dos actuais impérios à face da terra.

 

Há várias décadas que a Europa vende tudo o que tem. À China e à Rússia, à América e às ditaduras islâmicas, aos poderosos africanos e aos salteadores asiáticos e latino-americanos. Não só a empresas e Estados, mas também a bandidos e predadores. Fábricas e hotéis, serviços públicos e habitação, estradas e comboios, aeronáutica e telecomunicações, praias e montanhas, energia e barragens.

 

Há décadas que a Europa vem substituindo as suas personalidades, os seus intelectuais, escritores e cineastas, músicos e artistas, os seus académicos, cientistas e humanistas, os seus políticos esclarecidos e cultos, os seus sindicalistas de combate e os seus militares de confiança, por gestores das coisas dos outros, administradores de outrem, solicitadores de bens alheios e empregados de ocasião.

 

A Europa do cristianismo, do individuo, da dignidade da pessoa humana, dos gregos e do Renascimento, do iluminismo, da república, da cidadania, da democracia, dos direitos humanos, do sindicalismo, da ciência, da coesão social, das artes e das letras, essa Europa já é pouco mais do que recordação, tudo estando cedido em troca da arte digital, da inteligência artificial e da criação em streaming.

 

A Europa que viveu de milhões dos seus terem emigrado para outros continentes e de ter recebido milhões de emigrantes das suas e de outras nações, que soube misturar com carácter e acolher com personalidade, essa Europa está hoje enredada e prisioneira da desordem do tráfico de pessoas e dos mesquinhos interesses de dinheiros.

 

A Europa nunca chegou a ser Governo e Parlamento. Deixou de ser Banco. Não é mais Fábrica. Já tinha deixado de ser a Universidade. Já não é Igreja. A Europa é tudo isso, a prestações, mal e toscamente, sem personalidade nem identidade. A Ilustre Casa Europeia, casa de fidalgos arruinados e de pomposos gestores dos interesses de outros, perde todos os dias força e carácter. E, como acontece nas fábulas, não sabe que está a perder. Ou nega.

 

Em crise, nas vésperas de previsíveis derrotas de civilização, a poucos dias do novo e terrível presidente americano, a semanas ou meses de uma temível derrota ucraniana, no início de uma hegemonia sino-americana conflituosa, perto de uma verdadeira conquista islâmica e à beira da humilhação que será a do abandono da Europa pela América, os europeus, muitos europeus, sobretudo os seus dirigentes, comportam-se como se de nada se tratasse. À iminência do desastre chamam exagero e ansiedade. Como antes, aos cemitérios, outros chamaram paz.

 

Como sempre na vida e na história, a glória e a fama não conseguem esconder a vilania e a maldade. Os grandes feitos europeus não fazem esquecer a conquista, a escravatura, a opressão e a ditadura. Mas a Europa soube sempre ser a primeira a criticar os seus próprios erros, as suas malfeitorias e os seus desmandos. Será agora novamente capaz de reconhecer erros e evitar derrotas?

 

A Europa e as suas nações ainda têm alguma força, algumas empresas, alguns cientistas, alguns políticos, alguns intelectuais, alguns trabalhadores, alguns artistas e alguns militares com os quais se possa imaginar que seja possível evitar o desastre, transformar a derrota em vitória e garantir, mais do que uma ressurreição, um renascimento. A Europa tem beleza, natureza, cultura, tradição, história, reputação, património, diversidade e riqueza suficientes sobre as quais pode reconstruir e recomeçar. E ainda tem empresas e instituições.

 

Basta a vontade? Não. De modo nenhum. É necessário um colossal esforço. Muito estudo. Trabalho e ciência. Investimento. Defesa própria. Segurança autónoma. Muita liberdade e crítica. Direitos humanos. E liderança política.

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Público, 28.12.2024

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21.12.24

Grande Angular - Ainda e sempre a imigração

Por António Barreto

As migrações mudam os países e as sociedades. Muito ou pouco, depressa ou devagar. Mas sempre. Para melhor ou pior, depende. Mudam os que imigram, mudam os que emigram. Mudam os que recebem e acolhem. Mudam os que saem e chegam. Muito ou pouco, mas sempre.

 

Há migrações e mudanças que se fizeram em paz, com bons e maus resultados. Migrações e mudanças que se fizeram bruscamente, em guerra, com más e boas consequências. E mudanças que provocaram a vida de uns e a morte de outros. Mas todas as mudanças, todas as sociedades se fizeram com povos distintos, várias etnias e gente diversa. Não há sociedade uniforme e original. Todas as populações são fruto e resultado de misturas, conquistas, migrações, fugas, derrotas, massacres, glórias e vexames.

 

Na origem de Portugal, há uma dúzia ou mais de povos. A unidade nacional, a uniformidade de raça e de cultura, a singularidade de língua, a especificidade do povo e da etnia são meras construções históricas, umas pacificas, outras violentas e forçadas. Umas agressivas, outras defensivas. A expulsão de vários povos europeus da Península e o abandono de outros, a derrota ou a conversão dos Mouros, a expulsão ou a cristianização dos Judeus, são episódios bem conhecidos da história que muito contribuíram para a formação da nossa nacionalidade. Tal como a conquista e os descobrimentos. Foi assim que se fez a nação.

 

Nacionalismo é, em geral, hoje, sinónimo de opressão, racismo, domínio político e religioso, xenofobia e conservadorismo. Mesmo moderado, o nacionalismo não goza hoje dos favores das doutrinas. O universalismo e a globalização surgem como novas virtudes, enquanto internacionalismo e cosmopolitismo parecem ter êxito assegurado na crónica e na lenda.

 

É verdade que há qualquer coisa de tentador nas fábulas do internacionalismo. Somos todos iguais, não há melhores nem piores, não há amigos e inimigos, somos todos irmãos, filhos do mesmo deus, naturais da mesma terra, gente do mesmo sangue, raça do mesmo genoma… É tentadora a mitologia da igualdade absoluta e da livre circulação.

 

Certo é que, historicamente, a democracia e as liberdades tiveram uma geografia. A autenticidade cultural teve e tem um território. As fronteiras são tantas vezes agressivas, símbolos de perda de liberdade e resultado de opressões, mas também são defesas de povos e de nações, de culturas e de línguas, de património e de modos de ser e viver. As fronteiras portuguesas, das mais antigas da Europa, podem ser consideradas opressivas, limites à circulação e aos movimentos, mas também são e foram protecção dos portugueses diante de espanhóis e franceses, europeus em geral, norte-africanos e outros… O mesmo se poderá dizer de tantos países europeus e de tantas fronteiras.

 

O sonho europeu, o encanto federalista e a fantasia de uma Europa sem fronteiras nem Estados podem ter enorme capacidade de atracção. Mas não é seguro que sejam só um grande passo em frente pela liberdade e para a democracia. No essencial, a defesa de Portugal e dos portugueses são Portugal e os portugueses. Mesmo com a ajuda dos aliados. Mesmo com o apoio dos europeus. Mas é aqui que começa a liberdade. É aqui que mora a democracia. Um Português defende-se recorrendo ao Estado, às polícias, aos magistrados e à Justiça. Ao povo e aos seus iguais. Um português que queira ser representado, vota num português. Nem um francês representa um português, quanto mais um Croata. E não há português que represente um polaco ou um grego.

 

Há qualquer coisa de formidável e de encantador na ideia, na imagem e na sensação de ver e sentir nas ruas de Lisboa ou do Porto todos os cheiros deste mundo, todas as roupas imagináveis, todos os deuses, todas as cores, todas as línguas, todas as modas, todas as músicas e todos os costumes do mundo! Mas sabemos que os últimos recursos, as últimas defesas, as últimas protecções, os últimos reconhecimentos, as últimas identificações são com os portugueses, os nossos iguais, os que cá vivem, os que cá estão, nascidos cá ou não, mas vividos cá. Portugueses de origem ou de adopção, mas portugueses, com a sua cultura, a sua justiça e a sua democracia. Nascidos ou naturalizados portugueses com as suas crenças e sobretudo as suas leis.

 

Assistimos, durante décadas, ao repúdio crescente do nacionalismo, do patriotismo e do Estado nação. Este último recuou em todas as frentes, em todos os aspectos. Na economia e na cultura, na sociedade e na política. Pior ainda, os casos mais evidentes de manutenção do nacionalismo foram, em geral, os de ditaduras. Da China à Rússia, da Coreia a Cuba, passando por vários Estados africanos e asiáticos que inventaram histórias nacionais para justificar poder autoritário. Parecia que a liberdade e a democracia se alimentavam da globalização e nela criavam raízes. Até que se percebeu que a desnacionalização e a globalização tinham uma capacidade autoritária devastadora, eram capazes de destruir países e nações, mais ainda democracias e liberdades.

 

Em quase todos os países europeus ou ocidentais, tem-se verificado um aumento permanente do número de imigrantes assim como do contributo destes para o desenvolvimento económico e o progresso das sociedades. Mas também para o surgimento de problemas de integração, de convívio e coexistência entre comunidades, de pressão sobre o Estado social, de deslocação e acolhimento entre países e de percepção recíproca entre comunidades.

 

Não é possível, em democracia, controlar absolutamente os movimentos da população. Só as ditaduras o permitem. Mas prever, ordenar e estabelecer condições não só é possível, como parece cada vez mais necessário. Não o fazer, entregar-se a uma passividade complacente, na esperança de melhor explorar o trabalho alheio, é destruidor da democracia.

 

Não há solução fácil para os problemas de imigração e de acolhimento. Mas a passividade é a pior atitude. Deixar correr, não tentar controlar, não ordenar, não definir horizontes, não estipular condições e não fazer um colossal esforço de integração são erros crassos cujos preços a Europa começa a pagar. Ter medo da imigração é ter medo da liberdade. Deixar correr as migrações é destruir a liberdade. Qualquer povo tem o direito de definir, por vias e métodos legítimos, os povos que quer receber. Assim como as condições legais, sociais e culturais de integração. A começar pela língua, evidentemente. E sempre, mas sempre, no respeito pela lei do país.


Público, 21.12.2024

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20.12.24

No "Correio de Lagos" de Novembro de 2024 - Pág 2

 

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19.12.24

No "Correio de Lagos" de Novembro de 2024 - Opinião

 

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17.12.24

No "Correio de Lagos" de Outubro de 2024 - Opinião

 

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14.12.24

Grande Angular - Debate impossível ou quase

Por António Barreto

Um dos maiores problemas do mundo ocidental e das democracias é o da imigração. Nas ditaduras, esse problema não existe: não há imigrantes, as fronteiras estão fechadas e estritamente controladas. Salvo excepções, nos países pobres também não: a emigração, não a imigração, é a sua sina.

 

Todos os dias, nos jornais e nas televisões, há uma qualquer questão de imigração. Barcos carregados de miseráveis, naufrágios às centenas, campos de concentração ou trânsito, bairros marginais, incidentes raciais, exploração de trabalhadores, crime de tráfico de mão-de-obra, economias paralelas… Não faltam os motivos. O desespero e a luta pela sobrevivência quase fazem heróis. As atitudes dos países de acolhimento oscilam entre a democracia, a complacência, a culpabilidade, o racismo e a exploração. Na verdade, são milhões de pessoas a bater às portas dos países mais ricos. Os gestos destes têm muitas vezes maus resultados, seja porque a generosidade provoca o abuso, seja porque a severidade cria a violência. Os Estados dos países de acolhimento têm-se revelado incapazes de prever e prevenir, muito menos ordenar. No mundo empresarial, há de tudo, desde gente séria e humana, até oportunistas que querem sobretudo retirar o melhor partido da precaridade, dos baixos salários e da exploração. Os Estados dos países de origem fazem o melhor que podem para aproveitar, explorar e vender, tentando ganhar em comissões e favores. Entre os imigrantes, como não podia deixar de ser, há de tudo, de trabalhadores a bandidos, de cidadãos a marginais, de talentosos a oportunistas. 

 

Pior que tudo, é o ambiente geral em que se vive, feito de acidez crescente, de acusações nervosas e de preconceitos fortíssimos. De um lado, tudo o que se ouve contra os imigrantes. São bandidos e não respeitam as leis do país de acolhimento. Por serem descendentes de escravos julgam-se hoje membros de raças superiores. Roubam as filhas, os empregos e as casas dos residentes nacionais. Mentem no fisco e na segurança social, escondem as identidades, procuram subsídios ilegítimos e montam um verdadeiro mercado negro. Batem nas mulheres e nos filhos, vendem as filhas e não enterram os seus antepassados cujos paradeiros se desconhecem. Mantém toda a espécie de comportamentos ilegais, incluindo a excisão das raparigas, o casamento contratado, a cara coberta das mulheres, a poligamia e a proibição de prosseguir estudos imposta às filhas. Maltratam os animais, comem gatos e cães, estragam os espaços públicos, não limpam as ruas e fazem barulho nas ruas durante a noite. Não respeitam as filas de espera nos serviços públicos, aterrorizam funcionários, médicos e enfermeiros.

 

Reciprocamente, o preconceito nada fica a dever. Os residentes nacionais, europeus ou caucasianos, exploram os imigrantes, roubam-lhes tempo de vida e forças e usam as suas mulheres que tratam com luxúria machista. Consideram os imigrantes seres inferiores, sobretudo se forem africanos ou asiáticos. Pensam que os imigrantes são incapazes de respeitar as leis e apenas se preocupam com o que podem ganhar e roubar. São racistas estruturais e sistémicos, são colonialistas crónicos e são supremacistas brancos. Por serem descendentes de descobridores e conquistadores, julgam-se membros de raças superiores. Exploram os imigrantes, não lhes pagando o que se deve, não tratam da segurança social, reservam-lhes as piores escolas, dificultam-lhes a vida nos centros de saúde e maltratam-nos nos transportes públicos. Prejudicam os imigrantes nos concursos públicos, na procura de emprego e na busca de casa. Olham para os imigrantes com sobranceria e sentimento de superioridade, só se mostrando humanos quando têm qualquer coisa a ganhar com isso. Reservam para os imigrantes os piores bairros, as piores ruas e os alojamentos mais degradados. Tudo fazem para manter os imigrantes fechados em guetos raciais ou étnicos, impondo-lhes a sua ordem através de autoridades brancas e de polícias nacionais. 

 

Abaixo de tudo, na escala de valores, estão os traidores. Para uns, os brancos que tomam o partido dos outros, dos negros, dos índios, dos indianos e dos árabes, que defendem os outros, que são verdadeiros travestis étnicos. Para outros, os imigrantes que se entendem com os nacionais, os que consideram que as leis se devem respeitar e que se deve acatar a cultura dos povos de acolhimento. Os trânsfugas e os traidores de ambos os lados são os piores, os mais racistas, os mais violentos, os mais amigos do conflito e os maiores adeptos do afrontamento.

 

Como é evidente, há, nas várias comunidades, muita gente decente, pessoas que não cultivam o preconceito, homens e mulheres que gostariam de poder entender-se e dar e receber contributos para uma sociedade melhor. Com certeza. Mas não são essas as vozes dominantes, as que mais se ouvem, as que mais se imprimem. Há muita gente que espera por um equilíbrio, que julga que é possível e enriquecedor a coexistência sob a mesma lei e na mesma ordem democrática. Mas o que mais progride é a procura do conflito e a busca da ruptura. 

 

Lentamente, o mundo ocidental está a ficar subjugado por este conflito, por este problema. O mais simples seria ignorar, como muitos fazem. Considerar que os afrontamentos são menores e temporários. Que tudo se resolverá com emprego e ordem pública. Que as sociedades mudam devagar e ordeiramente. Que a mistura de povos e de culturas se fará em paz e sossego, com prosperidade e progresso. Que não há verdadeiramente um problema. Que, com boa vontade, tudo acabará bem.

 

Sabemos, com certeza e receio, que não será assim. Os desequilíbrios demográficos, sociais e económicos são já tais que a evolução social e política tenderá a escapar às regras e às previsões. Os conflitos potenciais são muito sérios e só evitáveis com enormes doses de boa vontade, de racionalidade, de poder estável e de autoridade legítima. Estamos a falar de mudança da sociedade em profundidade, de mudança de costumes e de cultura de tal dimensão que ninguém pode, em seu juízo, considerar coisa fácil. Ainda por cima, trata-se de mudança que pode implicar perda. Para ambos, os que recebem e os que chegam. Noutras palavras, mudança necessária que, a ser feita sem razão, implica destruição de muito que apreciamos e desejamos, a começar pela cultura e pela liberdade. E pela humanidade.

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Público, 14.12.2024

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7.12.24

Grande Angular - Mário Soares, europeu

Por António Barreto

antigo regime queria, antes de 1974, uma qualquer forma de associação, distante, leve e possivelmente superficial, com a Comunidade Europeia. Estava satisfeito com a EFTA. Além disso, a Comunidade implicava condições políticas democráticas que as autoridades de então não queriam aceitar. Assim é que se preparava um acordo diplomático. Depois de 25 de Abril, o debate foi aberto e novas hipóteses estavam em causa. Os Liberais do marcelismo e os principais do PPD queriam um novo contrato de associação. Talvez um pouco mais pormenorizado ou mais vinculativo do que durante o anterior regime, mas só associação certamente. Garantiam que Portugal não estava preparado, que a economia ainda não estava à altura da concorrência europeia, que o proteccionismo era necessário e que as empresas portuguesas tinham de ser defendidas. A EFTA era uma boa alternativa.

 

As esquerdas do PCP queriam tudo menos a Comunidade Europeia, que consideravam capitalista e contrária ao socialismo que se preparava vigorosamente em Portugal. Os comunistas olhavam mais para Leste, União Soviética e seus satélites, países com os quais se deveriam desenvolver relações o mais rapidamente possível. Preparavam-se afanosamente acordos políticos e tratados comerciais, incluindo cooperação em matéria de energia nuclear, a fim de explorar e consolidar este novo horizonte estratégico. Era claro que o objectivo não seria o de integrar o Pacto de Varsóvia. E os soviéticos não estavam muito interessados em arranjar uma nova Cuba na Europa. Mas ficar longe da Comunidade Europeia e da NATO era a prioridade.

 

Os restantes grupos esquerdistas, sobretudo o MES e a UDP, assim como as facções radicais do MFA, estavam mais virados para outros continentes, para países africanos, árabes e latino-americanos. Assim como para países europeus vagamente dissidentes do universo soviético. A Cuba de Fidel de Castro, a Líbia de Kadhafi, o Iraque de al-Bakr ou Sadam Hussein, a Roménia de Ceausescu e a Jugoslávia de Tito eram alternativas e mereciam atenção. Aliás, quase todos estes dirigentes foram, naquela altura, convidados a visitar Portugal e seriam anfitriões de importantes delegações portuguesas. A independência nacional e a autonomia perante o capitalismo e as grandes potências eram os argumentos essenciais. Mais ainda: uma terceira via entre o capitalismo ocidental e o comunismo soviético surgia como hipótese atraente.

 

No PS, a situação era mais difícil. O PS de direita queria uma associação solta e distante com a Europa. Um contrato de associação parecia satisfatório, pelo menos para os primeiros tempos. Europeus sim, mas devagar. Havia medo por causa das empresas portuguesas que não estavam preparadas para a concorrência. O PS de esquerda preferia relações com o Terceiro Mundo, países africanos e árabes. Ao contrário dos esquerdistas, os seus porta-vozes queriam a democracia, seguramente, mas receavam a ingerência capitalista. Pensavam ainda que, com os produtores de petróleo e de matérias-primas do Terceiro mundo, era possível desenvolver vias alternativas. O PS do centro, se é que assim se pode chamar, era favorável à adesão Comunidade Europeia sem reservas. E quanto mais cedo melhor.

 

Não houve sondagens, mas é pouco provável que a maioria do PS fosse favorável à adesão plena à Comunidade. As reticências da direita e da esquerda militavam a favor de um compasso de espera, de um adiamento para melhor esclarecimento. Mas os que eram favoráveis à plena adesão tiveram em Mário Soares imediatamente, sem hesitações, a vontade de adesão, sem espera, sem períodos de transição e sem associações especiais que diminuíssem o gesto. As questões especiais dos preços da agricultura, da protecção das empresas portuguesas e do respeito pelas regras do “acquis communautaire” eram secundárias. Mário Soares pensava que a Europa ou a Comunidade Europeia era um atalho para a liberdade, uma garantia para a democracia. A adesão à Europa não era um projecto económico e financeiro, era um desígnio político. Com a Europa, vinham as liberdades e os direitos dos cidadãos, o respeito pela dignidade humana, as garantias dos parceiros e o apoio a dar, em caso de necessidade, a uma democracia recente e inexperiente. Sem falar na cultura ocidental e na história europeia.

 

Naquela altura, a esquerda democrática europeia tinha voz e peso. Momentos houve em que a maioria dos governos era composta de socialistas, social-democratas e aparentados. Nomes de homens de Estado de excepcional envergadura marcavam as políticas europeias. Willy Brandt e Helmut Schmidt, Olaf Palme, Harold Wilson e James Callaghan, François Mitterrand, Jacques Delors e Michel Roccard eram desse tempo, quase todos vieram a Portugal, todos apoiavam Mário Soares e a democracia portuguesa e com todos Mário Soares fez amizade pessoal.

 

Em Fevereiro de 1977, o Primeiro-ministro Mário Soares fez viagens a todos os países da Comunidade, assim como à sede em Bruxelas e ao Vaticano, a fim de apresentar a candidatura portuguesa a uma adesão plena. Antecipavam-se dificuldades, sobretudo por causa da junção das candidaturas portuguesa e espanhola. Os europeus receavam a dimensão e a produtividade da agricultura de Espanha. Além disso, pensava-se que as boas palavras dos políticos europeus relativamente à adesão de Portugal escondiam reservas e contrariedades dos técnicos e dos economistas. A primeira viagem do périplo meticulosamente organizado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros começava por Bruxelas. No momento da partida, no aeroporto, estavam presentes todo o governo e metade das autoridades. A sala dos VIPS para chegadas e partidas era uma colossal festa. Mesmo em cima da hora de partida, revelando uma desconhecida ansiedade, Soares queria saber tudo dos preparativos. Se todos os dirigentes Europeus estavam devidamente informados. Se os políticos europeus, especialmente os social-democratas, estavam sensibilizados. Discretamente, virando-se para dois ou três ministros mais próximos, Soares perguntou quase sussurrando: “E se eles disserem que não?”. Medeiros Ferreira, o Ministro dos Negócios Estrangeiros que tinha tudo preparado, garantiu: “Eles não podem dizer que não, senhor Primeiro-Ministro. Está tudo preparado”. Dois segundos depois, Soares murmura: “Que Deus o ouça”! E ouviu, pelos vistos!

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Público, 7.12.2024

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4.12.24

CONVITE

 



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3.12.24

NO PRINCÍPIO ERA O MAGMA”


Por A. M. Galopim de Carvalho

Após a acreção do protoplaneta que antecedeu a formação deste maravilhoso corpo planetário que nos deu berço, e na sequência dos processos que determinaram a sua diferenciação como planeta (nomeadamente e em especial, a contracção gravítica e a formação núcleo), a Terra acumulou uma quantidade de calor tal que se converteu numa imensa “bola” incandescente.

Durante as primeiras centenas de milhões de anos, este nosso hoje “Planeta Azul” esteve envolvido num “oceano” de magma, em resultado da fusão da sua parte mais externa, “oceano” cuja profundidade teria sido da ordem de algumas centenas de quilómetros. Foi a partir da capa mais superficial deste invólucro ígneo que, por arrefecimento posterior, se formou a primitiva crosta terrestre (com mais de 4000 milhões de anos, praticamente desaparecida na sequência da contínua renovação da crosta determinada pela chamada tectónica de placas), separada de uma outra entidade, que se lhe segue em profundidade, também ela já parcialmente arrefecida, a que foi dado o nome de manto.

Entendendo por magmatismo o processo natural através do qual um material fundido, a que se convencionou chamar magma, conduz à formação das rochas (ditas magmáticas), temos de concluir que este processo geológico é uma constante na história do nosso planeta (e do Sistema Solar) e que está na origem de todos os tipos de rochas (petrogénese). Com efeito, não haveria rochas sedimentares sem as magmáticas preexistentes, nem rochas metamórficas sem que, pelo menos, tivesse existido um destes dois tipos de rochas. É, assim, lícito pensar que o mesmo acontece nos planetas telúricos, nossos vizinhos, e noutros de outros sistemas planetários da nossa e de outras galáxias. 

O magmatismo é, pois, uma das fases da evolução da matéria no quadro universal da sua história, como são, entre outras:

- a nucleossíntese que dá nascimento aos elementos químicos, em grande parte no interior das estrelas e na sequência das explosões (supernovas) que lhes ditam o fim; e

- a quimiossíntese que, por junção dos elementos químicos, dá origem aos compostos, entre os quais os minerais, fase esta que inclui o magmatismo e os restantes processos petrogenéticos, para além de outros, como são os biogénicos.

Foi através do magmatismo que a Terra, em formação, libertou uma atmosfera primitiva, rica (entre outros componentes) em vapor de água e dióxido de carbono. Foi a partir deste vapor de água que se formou, por condensação, grande parte da hidrosfera. E, na medida em que a vida foi gerada nas águas, torna-se evidente a sua dependência do processo magmático. Assim, é lícito pensar que, 

sem magmatismo, a biodiversidade, tal como a conhecemos, não teria existido. 

Também os seres das profundidades oceânicas associadas a fontes hidrotermais e a chaminés negras (um ecossistema muito particular que só há mais de três décadas foi conhecido) dependem absolutamente da actividade magmática, neste caso, submarina. 

Do mesmo modo, a atmosfera actual (a que hoje respiramos e que diariamente poluímos em nome do chamado desenvolvimento), na qual o oxigénio resulta da actividade biológica das plantas com clorofila, é uma consequência, embora indirecta, do magmatismo.

Os magmas que, desde a existência de uma litosfera (conjunto da crosta e da capa rochosa do manto nascidas da diferenciação do planeta) geraram e continuam a gerar as rochas que, por isso, apelidamos de magmáticas, nasceram e continuam a nascer da fusão de rochas da crosta ou do manto superior, a temperaturas que variam entre cerca de 850°C, num xisto argiloso, em profundidade, na crosta continental, e em presença de água, e cerca de 1300°C num peridotito do manto, na ausência de água. No que se refere às pressões, o fenómeno pode verificar-se entre cerca de 3 a 4 atmosferas, a 10 km de profundidade, e várias dezenas de atmosferas, 100 km mais abaixo. 

Ao nível da crosta a fusão dos materiais rochosos, isto é, a geração de um magma acontece associada ao metamorfismo de grau mais elevado, no decurso da formação de uma cadeia montanhosa (orogénese). No manto, a fusão é praticamente anorogénica, isto é, não envolve compressões tangenciais. Está, sim, relacionada com movimentos verticais e diminuição de pressão ou com penetração de fluidos aquosos.

A comparação frequente do magma com a lava incandescente ou ígnea saída dos vulcões, embora sugestiva, não é correcta. Deve acentuar-se que a lava já não é, exactamente, um magma, dado que, ao descomprimir-se na saída para o exterior, perde parte dos seus componentes gasosos (vapor de água, dióxido de carbono, entre outros) e, ao arrefecer, permite a cristalização (solidificação) prematura de alguns minerais (como é o caso dos cristais de olivina ou de augite em alguns basaltos) que, por acção gravítica, decantam no fundo da câmara magmática, saindo também desse fundido, empobrecendo-o. 

Um material assim, como o que se vê transbordar do vulcão e fluir à superfície, em que coexistem grãos cristalinos (sólidos), material ainda fundido e apenas parte dos gases que inicialmente o formavam, já não deve ser considerado um verdadeiro magma embora tenha mobilidade. 

É curioso assinalar que, na origem, a palavra “magma significa” “massa empedernida”. Não obstante este significado, a petrologia adoptou essa mesma palavra para designar o material ainda em fusão (na totalidade ou em parte) que, por arrefecimento, consolida e, só então, se torna pedra.

Do ponto de vista composicional, o magma pode ser então definido como um fundido de substâncias químicas, na grande maioria silicatos, existente em zonas mais ou menos profundas do planeta que, em virtude da temperatura e da pressão a que está sujeito, se mantém, pelo menos em parte, no estado líquido e, como tal, flui, ou seja, tem mobilidade. Neste banho e com uma representação muitíssimo inferior à dos silicatos, podem existir óxidos, em particular os de ferro, de titânio e de crómio, sulfuretos, fosfatos e carbonatos.

Como numa sopa quente, além do caldo, que nesta imagem exemplifica a parte fundida, podem coexistir no magma fases sólidas, representadas pelos minerais, e gasosas (vapor de água, dióxido de carbono, gás sulfídrico e outros) que lhe são próprios, de que podemos ter uma ideia através das manifestações secundárias do vulcanismo, como são as mofetas e as sulfataras. As fases sólidas, quando presentes no magma, estão expressas pelos minerais que, por serem mais refractários (isto é, com um ponto de fusão mais elevado), cristalizaram prematuramente no seio do líquido magmático, o que não impede a mobilidade do conjunto, que poderá fluir enquanto houver uma fase fluida, ainda que residual, a assegurar-lhe essa característica implícita na própria definição de magma. É o que acontece, como se disse atrás, com os cristais de olivina e ou de augite em certas lavas de natureza basáltica.

Como ingredientes fundamentais do magma figuram quase sempre pouco mais de uma dezena de elementos químicos, os mais abundantes na crosta terrestre, e, por isso, ditos principais ou maiores (do inglês “major elements”), cujas percentagens, respectivamente, em peso e em volume são:

........... Oxigénio (O): 46,6% peso; 93,8 % volume

........... Silício (Si): 27,7% peso; 0,8 % volume

........... Alumínio (Al): 8,1% peso; 0,5 % volume

........... Ferro (Fe): 5,0% peso%; 0,4% volume

........... Cálcio (Ca): 3,6% peso%; 1,0% volume

........... Sódio (Na): 2,8% peso; 1,3% volume

........... Potássio (K): 2,7% peso; 1,8 % volume

........... Magnésio (Mg): 2,1% peso; 0,3 % volume

São estes, pois, os principais constituintes dos minerais das rochas magmáticas, entre os quais, como se disse, os silicatos que, por si só, representam cerca de 99% da crosta terrestre. A análise química destas rochas revela, ainda, manganês, fósforo, titânio, carbono, enxofre e hidrogénio praticamente sempre presentes, embora em muito menores percentagens.

Parte da água inicialmente contida no magma entra na composição de certos minerais, outra perde-se, quer em profundidade, no interior da crosta, indo alimentar outros processos petrogenéticos, quer à superfície, no vulcanismo. É esta água no estado de vapor que, com o dióxido de carbono e outros gases de menor representatividade igualmente libertados do magma, se evola nas erupções vulcânicas, originando os espessos “fumos” brancos que se dispersam no ar, acompanhando quer as projecções sólidas de piroclastos, quer a saída e progressão da lava.

Para além dos já referidos elementos principais ou maiores (por definição, aqueles cujas percentagens, em peso, nas rochas é superior a 1%), há ainda a considerar os elementos menores (do inglês, “minor elements”), entre os quais bário, chumbo, cobre cobalto, níquel, ouro, prata e muitos mais, cuja presença nas rochas se situa, em termos percentuais, abaixo de 1%. Nestes há que distinguir elementos secundários (entre 1% e 0,1%) e elementos vestigiais ou elementos-traço (do inglês, “trace-elements”) que, como o nome indica, estão representados em quantidades ínfimas. A presença de elementos-traço na composição dos minerais e das rochas é hoje fácil e rotineiramente pesquisada nos estudos petrológicos e geoquímicos. Consoante o rigor exigido pelas análises ou possibilitado pelos equipamentos disponíveis, a sua quantificação é expressa em ppm (partes por milhão) ou em cifras ainda menores, em ppb (partes por milhar de milhões). O termo oligoelemento (do grego, “oligós”, ínfimo), usado por alguns autores, é ambíguo, pois tem sido usado quer como sinónimo de elemento menor quer como de elemento-traço.

No que se refere ao nosso planeta, o magmatismo foi e é uma constante na respectiva dinâmica global, quer sob a forma de vulcanismo e subvulcanismo (ascensão de magma que acaba por arrefecer e solidificar a pequena profundidade, antes de atingir a superfície, como aconteceu com os maciços de Sintra, Sines e Monchique), quer de plutonismo (arrefecimento e solidificação em profundidade). Pelo que conhecemos da história da Terra, temos de admitir que o magmatismo sempre antecedeu e antecede os outros dois processos petrogenéticos (a sedimentogénese e o metamorfismo). Com efeito, só depois das primeiras rochas (magmáticas) formadas à superfície da Terra estarem expostas aos agentes externos é que pôde ocorrer a sua erosão seguida de sedimentação e/ou a sua transformação em rochas metamórficas.

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30.11.24

Grande Angular - Perigo e fantasia: Uma encenação

Por António Barreto

Segurança está na ordem do dia. Dos cidadãos e das famílias. Dos homens e das mulheres. Dos adultos e dos jovens. Dos velhos e das crianças. Das instituições e das empresas. Dos nacionais e dos estrangeiros. No mundo inteiro, a insegurança cresce. É o que provam os factos, as observações e os sentimentos. Há países (Brasil, Estados Unidos, México, Colômbia, Nigéria, Quénia, Congo, África do Sul e outros) com inacreditável número diário de crimes, atentados, agressões, roubos e destruições. Portugal estaria entre os países do grupo com menos crimes e atentados. Ainda bem. Mas toda a gente sabe que o sentimento de insegurança, aqui e lá fora, cresce todos os dias. É o que a sociedade contemporânea produz.

 

Segurança consiste na certeza ou na esperança de que a integridade física dos cidadãos, os seus direitos, a sua liberdade, os seus familiares, os seus bens e a sua tranquilidade são respeitados ou protegidos.

 

É a confiança em que, se cumprir os meus deveres, ninguém, pessoa ou instituição, ofende os meus direitos e que, se o fizer, haverá repreensão.

 

Segurança é a esperança de que a justiça apure, julgue e castigue quem atenta contra a liberdade e os direitos dos cidadãos.

 

É a certeza de que nunca serei incomodado por exprimir a minha opinião, nunca me será indevidamente retirado o direito à palavra e nunca serei objecto de represálias por causa das minhas opiniões.

 

É a expectativa de poder rezar aos meus deuses, ou a nenhum, sem ser incomodado por quem reza a outros.

 

Segurança consiste no sentimento de que alguém acorre quando sou ameaçado na rua, quando entro em casa e encontro ocupantes indevidos, de que alguém ajuda quando o marido, o pai ou o filho agridem e espancam as mulheres.

 

É a sensação de que alguém responde quando chamo o 112 ou o INEM, quando estou em sofrimento ou com dores de parto, quando telefono aos bombeiros, quando sinto fumo e fogo em minha casa ou na da vizinhança.

 

É a possibilidade de passear em qualquer parte da cidade, sem recear violência e com a certeza de que não há bairros interditos, áreas de acesso reservado e ruas perigosas. 

 

É a esperança de que alguém, polícia ou autoridade, responde prontamente aos meus apelos quando alguém ameaça os meus filhos, viola a minha filha, bate nos meus pais e agride a minha mulher. Ou alguém que faça tudo isso a mim próprio.

 

É a esperança em que bombeiros ou policias, voluntários ou assistentes, ajudam e acorrem quando a casa pega fogo, quando se sente inundação ou tremor de terra, quando alguém pretende roubar os meus bens e assaltar a minha casa.

 

É a certeza de que posso sair à noite, passear nas ruas da cidade, ver os meus filhos frequentar locais públicos sem serem agredidos e roubados e de que, se acontecer, os culpados são perseguidos, detidos e castigados.

 

É estar convencido de que nas escolas não há bandidos, traficantes, assaltantes e outros meliantes a agredir, enganar ou magoar os meus filhos.

 

É a convicção de que, no meu trabalho, nos comboios, nos autocarros, no metropolitano, nos serviços públicos, eu e os meus não somos assediados, incomodados, agredidos, roubados e espancados, e de que, se o formos, podemos pedir socorro e ajuda, e de que alguém virá, e de que, se não for o caso e ninguém chegar a tempo, alguém, serviço ou instituição, investigará, descobrirá, deterá e castigará.

 

É a impressão de que os mais vulneráveis na sociedade, velhos, crianças, doentes, pobres e sem abrigo são protegidos, de que alguém está atento à sua situação e aos seus pedidos de socorro.

 

É ter a ideia de que as ruas e os espaços públicos não estão cada vez mais perigosos, com mais imprevisibilidade e com menos liberdade e sem paz.

 

Insegurança, em Portugal, hoje, é este sentimento crescente, fundamentado ou não, comprovado ou não, de que a vida, a tranquilidade, a liberdade e os direitos individuais estão a ser ameaçados, de que o espaço público é perigoso e de que temos cada vez mais de nos abrigar em espaço privado e em casa.

 

Insegurança consiste em viver anos à espera de julgamento, de investigação, de detenção e de castigo de quem atentou contra os meus direitos, contra a minha integridade física, contra os meus bens e contra a minha liberdade.

 

É a crença fundada em instituições que servem para prever e prevenir, para estudar as condições de vida e de segurança, para procurar culpados e malfeitores, para julgar e castigar bandidos.

 

Era disso tudo e muito mais que o Governo se deveria ocupar em matéria de segurança. Com serenidade, com sentido do dever e com a certeza de que estava a tocar em zonas complexas de sentimentos e da razão dos cidadãos. Com uma longa e recatada preparação, com uma revisão profunda da situação actual e com um exame sério e honesto das fragilidades actuais. Era sobre isso que o Governo deveria fazer leis, organizar instituições, avaliar organismos e ouvir as populações. Em vez disso, o Governo organizou uma operação quase imoral de propaganda e dissimulação.

 

Por estranhas razões políticas e publicitárias, por motivos partidários ou fúteis, por vaidade ou oportunismo, o Primeiro-Ministro e um “bouquet” de autoridades decidiram apresentar-se ao país, em comunicação solene, para falar de segurança de nós todos. O anúncio foi feito com circunspecção durante a tarde desse dia. “Às 20.00 horas, o Primeiro Ministro fará uma alocução ao país”. Vinte horas. Horário nobre, diz-se na gíria. Cinco ou seis estações prepararam as suas equipes, câmaras, comentadores e jornalistas. Sabia-se apenas que estava em causa a segurança dos portugueses. A cena seria precedida de reuniões do Primeiro ministro com as ministras da Justiça e da Administração Interna, além dos chefes das polícias. Às 20.00, ao mesmo tempo, em directo, como se fosse um país em guerra, sob uma ditadura ou em pleno PREC, oito canais de televisão transmitem a alocução.

 

Esperava-se o pior. Coisa pesada. Medidas sérias. Revelações importantes. Ou diagnóstico dramático. Enfim, qualquer coisa que justificasse a expectativa e a solenidade.

 

Não aconteceu nada. E se aconteceu, não se percebeu. E se se percebeu foi inútil e risível. Submeter a segurança dos cidadãos, as suas fantasias, os seus fantasmas e os seus pesadelos, às necessidades publicitárias do governo ou dos partidos é gesto condenável. Fazer demagogia com a incerteza e a insegurança dos cidadãos é gesto política e moralmente reprovável.

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Público, 29.11.2024

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29.11.24

“Aprender a gostar de Saber”


Por A. M. Galopim de Carvalho

Respondendo ao desafio dos meus leitores no Facebook, dei à estampa, em 2023, “Ao Romper da Aurora”, uma primeira parte do conjunto seleccionado dos posts ali publicados ao longo dos últimos nove anos. “Aprender a gostar de Saber” é a segunda parte dessa selecção. Diga-se que o título escolhido para este último livro, reflecte o que foi a minha prática como professor, procurando e conseguindo lovar os alunos a encontrarem beleza nas matérias em estudo. Reflecte igualmente a resposta que me pareceu dever dar aos retornos de muitos dos meus mais de 37 000 leitores no Facebook, que, cada um à sua maneira, me têm feito saber que o convívio diário, mantido comigo, através da leitura, têm aprendido a gostar de conhecer matérias que desconheciam, que conheciam mal e, até, aquelas que achavam desinteressantes ou, mesmo, que detestavam. Algo no género «eu detestava geologia, mas, com os seus textos, aprendi a gostar de tudo o que esta disciplina nos ensina».

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