Grande Angular - Perigo e fantasia: Uma encenação
Por António Barreto
Segurança está na ordem do dia. Dos cidadãos e das famílias. Dos homens e das mulheres. Dos adultos e dos jovens. Dos velhos e das crianças. Das instituições e das empresas. Dos nacionais e dos estrangeiros. No mundo inteiro, a insegurança cresce. É o que provam os factos, as observações e os sentimentos. Há países (Brasil, Estados Unidos, México, Colômbia, Nigéria, Quénia, Congo, África do Sul e outros) com inacreditável número diário de crimes, atentados, agressões, roubos e destruições. Portugal estaria entre os países do grupo com menos crimes e atentados. Ainda bem. Mas toda a gente sabe que o sentimento de insegurança, aqui e lá fora, cresce todos os dias. É o que a sociedade contemporânea produz.
Segurança consiste na certeza ou na esperança de que a integridade física dos cidadãos, os seus direitos, a sua liberdade, os seus familiares, os seus bens e a sua tranquilidade são respeitados ou protegidos.
É a confiança em que, se cumprir os meus deveres, ninguém, pessoa ou instituição, ofende os meus direitos e que, se o fizer, haverá repreensão.
Segurança é a esperança de que a justiça apure, julgue e castigue quem atenta contra a liberdade e os direitos dos cidadãos.
É a certeza de que nunca serei incomodado por exprimir a minha opinião, nunca me será indevidamente retirado o direito à palavra e nunca serei objecto de represálias por causa das minhas opiniões.
É a expectativa de poder rezar aos meus deuses, ou a nenhum, sem ser incomodado por quem reza a outros.
Segurança consiste no sentimento de que alguém acorre quando sou ameaçado na rua, quando entro em casa e encontro ocupantes indevidos, de que alguém ajuda quando o marido, o pai ou o filho agridem e espancam as mulheres.
É a sensação de que alguém responde quando chamo o 112 ou o INEM, quando estou em sofrimento ou com dores de parto, quando telefono aos bombeiros, quando sinto fumo e fogo em minha casa ou na da vizinhança.
É a possibilidade de passear em qualquer parte da cidade, sem recear violência e com a certeza de que não há bairros interditos, áreas de acesso reservado e ruas perigosas.
É a esperança de que alguém, polícia ou autoridade, responde prontamente aos meus apelos quando alguém ameaça os meus filhos, viola a minha filha, bate nos meus pais e agride a minha mulher. Ou alguém que faça tudo isso a mim próprio.
É a esperança em que bombeiros ou policias, voluntários ou assistentes, ajudam e acorrem quando a casa pega fogo, quando se sente inundação ou tremor de terra, quando alguém pretende roubar os meus bens e assaltar a minha casa.
É a certeza de que posso sair à noite, passear nas ruas da cidade, ver os meus filhos frequentar locais públicos sem serem agredidos e roubados e de que, se acontecer, os culpados são perseguidos, detidos e castigados.
É estar convencido de que nas escolas não há bandidos, traficantes, assaltantes e outros meliantes a agredir, enganar ou magoar os meus filhos.
É a convicção de que, no meu trabalho, nos comboios, nos autocarros, no metropolitano, nos serviços públicos, eu e os meus não somos assediados, incomodados, agredidos, roubados e espancados, e de que, se o formos, podemos pedir socorro e ajuda, e de que alguém virá, e de que, se não for o caso e ninguém chegar a tempo, alguém, serviço ou instituição, investigará, descobrirá, deterá e castigará.
É a impressão de que os mais vulneráveis na sociedade, velhos, crianças, doentes, pobres e sem abrigo são protegidos, de que alguém está atento à sua situação e aos seus pedidos de socorro.
É ter a ideia de que as ruas e os espaços públicos não estão cada vez mais perigosos, com mais imprevisibilidade e com menos liberdade e sem paz.
Insegurança, em Portugal, hoje, é este sentimento crescente, fundamentado ou não, comprovado ou não, de que a vida, a tranquilidade, a liberdade e os direitos individuais estão a ser ameaçados, de que o espaço público é perigoso e de que temos cada vez mais de nos abrigar em espaço privado e em casa.
Insegurança consiste em viver anos à espera de julgamento, de investigação, de detenção e de castigo de quem atentou contra os meus direitos, contra a minha integridade física, contra os meus bens e contra a minha liberdade.
É a crença fundada em instituições que servem para prever e prevenir, para estudar as condições de vida e de segurança, para procurar culpados e malfeitores, para julgar e castigar bandidos.
Era disso tudo e muito mais que o Governo se deveria ocupar em matéria de segurança. Com serenidade, com sentido do dever e com a certeza de que estava a tocar em zonas complexas de sentimentos e da razão dos cidadãos. Com uma longa e recatada preparação, com uma revisão profunda da situação actual e com um exame sério e honesto das fragilidades actuais. Era sobre isso que o Governo deveria fazer leis, organizar instituições, avaliar organismos e ouvir as populações. Em vez disso, o Governo organizou uma operação quase imoral de propaganda e dissimulação.
Por estranhas razões políticas e publicitárias, por motivos partidários ou fúteis, por vaidade ou oportunismo, o Primeiro-Ministro e um “bouquet” de autoridades decidiram apresentar-se ao país, em comunicação solene, para falar de segurança de nós todos. O anúncio foi feito com circunspecção durante a tarde desse dia. “Às 20.00 horas, o Primeiro Ministro fará uma alocução ao país”. Vinte horas. Horário nobre, diz-se na gíria. Cinco ou seis estações prepararam as suas equipes, câmaras, comentadores e jornalistas. Sabia-se apenas que estava em causa a segurança dos portugueses. A cena seria precedida de reuniões do Primeiro ministro com as ministras da Justiça e da Administração Interna, além dos chefes das polícias. Às 20.00, ao mesmo tempo, em directo, como se fosse um país em guerra, sob uma ditadura ou em pleno PREC, oito canais de televisão transmitem a alocução.
Esperava-se o pior. Coisa pesada. Medidas sérias. Revelações importantes. Ou diagnóstico dramático. Enfim, qualquer coisa que justificasse a expectativa e a solenidade.
Não aconteceu nada. E se aconteceu, não se percebeu. E se se percebeu foi inútil e risível. Submeter a segurança dos cidadãos, as suas fantasias, os seus fantasmas e os seus pesadelos, às necessidades publicitárias do governo ou dos partidos é gesto condenável. Fazer demagogia com a incerteza e a insegurança dos cidadãos é gesto política e moralmente reprovável.
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Público, 29.11.2024
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