30.11.24

Grande Angular - Perigo e fantasia: Uma encenação

Por António Barreto

Segurança está na ordem do dia. Dos cidadãos e das famílias. Dos homens e das mulheres. Dos adultos e dos jovens. Dos velhos e das crianças. Das instituições e das empresas. Dos nacionais e dos estrangeiros. No mundo inteiro, a insegurança cresce. É o que provam os factos, as observações e os sentimentos. Há países (Brasil, Estados Unidos, México, Colômbia, Nigéria, Quénia, Congo, África do Sul e outros) com inacreditável número diário de crimes, atentados, agressões, roubos e destruições. Portugal estaria entre os países do grupo com menos crimes e atentados. Ainda bem. Mas toda a gente sabe que o sentimento de insegurança, aqui e lá fora, cresce todos os dias. É o que a sociedade contemporânea produz.

 

Segurança consiste na certeza ou na esperança de que a integridade física dos cidadãos, os seus direitos, a sua liberdade, os seus familiares, os seus bens e a sua tranquilidade são respeitados ou protegidos.

 

É a confiança em que, se cumprir os meus deveres, ninguém, pessoa ou instituição, ofende os meus direitos e que, se o fizer, haverá repreensão.

 

Segurança é a esperança de que a justiça apure, julgue e castigue quem atenta contra a liberdade e os direitos dos cidadãos.

 

É a certeza de que nunca serei incomodado por exprimir a minha opinião, nunca me será indevidamente retirado o direito à palavra e nunca serei objecto de represálias por causa das minhas opiniões.

 

É a expectativa de poder rezar aos meus deuses, ou a nenhum, sem ser incomodado por quem reza a outros.

 

Segurança consiste no sentimento de que alguém acorre quando sou ameaçado na rua, quando entro em casa e encontro ocupantes indevidos, de que alguém ajuda quando o marido, o pai ou o filho agridem e espancam as mulheres.

 

É a sensação de que alguém responde quando chamo o 112 ou o INEM, quando estou em sofrimento ou com dores de parto, quando telefono aos bombeiros, quando sinto fumo e fogo em minha casa ou na da vizinhança.

 

É a possibilidade de passear em qualquer parte da cidade, sem recear violência e com a certeza de que não há bairros interditos, áreas de acesso reservado e ruas perigosas. 

 

É a esperança de que alguém, polícia ou autoridade, responde prontamente aos meus apelos quando alguém ameaça os meus filhos, viola a minha filha, bate nos meus pais e agride a minha mulher. Ou alguém que faça tudo isso a mim próprio.

 

É a esperança em que bombeiros ou policias, voluntários ou assistentes, ajudam e acorrem quando a casa pega fogo, quando se sente inundação ou tremor de terra, quando alguém pretende roubar os meus bens e assaltar a minha casa.

 

É a certeza de que posso sair à noite, passear nas ruas da cidade, ver os meus filhos frequentar locais públicos sem serem agredidos e roubados e de que, se acontecer, os culpados são perseguidos, detidos e castigados.

 

É estar convencido de que nas escolas não há bandidos, traficantes, assaltantes e outros meliantes a agredir, enganar ou magoar os meus filhos.

 

É a convicção de que, no meu trabalho, nos comboios, nos autocarros, no metropolitano, nos serviços públicos, eu e os meus não somos assediados, incomodados, agredidos, roubados e espancados, e de que, se o formos, podemos pedir socorro e ajuda, e de que alguém virá, e de que, se não for o caso e ninguém chegar a tempo, alguém, serviço ou instituição, investigará, descobrirá, deterá e castigará.

 

É a impressão de que os mais vulneráveis na sociedade, velhos, crianças, doentes, pobres e sem abrigo são protegidos, de que alguém está atento à sua situação e aos seus pedidos de socorro.

 

É ter a ideia de que as ruas e os espaços públicos não estão cada vez mais perigosos, com mais imprevisibilidade e com menos liberdade e sem paz.

 

Insegurança, em Portugal, hoje, é este sentimento crescente, fundamentado ou não, comprovado ou não, de que a vida, a tranquilidade, a liberdade e os direitos individuais estão a ser ameaçados, de que o espaço público é perigoso e de que temos cada vez mais de nos abrigar em espaço privado e em casa.

 

Insegurança consiste em viver anos à espera de julgamento, de investigação, de detenção e de castigo de quem atentou contra os meus direitos, contra a minha integridade física, contra os meus bens e contra a minha liberdade.

 

É a crença fundada em instituições que servem para prever e prevenir, para estudar as condições de vida e de segurança, para procurar culpados e malfeitores, para julgar e castigar bandidos.

 

Era disso tudo e muito mais que o Governo se deveria ocupar em matéria de segurança. Com serenidade, com sentido do dever e com a certeza de que estava a tocar em zonas complexas de sentimentos e da razão dos cidadãos. Com uma longa e recatada preparação, com uma revisão profunda da situação actual e com um exame sério e honesto das fragilidades actuais. Era sobre isso que o Governo deveria fazer leis, organizar instituições, avaliar organismos e ouvir as populações. Em vez disso, o Governo organizou uma operação quase imoral de propaganda e dissimulação.

 

Por estranhas razões políticas e publicitárias, por motivos partidários ou fúteis, por vaidade ou oportunismo, o Primeiro-Ministro e um “bouquet” de autoridades decidiram apresentar-se ao país, em comunicação solene, para falar de segurança de nós todos. O anúncio foi feito com circunspecção durante a tarde desse dia. “Às 20.00 horas, o Primeiro Ministro fará uma alocução ao país”. Vinte horas. Horário nobre, diz-se na gíria. Cinco ou seis estações prepararam as suas equipes, câmaras, comentadores e jornalistas. Sabia-se apenas que estava em causa a segurança dos portugueses. A cena seria precedida de reuniões do Primeiro ministro com as ministras da Justiça e da Administração Interna, além dos chefes das polícias. Às 20.00, ao mesmo tempo, em directo, como se fosse um país em guerra, sob uma ditadura ou em pleno PREC, oito canais de televisão transmitem a alocução.

 

Esperava-se o pior. Coisa pesada. Medidas sérias. Revelações importantes. Ou diagnóstico dramático. Enfim, qualquer coisa que justificasse a expectativa e a solenidade.

 

Não aconteceu nada. E se aconteceu, não se percebeu. E se se percebeu foi inútil e risível. Submeter a segurança dos cidadãos, as suas fantasias, os seus fantasmas e os seus pesadelos, às necessidades publicitárias do governo ou dos partidos é gesto condenável. Fazer demagogia com a incerteza e a insegurança dos cidadãos é gesto política e moralmente reprovável.

.

Público, 29.11.2024

Etiquetas:

29.11.24

“Aprender a gostar de Saber”


Por A. M. Galopim de Carvalho

Respondendo ao desafio dos meus leitores no Facebook, dei à estampa, em 2023, “Ao Romper da Aurora”, uma primeira parte do conjunto seleccionado dos posts ali publicados ao longo dos últimos nove anos. “Aprender a gostar de Saber” é a segunda parte dessa selecção. Diga-se que o título escolhido para este último livro, reflecte o que foi a minha prática como professor, procurando e conseguindo lovar os alunos a encontrarem beleza nas matérias em estudo. Reflecte igualmente a resposta que me pareceu dever dar aos retornos de muitos dos meus mais de 37 000 leitores no Facebook, que, cada um à sua maneira, me têm feito saber que o convívio diário, mantido comigo, através da leitura, têm aprendido a gostar de conhecer matérias que desconheciam, que conheciam mal e, até, aquelas que achavam desinteressantes ou, mesmo, que detestavam. Algo no género «eu detestava geologia, mas, com os seus textos, aprendi a gostar de tudo o que esta disciplina nos ensina».

Etiquetas:

27.11.24

O GRANITO PARA LÁ DE GEOLOGIA - Anta Grande do Zambujeiro




Por A. M. Galopim de Carvalho

Entre os muitos monumentos megalíticos, de tipo dolmen, existentes em Portugal, a Anta grande do Zambujeiro, junto à Herdade da Mitra, próximo de Valverde (concelho de Évora), é uma das maiores existentes na Península Ibérica. Declarada Património de Interesse Nacional, em 1971, encontra-se actualmente em sério risco de colapso e num lamentável estado de degradação. 

Datada de há 6000 a 5500 anos, é formada por uma câmara poligonal, limitada por sete grandes esteios, na ordem dos 8 metros de altura bem cravados no chão, O chapéu com cerca de 7 metros de diâmetro, está partido e jaz a poucos metros da câmara. Entra-se aqui por um corredor com 12 metros de comprimento, 1,5 metros de largura e cerca de 2 de altura. À entrada um enorme esteio tombado, que não chegou a ser utilizado.

Todo o espólio reunido na escavação (por Henrique Leonor Pina) está guardado, mas não estudado, no Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, em Évora.

Oportunamente, propus à autarquia que incluísse no programa de Évora capital europeia da Cultura, em 2027, a conclusão do projecto concebido para a sua conveniente utilização como monumento visitável.

 

Cromeleque dos Almendres

Exemplo maior do megalítico europeu, o cromeleque dos Almendres orientado segundo a direcção poente-nascente, desce do chamado Alto das Pedras Talhas (413 m de altitude) por uma encosta suave bem alentejana voltada a leste na Herdade dos Almendres, localizada na freguesia de Nossa Senhora de Guadalupe, a cerca de 12 km a oeste da cidade de Évora, com fácil acesso a partir da estrada nacional de Évora para Lisboa, ao km 10.

Diga-se, antes de mais, que a palavra cromlech, do galês antigo, que quer dizer pedra grande arredondada, já era usada no século XVII para designar este tipo de monumento megalítico. Nela, o elemento lechsignifica pedra.

Muitos dos megálitos (nome de cada uma destas pedras grandes, do grego mega, grande, e lithos, pedra) ali reunidos têm a forma ovóide dos grandes recipientes de barro, as ditas talhas, em que, no Alentejo, se fermentava o mosto e guardava o vinho e, daí, o nome do sítio. São todos de granito ("lato sensum"), entre granodioritos e quartzodioritos, de vários afloramentos da região, alguns transportados de distâncias superiores a 2 km. 

Guindado à condição de maior conjunto de menires da Península Ibérica, o Cromeleque dos Almendres é considerado um dos maiores e mais importantes monumentos deste tipo no mundo, bem mais antigo do que o conhecidíssimo Stonehenge, e pôs o Alentejo e Portugal na rota de especialistas neste domínio do saber.

Datado de há cerca de 7000 anos, no Neolítico, segundo alguns autores, este cromeleque, que é constituído por dois recintos geminados, um maior de forma elíptica, a poente, e um menor e circular, a nascente, edificados em épocas distintas, aponta no sentido da sedentarização do povo que aqui viveu. Estudos arqueológicos realizados no local por especialistas fazem supor que o conjunto foi edificado em diferentes etapas, durante o Neolítico, Uma no final do Neolítico antigo (fim do sexto milénio a.C.), com a reunião de um conjunto de menhires de pequeno tamanho, agrupados em três círculos concêntricos (o maior com cerca de 20 m de diâmetro). Outra com a formação de duas elipses concêntricas (a maior com cerca de 44 m por 36 m) coladas a oeste dos citados círculos de recinto mais antigo. Uma última, no Neolítico final (terceiro milénio a.C.) com modificações dos dois recintos, em particular do menor, transformado num átrio do recinto maior. 

Quando completo, o conjunto dos menhires teria ultrapassado a centena, de tamanhos diversos. Destes, ainda restam noventa e dois, desde os mais pequenos, pouco ou quase nada afeiçoados, aos maiores (com 2,5 a 3 metros de altura), lembrando as ditas talhas, em muito bom estado de conservação, uns com pequenas covas centimétricas (covinhas) e outros decorados, exibindo relevos ou gravuras.

Classificado como Imóvel de Interesse Público desde 1974, e como Monumento Nacional, em 2015, o Cromeleque dos Almendres, descoberto em 1964 por Henrique Leonor Pina foi, desde então, objecto de várias acções de escavação e restauro. Faz parte do universo megalítico eborense e está relacionado com diversas antas, com destaque para a do Zambujeiro, bem perto dali, e dois outros monumentos próximos, os Cromeleques da Portela de Mogos, e Vale Maria do Meio.

 

Menhir dos Almendres

Importante megálito de granito porfiróide, menhir é o que o vulgo chamava pedra alçada ou “pera fita” de forma fálica, com cerca de 3,5 metros de altura a partir da superfície do terreno e secção, grosso modo, elíptica com 1,20 x 0,80 metros. Está localizado na freguesia de Nossa Senhora de Guadalupe, no concelho de Évora, no topo de uma encosta, 1,3 km a nordeste do Cromeleque dos Almendres, supondo-se haver íntima relação, entre ambos, dado que o seu alinhamento coincide com o nascer do Sol no Solstício de Verão.

Etiquetas:

23.11.24

Grande Angular - Novembro!

Por António Barreto

Em 25 de Novembro de 1975, deu-se um confronto político e militar benfazejo. De um lado, tudo o que, sendo de esquerda, não era democrático, era revolucionário, desejava liquidar a iniciativa privada e o capitalismo, impedir a livre elaboração da Constituição, evitar as eleições legislativas previstas para uns meses depois, afastar a ideia de um Parlamento eleito e plural, erguer obstáculos à criação de um regime democrático parlamentar parecido com o que vigorava em praticamente todos os países ocidentais e europeus. Pretendiam transformar em órgãos de soberania os poderes de organismos não eleitos, como as comissões de trabalhadores e de moradores, os sindicatos e outros “órgãos de poder popular”, segundo a terminologia da época. Neste lado, brilhavam o Partido Comunista Português e o MDP, sua excrescência. E também outros epifenómenos revolucionários como a UDP, o MES, a FEC-ML, o PUP e a LCI. E sobretudo oficiais e unidades militares identificados com as facções revolucionárias do MFA. Todos estes activistas menores detinham a iniciativa e a ribalta, mas quem realmente tinha peso era o PCP.

 

Do outro lado, estavam oficiais e unidades militares comprometidos com o 25 de Abril e entregues definitivamente à ideia democrática, pela qual se tinham elevado um ano antes. Uma grande parte da instituição militar estava interessada no programa de democratização e de Estado de direito. É bem provável que militares afectos ao antigo regime se encontrassem neste campo político e institucional, tal como outros estavam na área revolucionária. Mas a direcção e o protagonismo deste universo político e militar pertenciam sem qualquer dúvida aos militares empenhados no 25 de Abril e que, cada vez mais, se identificavam com a Forças Armadas nacionais e se afastavam do activismo onírico revolucionário.

 

Ainda deste último lado, na sociedade civil, encontrava-se tudo o que era democrático, a começar pelo Partido Socialista, que muito cedo percebeu que seria a primeira vítima da revolução. Mário Soares compreendeu, desde 1974, que o futuro da democracia em Portugal, assim como dos socialistas, dependia da capacidade de oposição aos projectos comunistas e aos delírios revolucionários. A seguir ao PS, o PPD (futuro PSD), animava vastas áreas de população interessada em resistir ao comunismo e à revolução, tanto quanto em contribuir para uma democracia parlamentar. Outros pequenos partidos e movimentos, várias instituições (a começar pela Igreja Católica) e gente de todas as classes sociais e profissionais, lutavam pela democracia e contra a revolução. Evidentemente que, no meio da multidão, não faltavam, em números insignificantes, gente do antigo regime e fascistas de velha criação ou nova semente. Sentido de oportunidade? Talvez. Mas essas pessoas também tinham direito à vida, que era o que a democracia lhes concedia, como a toda a gente. Como até aos revolucionários antidemocráticos que a queriam derrubar.

 

Em poucas palavras: em Novembro de 1975, estavam, frente a frente, a revolução e a democracia. Mais precisamente, 20% dos portugueses a favor da revolução contra 80% dos portugueses favoráveis à democracia. Por entre golpes e contragolpes, ameaças e armadilhas, os militares da democracia derrotaram os da revolução. E os democratas derrotaram os revolucionários. Sem apelo nem agravo. E, contrariamente à tradição das revoluções, os vencedores não mataram, não proibiram, não liquidaram os derrotados, deixando-lhes, fazendo disso questão, um lugar no Estado democrático. É disto que se fala, quando se fala do 25 de Novembro. É dos militares do Grupo do Nove, de Melo Antunes, Vasco Lourenço e seus amigos. É dos militares da instituição militar dedicados à democracia, com Ramalho Eanes à cabeça. É dos militares operacionais, como Jaime Neves, que correram riscos pela democracia.

 

Aquilo a que temos assistido, há vários anos, é esta espécie de entremês medíocre ou de futilidade palerma que é a dança de argumentos e disparates sobre o 25 de Novembro. Mais ou menos importante do que o 25 de Abril? Foi o regresso dos fascistas com a conivência dos socialistas? Foi uma armadilha da direita em que caiu o PS? E como se vai comemorar? Igual a Abril? Ou em vez de Abril? Ou como Abril com menos minutos, menos hino e menos bandeira? E comemora-se na Assembleia, no hemiciclo ou nas enxovias? E se fosse só numa caserna para mostrar que aquilo foi coisa de militares e que nada teve de socialismo nem de democrático?

 

O que os socialistas fizeram, mais uma vez, mas agora parece que definitivamente, foi entregar o 25 de Novembro à direita. Pagar mais um preço à “geringonça de esquerda”. Colaborar com a ideia de que o 25 de Novembro foi um movimento militar de direita destinado a correr com as esquerdas e com os partidos do 25 de Abril. Aceitar a tese de que os socialistas tiveram esse desvio de direita, mas que hoje estão muito distantes dessas fantasias e que a sua política é à esquerda, com os partidos de esquerda, contra todos os partidos da direita. Confirmar o boato que diz que Mário Soares teve devaneios com a direita, um deles a 25 de Novembro, mas que isso lhe passou depois. Afirmar que o 25 de Novembro não pertence ao património da democracia, muito menos à história do PS. Sublinhar que primeiro vem o socialismo e o partido, só depois vem a democracia e Portugal.

 

Felizmente que há ainda muitos socialistas que pensam que Novembro salvou e garantiu a democracia. Que sabem que o PS só tinha dois anos em Abril e que, mesmo com as notáveis figuras de Mário Soares e Salgado Zenha, estava longe de mostrar a grandeza real, longe de ser o preferido dos portugueses. Que sabem que foi a luta contra o comunismo e contra a ditadura de esquerdas que fez o PS e que engradeceu Mário Soares. Que sabem que os socialistas estavam à frente de todos, nas unidades e nos regimentos, em Rio Maior, no Porto e em Gaia, em Estremoz e Vendas Novas, na Amadora e na Ajuda, a rechaçar os revolucionários e os comunistas e a defender a democracia. Que sabem que foi com Novembro que os socialistas infligiram aos comunistas a sua maior derrota democrática e que talvez tenha sido o único caso em que os comunistas foram retirados, pacificamente, do poder que dominavam. Felizmente que há quem honre a história, quem respeite os seus, quem cultive os maiores, quem goste de seguir o exemplo dos seus dirigentes históricos, quem tenha a certeza de que a liberdade está acima dos cálculos mesquinhos de oportunidade. 

.

Público, 22.11.2024

Etiquetas:

O corpo e a mente+



Por A. M. Galopim de Carvalho

Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim.

Quando dou uma aula, ainda dou muitas, o entusiasmo e a energia que ponho na voz situam-me nos meus anos de docência, mas o facto de ter de a dar sentado, coisa que outrora nunca fiz, diz-me que esse tempo já passou há muito.

Quando olho para dentro de mim, tanto posso ser a criança ou adolescente, como o activo adulto que fui, mas, na rua, as irregularidades da calçada, ao fazerem-me procurar, na bengala, a segurança e o equilíbrio que perdi, dizem-me a mesma desconfortável verdade. 

Comodamente instalado, aqui, frente ao monitor do computador, vivo a despreocupação e a alegria de uma crónica de tempos idos, volto a ser o que fui nos anos de maior pujança da minha vida, mas mal me levanto da cadeira, os joelhos e as pernas trazem-me ao presente.

Bem sentado no autocarro, tenho a idade daquele ou daquela que vai ao meu lado e, se acontece falarmos, irmano-me com ele ou com ela e só me dou conta da idade que carrego sobre os ombros, ao descer do dito, naquele degrau que nunca me pareceu tão alto.

Muitas outras realidades me dizem, todos os dias, que sou mais um entre os muitos velhos deste belo e, desde sempre, mal governado país. São os meus antigos alunos, agora de cabelos brancos, muitos deles pensionistas como eu. São os meus netos, já adultos e com barba, são as consultas médicas, as idas frequentes ao Hospital e aos Centros de Saúde e o exagerado número de fármacos diários ao pequeno-almoço, almoço e jantar.

Diz-se que os velhos só têm o presente, o que não está longe da verdade. Não têm passado nem futuro. O passado perderam-no, sem darem por isso. Uns mais do que outros, podem guardá-lo na memória e é tudo o que dele lhes resta. Quanto ao futuro, esse foge-lhes por entre os dedos, como a areia. A diminuição progressiva das suas capacidades rouba-lhes a ideia de futuro. Não lhes permite fazer planos. Vivem, como se ouve dizer, “um dia de cada vez”. Preparar uma palestra e proferi-la, fazer uma conversa, onde quer que seja, e escrever algo sobre o que me parecer dever fazer, cabem dentro deste horizonte de vida. 

É nesta tranquila certeza que, nos meus 93 anos já vividos, organizo as 24 horas do dia, de todos os dias. Proferi ontem a última de cinco conversas de um minicurso de Geologia, “Como Bola Colorida”, numa perfeita organização do Âmbito Cultural, do El Corte Inglés. Casa cheia todos os dias. Eram só idosos, da primeira à última fila de cadeiras, e eu era o mais idoso de todos eles. 

É nesta tranquila certeza que me dou conta da exiguidade do meu horizonte de vida, face ao muito que ainda tenho em mente e gostaria de fazer, e nesse muito está, por um lado, escrevendo e falando, deixar aos meus concidadãos o que a vida e a profissão me ensinaram e, por outro, continuar a exercer o que entendo ser o meu dever de cidadania. Neste dever estão as lutas (lutas, sim, porque é de lutas que se trata, sempre morosas e difíceis de vencer) que continuo a travar com os governantes e outros decisores, pela valorização e salvaguarda do nosso património geológico.

Etiquetas:

20.11.24

No "Correio de Lagos" de Outubro de 2024 - Pág. 2

Etiquetas: ,

18.11.24

Grande Angular - A saúde é o teste da democracia portuguesa

Por António Barreto

Os recentes incidentes com o INEM deixaram o país perplexo. É obsceno que seja possível acontecer o que se diz que aconteceu. É inaceitável que, por culpa do ministério, dos serviços, das ambulâncias, dos técnicos de emergência ou das greves, tenham morrido, numa semana, onze pessoas por falta de assistência. Será do serviço? Ou da greve? Será dos técnicos? Ou do ministério? Dos doentes não é certamente. Vai ser analisada a culpa. Espera-se que seja um pouco mais célere do que em tantos outros casos. Verdade é que, antes das conclusões, a Provedora de Justiça já veio a público, e muito bem, declarar que o Estado deve assumir as suas responsabilidades, até por via de indemnização.

 

Há anos que nos habituámos, justamente, a considerar a saúde como o termómetro da democracia e do regime. Se excluirmos o mais óbvio, como sejam o voto e as liberdades, a saúde perfila-se. Se não olharmos para a mudança “sistémica” que mais marca a evolução social, a ascensão das mulheres a posições quase paritárias, é novamente a saúde que aparece como o campeão dos êxitos. Há concorrentes, como a alfabetização, as estradas e a segurança social universal, mas todos estes são discutíveis. Olhando para a frieza dos números, a saúde exibe melhores resultados.

 

Pergunte-se aos cidadãos e tente-se apreciar a experiência das últimas décadas: o mais provável é que a resposta seja “saúde”.  Há muito que se lhe diga. As queixas são mais do que muitas. Não há português que não se queixe dos médicos (dos outros, raramente dos seus…), dos centros de saúde, dos hospitais (públicos e privados) e dos enfermeiros. Parece não haver pessoa que não tenha a certeza de que os erros e a negligência médica são constantes, sobretudo com os vizinhos, parentes e amigos. Mas, colocados perante a necessidade de escolher, o mais provável é a saúde!

 

A verdade é que há motivos para isso. Da experiência de cada um (que tenha conhecido os cuidados de saúde nos anos 60 a 80), mas também dos testemunhos, dos jornais e das estatísticas, resulta que os progressos foram colossais. Tudo contribuiu, desde a água potável e a literacia, aos modos de vida e à urbanização. Mas foram os cuidados, os equipamentos, os médicos e os enfermeiros os principais responsáveis. E foi o alargamento desses cuidados e a quase gratuitidade que desempenharam papel fundamental. Em poucas palavras, o Serviço Nacional de Saúde foi o responsável. 

 

Se olharmos para o período que vai de 1974 até hoje, os progressos são incomensuráveis! Qualquer série estatística revela os melhoramentos com clareza absoluta. É verdade que, aqui e ali, há oscilações e até um ou outro retrocesso, como nos anos de crise económica e financeira. Mas, globalmente, na média duração, a evolução é notabilíssima. A esperança de vida aumentou muito. A mortalidade infantil deixou de ser a pior da Europa para passar a ser uma das melhores. A morte por certas doenças do subdesenvolvimento diminuiu.

 

O pessoal dos serviços de saúde aumentou inacreditavelmente! O número de médicos por habitante é um dos três mais elevados da Europa! E obviamente o número de doentes e de habitantes por médico é dos mais baixos. Evolução semelhante é a do número de dentistas, de enfermeiros e de técnicos auxiliares. Foi constante, com apenas alguns recuos, o crescimento da despesa por habitante. Cresceram sempre os números de urgências e de consultas em unidades do SNS.

 

É sabido que um grande número de médicos e enfermeiros formados em Portugal se desloca rapidamente para o estrangeiro onde vai auferir salários muito superiores ao que poderiam esperar por cá. Além do défice de pessoal, este facto constitui um enorme desperdício de investimento e recursos. Mas a verdade é que médicos e enfermeiros fazem muito bem em ir fazer a sua vida onde são reconhecidos. Mesmo assim, os médicos e os enfermeiros em serviço em Portugal são em número muito considerável e superior ao que se conhece em quase toda a Europa e Américas.

 

Com esta evolução, seria de esperar um excepcional grau de eficácia e de qualidade na prestação de serviços. Não é, infelizmente, verdade. Ou antes: o grau de satisfação é muito reduzido. As queixas e as reclamações são permanentes. A despesa é proporcionalmente enorme. O pior é a realidade dos factos concretos e quotidianos. Os tempos de espera por consulta, exame ou cirurgia são absurdos. E de tal maneira recorrentes que já poucos se escandalizam. Semanas e meses, para não dizer mais de um ano, à espera de vez para uma consulta, uma intervenção simples ou uma cirurgia mais complicada, são chocantes. A existência de centenas de milhares de pessoas sem médico de família é aflitiva. Ainda por cima há actos médicos que dependem do médico de família. Ora, são muitas as pessoas que o solicitam e não são atendidas.

 

As instalações dos SNS (hospitais e Centros de Saúde) são medianas e medíocres, o que quer dizer que, em muitos casos, são más e péssimas. É verdade que há unidades de saúde organizadas com sentido de humanidade, eficientes, bem geridas e prontas na resposta aos utentes. Mas muitas, talvez a maioria, são desconfortáveis, frias, sujas, sem respostas ao telefone, sem atendimemnto cuidado de pessoas em sofrimento e sem acompanhamento dos doentes. É frequente ter de fazer dezenas ou centenas de quilómetros para uma consulta. As maternidades fecham de vez em quando. Nascer numa ambulância parece agora ser moda. 

 

E o pior de tudo é o sentimento claro de segregação e desigualdade. Quem tem poder e dinheiro, quem tem influência e conhecimentos, quem tem partido ou empresa, quem vive na boa cidade e no bom bairro, quem tem cunha ou cunhado, tem serviço de saúde, atendimento e tratamento. Quem não tem, que espere e que se cuide! Quem quiser realmente saber da saúde em Portugal tem de ver ou ouvir quem lá está, quem lá vai e quem quer lá ir. Quem é obrigado a horas extraordinárias fora de qualquer sentido. Quem tem vencimentos ridículos. Quem espera meses por uma consulta ou uma cirurgia “urgente”. Quem é pobre e trabalha e não pode fazer horas de fila e espera, ou não pode faltar ao emprego para levar os pais ou os filhos aos centros e aos hospitais.

 

Que o SNS precisa de refundação, não parece haver dúvidas. Que os modos de gestão e de organização devem ser revistos e reformados, também parece certo e seguro. Que quem quiser consolidar ou salvar a democracia deve tratar da saúde e do SNS, também parece indiscutível.

Público, 16.11.2024

Etiquetas:

11.11.24

BARRO OU ARGILA, O ARGILITO NO JARGÃO PETROGRÁFICO


Por A. M. Galopim de Carvalho

Diz o Velho Testamento que, depois de ter feito o mundo, Deus pegou no barro e fez o homem. E o homem, depois de ter lascado a pedra, pegou no barro e fez o primeiro vaso.

Depois do sílex, a principal matéria-prima mineral foi o barro, com o qual os nossos antepassados do Neolítico começaram a fazer recipientes cerâmicos diversos, de início, rudimentares, e, progressivamente, mais aperfeiçoados.

 

Argila, termo que herdámos do grego, argilós (a partir do étimo argos, que significa branco), através do latim, argila, é o barro, material de todos conhecido, na linguagem vulgar, com origem no latim hispânico, barrum

 

Argilito é uma forma, proposta pelos sedimentólogos, tida por mais apropriada para, na petrografia sedimentar, dizer argila ou barro. É descrito como uma rocha sedimentar essencialmente composta por argilominerais associados a quartzo, feldspatos e micas naturalmente pulverizados, e, e, ainda, impregnações de óxidos e hidróxidos de ferro (hematite, goethite) e matéria orgânica, que lhe conferem colorações, respectivamente avermelhada, amarelo acastanhada e castanha-escura a negra.

 

Argilominerais são descritos quimicamente como silicatos hidratados de alumínio e/ou magnésio, associados ou não a outros elementos como, por exemplo, cálcio e sódio. São filossilicatos, (por aposição do elemento grego phylon, que significa folha), isto é, silicatos em cuja estrutura interna os átomos estão dispostos em folhas paralelas, sob a forma decristais ou agregados cristalinos, de pequeníssimas dimensões (nanométricas, no geral, inferiores a 0,004 mm), só visíveis ao microscópio electrónico. 

Entre as espécies ou grupos de espécies mais comuns de argilominerais, destacam-se: caulinite, ilite, esmectites, palygorskite e clorite, apenas cinco entre os muitos conhecidos. Face ao que se conhece sobre a sua génese nos diferentes sistemas bioclimáticos, eles permitem, como nenhum outro componente mineral dos sedimentos, inferir reconstituições paleoambientais do maior interesse em geologia.

Enquanto o termo barro se manteve na linguagem vulgar, o termo argila guindou-se ao estatuto de vocábulo do léxico científico. 

 

Toda a argila é branca, quando liberta de impurezas, como os ditos óxidos e outras substâncias que lhe confiram colorações.


Os romanos dispunham ainda do termo creta para referir a mesma substância e que passou ao português antigo sob a forma de greda, termo hoje muito menos usado.

No conceito que todos temos de rocha, como um material coeso rígido e duro, como qualquer pedra, o argilito não é uma rocha, mas é-o no contexto da sistemática petrográfica, onde ocupa lugar bem definido no conjunto das rochas sedimentares. Rocha ou não, como se queira entender, é, sem sombra de dúvida, uma fase ou etapa, dita exógena (superficial), do grande ciclo das rochas. 

O argilito corresponde ao mudstone (de mud, lama e stone, pedra) dos geólogos de língua inglesa e ao lamito dos brasileiros, um vocábulo que ainda não entrou no nosso léxico da especialidade.

Na classificação do alquimista persa Avicena (980-1037), a argila foi considerada na classe das “terras”ao lado de outras (“pedras”, “sais”, “metais”, “minerais fusíveis”). Este critério manteve-se até começos do século XIX, estando bem exemplificado na sistemática do químico e mineralogista sueco, Torbern Bergman (1749-1817). É esta a razão que explica que os ingleses designem a argila por earth (terra), os franceses por terre e que nós ainda usemos o termo terra com o mesmo significado em expressões como terra rossa terracota, terra de pisoeiro ou terra fulónica (por tradução do inglês fuller’s earth).

Acrescente-se que pisoeiro era o artífice que pisoava (lavava e desengordurava com um tipo especial de argila, dita esméctica) a lã, usando o pisão. Diga-se que terracota é uma maneira de dizer cerâmica ou argila cozida no forno, sem ser vidrada. E que terra rossa é uma expressão italiana internacionalizada, alusiva a um material de cor vermelha, composto essencialmente por argila e óxido de ferro, resultante do processo de dissolução das rochas carbonatadas pelas águas pluviais carregadas de dióxido de carbono.

A argila é componente essencial ou subordinado de algumas rochas sedimentares (arenitos de cimento argiloso, calcários argilosos e margas), de diversos xistos argilosos e da ardósia (já no domínio das rochas metamórficas) e está quase sempre presente nos solos e em muitas rochas alteradas (saibros). Quando dizemos que uma rocha ou um solo contém argila, queremos dizer que, na sua composição, estão geralmente presentes um, dois ou três dos citados argilominerais que, na grande maioria, resultam da alteração dos feldspatos das rochas, como granitos, gnaisses, sienitos, dioritos, gabros, basaltos e muitas outras.

Na maior parte dos casos, os argilitos entendidos como rochas sedimentares, resultam, via de regra, de uma sedimentação detrítica de argilominerais e outros (com destaque para quartzo, feldspato e micas) finamente pulverizados (à atrás dita dimensão nanométrica, no geral, inferiores a 0,004 mm), posteriormente transportados até ao local de sedimentação. No âmbito petrográfico são considerados argilitos terrígenos, detríticos ou herdadosque, podem sofrer transformações, em função dos ambientes geológicos a que forem submetidos. 

Fala-se de argilas de alteração meteórica, relativamente às que formam a capa de meteorização superficial, exercida sobre rochas ricas em feldspatos (gabro, basalto, sienito e outras) e também sobre rochas argilosas como xistos e ardósia. São consideradas argilas de alteração deutérica, (do grego deuterós, ulterior, secundário), as geradas no subsolo, por efeito de águas muito quentes (hidrotermais), ascendentes, residuais do magmatismo, bem como dos vapores e dos voláteis associados, e de águas meteóricas penetradas na crosta e, aí, aquecidas por efeito do grau geotérmico. O qualificativo deutérico, sinónimo de hipogénico (origem profunda, do grego hipo- inferior, no sentido de por debaixo, e genesis, origem), alude à posterioridade dos minerais resultantes desse tipo de alteração, secundários relativamente aos minerais da rocha magmática, entendidos como primários. 

Existem outras acumulações de argilominerais, cuja génese tem lugar no próprio local, por síntese, a partir de substâncias em solução nas águas. São as argilas de neoformação, com muito pouca expressão geológica, mas com grande significado nos solos actuais.

Face ao que se conhece sobre a génese dos argilominerais nos diferentes sistemas bioclimáticos, eles permitem, como nenhum outro componente mineral dos sedimentos e como se disse atrás, inferir reconstituições paleoambientais do maior interesse em geologia.

 

Etiquetas:

9.11.24

Grande Angular- A democracia também é de direita

Por António Barreto

É um dos piores erros de alguns democratas, de muitos europeus e de quase toda a esquerda: a ideia de que a democracia é a virtude e a bondade, a correcção e a humanidade. Noutras palavras, a democracia é de esquerda. Esta ideia é acompanhada do seu reverso: a direita é antidemocrata, autoritária, racista, xenófoba, boçal e violenta. Zelar pelos outros, ser solidário e respeitar os valores humanos é de esquerda e democrático. Explorar os outros, dominar e agredir é de direita e, por conseguinte, não democrático ou antidemocrático. Esta crença é muito mais generalizada do que parece. As reacções à vitória de Trump, assim como, por exemplo, às de Bolsonaro, explicam-se em grande parte por esta convicção.

 

As frases mais ouvidas nestes tempos são inquietantes. Vêm aí catástrofes. Começaram as trevas. O fascismo outra vez. A democracia entre parêntesis. Tudo o que Trump e os Republicanos americanos se preparam para fazer é violento, desumano e fascista! Numa palavra, de direita. Noutra palavra: antidemocrático. Estes exemplos da ladainha democrática, europeia e de esquerdas são poucos comparados com os que lemos e ouvimos de manhã à noite nos jornais e nas televisões.

 

É assim que a esquerda se engana. Que a esquerda perde. Que a esquerda não vê os seus próprios erros. Como é assim que os europeus e os democratas perdem. A começar pelo facto de que esses erros não são falta de inteligência, de cultura e de conhecimentos históricos. Não! Esses erros têm origem nas suas próprias faltas. Incapazes de perceber os maus resultados dos caminhos que percorrem, europeus, democratas e esquerdas sofrem dessa miopia diante da América e de Trump. Como sempre, reagem acossados pelo medo. “Vem aí a extrema-direita, é preciso evitar os fascistas”. Com ainda esta ideia sinistra: se é da direita, é antidemocrático.

 

É infantil não perceber que a direita também pode ser democrática. Que a democracia também pode ser de direita. Que a democracia também pode ser cúmplice da exploração, do racismo, da xenofobia e do machismo. Tal como, aliás, a esquerda pode ser racista, xenófoba, machista e exploradora. Ambas podem ser imperialistas e belicistas. O que distingue as democracias (mais ou menos social, mais ou menos cristã, mais ou menos liberal…) são os valores políticos e sociais, são as políticas, não as regras de base democráticas: eleições livres e regulares, uma pessoa um voto, liberdade de expressão e de associação, independência da justiça e a regra de ouro da democracia “quem vence governa e respeita quem perde”. 

 

Na Europa e na América, é evidente a decadência da democracia, dos costumes políticos e da honradez nos serviços públicos. É constante a utilização das piores receitas para a actividade política: a propaganda, a mentira, a covardia, a ganância e a corrupção. Toda a gente parece de acordo com a ideia de que “a política se está a afastar perigosamente da população”. Daí a consequência: em vez de mudar a política, o que é preciso, dizem, é “aproximar a política dos cidadãos”, noutras palavras, mentir mais, fazer mais propaganda, esconder as verdades, pagar tudo e todos, corromper e prevaricar, comprar votos e consciências. Algumas esquerdas radicais e sobretudo as direitas perceberam isso. Tomam balanço nessas observações. E vociferam com toda a legitimidade aparente: limpeza, vontade do povo, pureza de intenções e grandeza da pátria. E acrescentam a luta contra os estrangeiros, todos os estrangeiros, os capitalistas internacionais, os grandes rivais do comércio e da indústria e os trabalhadores imigrantes. A este rosário de justas lutas, some-se a nação, a religião e a rejeição dos combates de cariz anti-fracturante que as democracias têm promovido: a escolha de género, a eutanásia, o aborto, o laicismo e a miscigenação. O que resulta destas promessas nem Deus sabe. Mas servem brilhantemente como alavancas eleitorais e políticas. Como se vê.

 

Em poucas palavras. Os erros das esquerdas, dos europeus e das democracias são fontes do êxito destas direitas. Trump e os seus amigos pertencem à democracia e usam a democracia, mesmo se pretendem capturá-la e provavelmente diminui-la. Mas são consequência e sobram da democracia e das suas faltas. Pode lamentar-se, mas Trump é também a democracia. Como Bolsonaro e Milei. Sabemos que Trump é um risco e uma ameaça para a democracia, tal como, em seu tempo e em seu sítio, a esquerda. Mas não se admite que esta espécie de severidade não sirva também quando se trata de ameaças contra a democracia vindas das esquerdas, de regimes e de governos antidemocráticos, antieuropeus e antiamericanos, como sejam os Russos, os Iranianos, os Norte-coreanos e os Venezuelanos de Chávez e Maduro, assim como do Hamas e do Hezbollah.

 

É possível usar a democracia contra a democracia. É provavelmente o que Trump fará ou tentará fazer. É o que fazem ou fizeram Bolsonaro, Berlusconi, Orban, Maduro e Netanyahu. É o que fazem os “ditadores eleitos” de África, da Ásia e da América Latina, em países com instituições fracas.

 

Identificar a democracia com a esquerda e estas com a bondade e a humanidade é o mais miserável erro de pensamento político que se pode imaginar. Impede de pensar e de compreender. Dispensa a argumentação. Quem assim se comporta ajuda as autocracias de todo o mundo. Estimula as direitas. 

 

Trump é narcisista e vaidoso. Boçal e ordinário. Autoritário a caprichoso. Ameaça a democracia. Promete comportamentos odiosos com alguns imigrantes, certos estrangeiros, parte das mulheres, uns tantos intelectuais e bom número de artistas. Tudo isso é certo e provável. Mas não deixa de ser eleito pela democracia, com a ajuda das forças democráticas, apoiado em instituições democráticas e ao abrigo de uma Constituição democrática. Trump não foi eleito por fascistas, robots, extraterrestres e fantasmas. Foi eleito por milhões de americanos de todas as cores e feitios, de todos os sexos, de todas as profissões, de todas as regiões e de todos os credos. Era bom que os europeus e as esquerdas percebessem que foi eleito pelo povo americano.

 

É provável que as esquerdas democráticas estejam a viver um dos seus mais negros períodos desde há mais de meio século. É possível que a democracia esteja a viver uma das piores ameaças desde há décadas. Verdade. Mas se os democratas e as esquerdas não percebem as suas culpas e as suas responsabilidades no processo, então é melhor prepararmo-nos para períodos ainda piores.

.

Público, 9.11.2024

Etiquetas:

7.11.24

ESTUQUE


A imagem, colhida na net, mostra um estuque no Palácio da Bolsa do Porto
Por A. M. Galopim de Carvalho

Uma das utilizações do gesso, a um tempo técnica e artística, vem de longe e materializa-se no estuque, produto usado em variados tipos de ornatos relevados, em tectos, paredes interiores e exteriores. 

 

De uso milenar nas civilizações mediterrâneas, o estuque (do italiano “stucchi”, com o significando de relevo ornamental), na sua versão antiga ou tradicional, era constituído essencialmente pela junção de uma argamassa branca ou polícroma de “gesso-de-Paris” com uma de “cal aérea”, sendo esta usada como um aditivo retardador de uma secagem demasiadamente rápida. 

Esclareça-se que a antiga expressão “gesso-de-Paris”, hoje obsoleta entre nós, refere o produto industrial, o pó branco com que no hospital se imobiliza um braço ou uma perna partida e que podemos comprar na drogaria para tapar uma irregularidade na parede. Diga-se que o eventual colorido das argamassas era obtido pela adição de pigmentos minerais (ocres, terra de Siena e outros) e recorde-se que o adjectivo aérea, colado à palavra cal, informa que o endurecimento desta tem lugar por efeito do dióxido de carbono do ar atmosférico, segundo a equação:

Ca(OH)2 + CO2 → CaCO3 + H2O.

O estuque, que integra os actuais produtos usados na construção civil, como revestimento em interiores, principalmente tectos e ornamentos executados em relevo, é uma argamassa branca ou polícroma (pela adição de pigmentos minerais) em cuja composição pode entrar gesso, cal, areia fina e pó de mármore.

 

Com notável desenvolvimento no passado, a estucagem, segundo os preceitos tradicionais, afirmou-se, em especial, no século XVIII, como um ramo artístico do sector da construção civil, associado à arquitectura. 

O gesso foi a matéria-prima da argamassa mais antiga, aplicada como ligante, nas alvenarias, por babilónios e egípcios, há mais de 4000 anos. Uma argamassa, acrescente-se, própria de ambientes secos, como acontece em regiões marcadas pela aridez, uma vez que se deteriora, se exposta à humidade atmosférica. 

A estucagem de paredes interiores e a reprodução de máscaras funerárias, no Egipto antigo, testemunham o elevado nível dos estucadores de então. Daqui e ao longo da Antiguidade, a técnica alastrou aos gregos e romanos. A título de curiosidade, diga-se que, em Roma, o célebre arquitecto Marcus Vitruvius Pollio (século I a.C.), na sua monumental obra “De Arquitectura”, explicou o processo de obtenção do estuque. 

Também os árabes foram mestres na estucagem, aperfeiçoando-a no revestimento e decoração dos interiores dos edifícios mais nobres. Entre os séculos VIII e XV, desenvolveram na Península Ibérica uma arte de decorar grandes espaços, num complexo rendilhado de elementos geométricos e abstractos de que são exemplo os interiores e outros espaços do monumental Alhambra de Granada. 

 

A estucagem esteve praticamente ausente na arquitectura religiosa e civil do Românico e do Gótico, na Idade Média europeia, tendo ressurgido timidamente no Renascimento italiano, com emolduração de pinturas a fresco, e atingindo o seu máximo esplendor em finais do Barroco, na segunda metade do século XVIII, com as minuciosas e aprimoradas ornamentações do Rococó. Já bem dentro do século XIX, o estuque acompanhou a maleabilidade do Romantismo, apelando a revivalismos mouriscos (estilo neoárabe). Com o advento do Neoclássico, esta arte ganhou grande desenvolvimento em sancas, molduras e adornos em relevo de complexos e delicados desenhos e, no final desse século, acompanhou as chamadas Arte Nova e Arte Déco, como meio de concretização da fantasia criadora do ser humano, testemunhando, uma vez mais, a aptidão decorativa desta argamassa.

No decorrer do século XX, o estuque perdeu definitivamente o papel de relevo que teve nas épocas do Barroco e do Rococó, restringindo-se a pequenas molduras e frisos decorativos, além das sempre utilizadas superfícies planas de paredes e tectos. A progressiva industrialização da construção civil marcou, por assim dizer, o fim do estuque ornamental. Porém, o estuque continua a servir na feitura de sancas e molduras, bem como no revestimento de paredes ou tectos, corrigindo imperfeições. Uma vez concluído o reboco, continua na ordem do dia, muitas vezes, a cargo dos pintores. Nos dias de hoje, a estucagem de paredes usa a técnica do chamado “estuque projectado”, à semelhança da tradicional pintura à pistola.

Entre os exemplos mais significativos da aplicação desta arte no nosso país, citam-se, no século XVI, os estuques da igreja do Espírito Santo e os da capela e refeitório da Universidade, em Évora.

Após o terramoto de 1755, o Marquês de Pombal encarregou o jovem estucador italiano, João Gross (1715-1780), de proceder ao restauro e melhoramento do tecto da Igreja dos Mártires, no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, e no palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras. Acrescente-se que Gross foi professor da “Aula de Estuque e Desenho”, então criada, em 1764, na Fábrica das Sedas.

Os estuques mouriscos dos palácios de Monserrate e da Pena, em Sintra, e os do salão nobre da Bolsa de Porto, todos do século XX, e do palácio Alverca, mais conhecido por Casa do Alentejo, em Lisboa, de começos do século XX (1919), são bons exemplos do Revivalismo em Portugal.


Etiquetas:

2.11.24

Grande Angular - Cenas menores e causas maiores

Por António Barreto

O orçamento está aprovado. Mais ou menos. O essencial está feito. Nem o governo, nem o PS, podem voltar atrás, esquecer o dito e fazer exigências. Ambos garantiram aos eleitores que estavam de boa fé. Nenhum pode agora inventar questões. Já se sabe que vão tentar, na especialidade, mostrar ao bom povo que foram eles que deram, aumentaram, duplicaram, abateram e subsidiaram. Irão mesmo até ao ponto de tornar impossíveis certas disposições na especialidade e introduzir outras. Mas o essencial está feito, o resto é coreografia. As responsabilidades de cada um são claras. Quem voltar atrás com a palavra dada será vítima de castigo do eleitorado.

 

Não há que contrariar. O que os dois fizeram, governo e primeiro partido da oposição, merece aplauso e nota alta. Podendo perder alguma coisa, podem também ganhar. Parece certo que os eleitores, em proporções consideráveis, seguramente maioritárias, ficariam zangados se não houvesse resolução deste problema orçamental e regozijar-se-iam com uma aprovação. Mesmo se sem entusiasmo, mesmo se sem causas ou horizontes, mesmo se sem plano e estratégia, os cidadãos preferem assim. Não se trata só de uma percepção superficial. É vantajoso que assim seja. Quem fica fora desta aprovação conta pouco. Os partidos de esquerda de causa e ideologia, PCP, Bloco, Livre e PAN contam tão pouco para a maioria do eleitorado, pouco mais de 10%, que é mais ou menos indiferente que aprovem ou não. No centro direita, a IL, com menos de 5%, não pesa. São todos partidos importantes, mas não constituem massa crítica de relevo. Já com o partido Chega, as coisas são diferentes. Os seus 18% e os mais de 1 milhão e 100 mil eleitores são argumentos sérios. É destituído de ideias e programas, mas o seu vozeirão desordenado e demagógico tem eco junto de muita gente. Na verdade, o partido não ajuda nem ensina, não forma nem contribui, apenas traduz a desordem das ideias e dos pensamentos. O problema é que este partido quer entrar para perturbar e abrir crise, ou ficar fora para abrir crise e perturbar.

 

Assim sendo, convocar novas eleições seria acto nefasto para a democracia. Seria gesto de enfraquecimento adicional de um país em dificuldades numa Europa perturbada e num mundo a viver com ansiedade. Ninguém, a não ser as minorias de causas ideológicas, perceberia que, por razões menores, fictícias ou superficiais, se dissolvesse o Parlamento, se convocassem eleições e se tentasse, provavelmente sem resultados, novas soluções. Os dois partidos que resolveram a questão, mesmo se a contragosto e com mau jeito, fizeram bem e merecem aplauso.

 

Convém recuar um pouco para ter melhor perspectiva. O orçamento é uma folha de mercearia. Ou lista de compras de supermercado. Não é um plano, uma estratégia, um programa. Além do mais, este orçamento é uma folha de benesses e benefícios. Há descontos, isenções, aumentos, reduções, alívios, subvenções e privilégios para muita gente. O que essencialmente distingue os dois principais partidos é o elenco de beneficiários, mais para uns do que para outros, mais para outros do que para uns. Mesmo quando se toca na estrutura fiscal, nas taxas, nos escalões, nas isenções e nos benefícios, a diferença entre os dois partidos, que eles próprios sobrevalorizam, é de menor importância e de redúzios efeitos. Na verdade, a luta de classes, a alternativa política e a oposição programática não residem nem se resolvem com o orçamento do Estado.

 

É pena que assim seja, mas é assim. O rol de mercearia e a lista de compras destinam-se a aguentar o barco, a tratar da tesouraria, a pagar dividas e a respeitar compromissos, não servem para reformar, investir, relançar, programar, orientar e planear. Sabe-se que estas últimas são necessidades prementes, mas não é aqui, no orçamento, que se resolvem. Algo parecido com um plano a três, cinco ou dez anos seria mais adequado às urgências nacionais. Um programa dito de “grandes opções”ou de “estratégia de desenvolvimento” seria bem mais necessário, mais importante, eventualmente mais fracturante politicamente, mas muito mais urgente, até porque só produziria efeitos a dez ou vinte anos. Certamente que um plano destes exigiria muito mais trabalho de convergência partidária, no caso de não haver alianças ou maiorias. Mas esse é o trabalho que se pede aos partidos, da situação ou da oposição. É sinistra a ideia de que o eleitorado quer e exige oposição e berraria. A primeira necessidade é a da convergência e do entendimento. Só se tal se verificar impossível é que as almas, os corações e as cabeças preferem contestação

 

Verdade é que a vida económica e social de Portugal, nas últimas décadas, oferece alguns bons resultados e motivos para satisfação. Nas áreas das contas públicas, do endividamento, do emprego, da actividade turística e das exportações, há resultados à vista, fonte de contentamento. Mas temos de verificar também que no crescimento económico, nos rendimentos das famílias, na produtividade e nos níveis de rendimento, Portugal tem um comportamento medíocre. Pior ainda: é dos piores da União Europeia e não consegue recuperar atrasos. Há mais de vinte anos que Portugal marca passo e se deixou ultrapassar por quase todos os países com os quais se compara. Há mais de vinte anos que se assiste a uma gradual degradação da qualidade e da eficiência dos grandes serviços públicos de saúde, de educação, dos transportes, da formação profissional e do atendimento geral aos cidadãos. Há mais de vinte anos que Portugal tem perdido força e qualidade nalgumas das suas mais importantes empresas, públicas ou privadas, assim como tem perdido autoridade sobre empresas estratégicas e de grandes serviços. Há vinte anos que Portugal vive prisioneiro da emigração dos seus cidadãos, sobretudo os mais jovens, para a Europa e o resto do mundo, ao mesmo tempo que depende da imigração de trabalhadores desqualificados com os mais baixos rendimentos e salários de toda a Europa ocidental.

 

Ao lado disto tudo, o orçamento é milho miúdo. As cenas políticas a que assistimos nestes últimos dias são, do ponto de vista do que é essencial e urgente, patéticas. Serviram tão só para que não se pense mal dos dois partidos. Para que o governo não perca a face. E para que o PS não fique com o ónus de ter colaborado com o governo e não ter sido uma verdadeira oposição. Coisas menores de actores secundários.

.

Público, 2.11.2024

Etiquetas: