31.5.25

Grande Angular - Temos governo

Por António Barreto

Até quando? Há vários governos possíveis. Basta fazer as contas. PSD com Chega. PSD com Chega e IL; PSD com PS; PSD com PS e IL. Estes são os maioritários possíveis. Não necessariamente prováveis. Depois, há os impossíveis, também maioritários: dos três grandes partidos, à maneira de “governo nacional”, aos enfeitados com acrescentos de esquerda ou direita. Mas há ainda o minoritário, o mais provável, nas actuais circunstâncias, do PSD. O governo minoritário é erro de palmatória. Mas vai ser muito difícil evitá-lo.

 

O destino de um governo minoritário é sempre o mesmo: fazer coisas boas para crescer o mais possível até chegarem as eleições antecipadas, inevitáveis como as estações do ano. Nesse sentido, a formação deste governo, agora anunciada com a indigitação do Primeiro-ministro, terá como missão exactamente essa: distribuir, agradar e, dentro de um ano ou pouco mais, chamar novas eleições. A não ser que um dos partidos de oposição entenda manter-se assim durante vários anos e deixar governar a minoria. Isto faz com que o governo minoritário, qualquer que ele seja, será sempre provisório, à espera da primeira oportunidade para recomeçar a dança eleitoral. É possível que haja governos minoritários “bons”, isto é, que façam obra e que acudam ao mais urgente. É possível. Já aconteceu. Mas têm o destino marcado. Vivem sob pressão e chantagem. Acabam cedo ou mal. Caem ou são derrubados. Têm como principal missão a de serem reeleitos e aumentarem a votação. Raramente conseguem tal desejo. Mas quase nunca governam de modo a deixar marcas e projectos.

 

Que diabo aconteceu em Portugal, que bicho mordeu aos portugueses, que têm uma fatal inclinação para governos minoritários? É uma doença infantil da democracia, que faz da política um jogo complexo das mentes brilhantes. Ou um puzzle lúdico próprio de iluminados. O jogo político é mais importante do que governar bem, ser eficiente e estar atento. Merece mais esforço do que lutar contra as desigualdades, combater a injustiça e diminuir a ignorância. Exige mais acção do que gerir bons serviços públicos, criar riqueza e promover a ciência. É uma arte complexa, com pós-graduação em minas e armadilhas, doutoramento em coreografia e mestrado em moeda falsa.

 

“Ganhar eleições” é uma expressão simples, mas traiçoeira. Entre nós, quer simplesmente dizer “ter mais votos”. “Vir em primeiro lugar” é outra maneira de o dizer. Por outras palavras, governa quem ganha eleições. É o princípio de base da democracia. O problema é que essa compreensão é perversa. Ganhar eleições pode não querer dizer governar ou formar governo, dado que este tem, depois, de ter a maioria no parlamento. Já tivemos disso. Pode até acontecer que o segundo partido consiga, no Parlamento, ter mais votos, seja para chumbar o primeiro, seja para formar governo com aliados. Também já tivemos disso. Na verdade, é esta a noção mais interessante: ganha eleições quem tem mais votos ou suficientes para formar governo e aprovar leis. Sozinho ou acompanhado.

 

Ainda não estavam contados, nas últimas eleições, todos os votos e já os analistas e activistas faziam contas, sempre com objectivos em mente: como garantir um governo minoritário? Como fazer tropeçar os outros partidos? Como enganar os rivais? A ideia abstrusa de governo minoritário está tão profundamente enraizada que já faz parte da gíria garantir que um governo maioritário é negativo, que uma maioria parlamentar é condenável e que essas são soluções que promovem o autoritarismo.

 

Evidentemente, um dirigente partidário quer a maioria para si e para o seu partido. Desde que seja só sua. Condena a dos outros, festeja a sua. Mas tem de ser sozinha. Isto é, nem pensar em alianças pré-eleitorais (a não ser para criar ilusões, como a AD ou a CDU), nem em coligações parlamentares pós-eleitorais. O partido mais votado que pretende uma coligação de governo dá um sinal de fraqueza. Os partidos menos votados que sugerem coligações dão “parte de fracos”.

 

Que pretende o governo minoritário do PSD? Salvar Portugal, desenvolver o país, melhorar a igualdade, dar oportunidades a todos e aos jovens em especial e realizar grandes projectos de futuro. Isto é o que diz. Banalidade no estado puro. Mas não perde tempo a preparar os instrumentos, as alianças, os acordos e as maiorias parlamentares necessárias. Vencidas umas eleições, o partido que as ganhou (com minoria parlamentar) nem pensa dois segundos na necessidade de ser maioritário, de ter apoio parlamentar durável e coerente e de efectuar uma aliança que lhe dê os meios necessários para realizar os seus maravilhosos planos. Não. O que é preciso é tomar posse, nomear, gastar e distribuir. 

 

Tudo o que precede alimenta a lenda do governo minoritário. Mais a obsessão em não associar outros partidos ao governo. Mas hoje, há também outros argumentos que se pretendem sofisticados. Fazer alianças ou coligações e construir maiorias parlamentares duráveis são actos negativos e prejudiciais. Nem se percebe muito bem porquê, mas é a realidade. Hoje, ganhar as eleições é sinónimo de ter mais votos. Mas deveria ser formar governo aceite pelo Parlamento. A não necessidade de aprovar o governo é uma das maiores perversões do sistema e da cultura política nacional.

 

Nos dias que correm, há ameaças no ar. As eleições não deram indiscutível vencedor. Não forjaram maioria. As presidenciais que se avizinham já provocam medo. As crises internacionais também. Por isso há fantasmas. Receio da fragmentação política e partidária? Medo da instabilidade? Pavor de novas eleições? Temor do crescimento do Chega e de outros movimentos radicais? Tudo isso se combate de várias maneiras, mas uma é, em todo o caso, indispensável: o governo de maioria parlamentar. A acção persistente que cria emprego. A estabilidade que permite o trabalho continuado. A serenidade indispensável para as mais ousadas reformas, como a da justiça. E outras virtudes que só se conseguem com maioria parlamentar, com tempo e com a “força tranquila”.

 

Os governos minoritários, tão do agrado dos portugueses, são as condições da ineficácia e da impotência. Proponha o PSD uma coligação ao PS e verá o valor dessa pedagogia. Aceite o PS um convite do PSD para formar governo e verá o serviço prestado ao país. Deixem o PSD e o PS continuar a vegetar nos pântanos da minoria e ver-se-á o mal que fazem ao país. Verão também o impulso que darão ao Chega para continuar a sua marcha triunfal.

 

Temos governo. A sério?

.

Público, 31.5.2025

Etiquetas:

24.5.25

Grande Angular - Uma boa revisão é útil e necessária

Por António Barreto

Em resultado das eleições, a revisão da Constituição transformou-se naturalmente em assunto importante e imediato. As maiorias possíveis são diferentes de tudo o que se conhecia do passado. Há hoje uma maioria de direita que dispensa os socialistas. Há também uma maioria do centro que dispensa o Chega. Isto faz com que o assunto se tenha tornado interessante, quase picante. Mas a discussão em curso limita-se aos aspectos anedóticos, às lutas de capoeira, à coreografia e ao adjectivo. O que sobressai é saber “com quem” e “quem se quer diminuir”. O que anima a conversa é saber “contra quem se faz a revisão”. É pena. A discussão deveria começar com o “quê”, antes do “com quem”. A revisão deveria fazer-se a favor dos cidadãos e do país.

 

A Constituição é absurdamente mal escrita, inconstante, incoerente, contraditória, exuberantemente ignorante, inutilmente complexa, demasiado longa… Todavia, foi um milagre. E salvou a democracia. Não é pouco.

 

Vivemos com tantas coisas estúpidas que podemos certamente viver mais uns anos com esta Constituição. Traduz concepções paternalistas, directivas, autoritárias e elitistas das sociedades, dos cidadãos, dos poderes e da democracia, mas a verdade é que nos ajudou ou permitiu viver até hoje. Nem sempre bem, muitas vezes mal, mas em paz. Já não é pouco.

 

Discute-se agora a nova hipótese de revisão. Não pelos bons motivos. Uns porque querem mandar ou matar o regime. Outros porque pretendem defender o estado actual. Uns porque desejam mostrar que ganharam as eleições. Outros porque não querem reconhecer que as perderam. Mas a verdade é que há boas razões para o fazer. Há muitos anos que essas razões existem.

 

Há matérias que necessitam mesmo de revisão constitucional. Ou para fazer melhor do que lá está, ou para permitir evolução. Toda a matéria relativa à Administração Pública, à descentralização, aos órgãos regionais e à regionalização (ou região administrativa) deveria ser revista e actualizada. E sobretudo dever-se-ia permitir que as sucessivas gerações de cidadãos tenham o direito e a competência para decidir gradualmente como entenderem. O actual carácter imperioso é errado, como se tem visto. A necessidade de criar regiões em simultâneo é infantil e autoritária. O pior é o que temos: está na Constituição, mas não existe e não se respeita.

 

De igual modo, o poder popular a exercer sob a forma de referendos e iniciativas populares exige clarificação, sem o que são inutilidades que servem para pouco. Os constituintes portugueses, quer dizer, os partidos, sempre temeram estas formas de exercício de poder. Se assim for, a solução seria retirá-las definitivamente da Constituição. Mas o melhor é dar-lhes significado e função à altura. Por exemplo, alargar o elenco das matérias referendáveis. E reforçar o seu poder vinculativo.

 

O sistema judicial deveria também ser revisto. São mais de vinte artigos a pedir um reexame, além de outros, sobre deveres e direitos, por exemplo, com implicações na justiça. É esta talvez a mais importante das necessidades de revisão. Esta deveria ser precedida de debate, promovido pelos deputados, pelos órgãos de soberania, pelas magistraturas, pela academia e pelas associações. Há inúmeros capítulos e temas a necessitar de revisão: direitos e deveres dos cidadãos e sua tutela; direitos e deveres dos magistrados e dos tribunais; questões de funcionamento, como por exemplo as dos prazos, do segredo de justiça, dos deveres funcionais e dos recursos. Além das relações entre os órgãos de soberania (Parlamento, Presidente e Governo) e órgãos judiciais.

 

Também seria importante rever e apurar questões de funcionamento dos órgãos de soberania, como por exemplo a necessidade de aprovação, pelo Parlamento, dos governos e dos seus programas, assim como a aprovação, pelos deputados, das mais importantes nomeações de altos funcionários. Uma parte da instabilidade política nacional, sobretudo actual, resulta do dispositivo constitucional que promove governos minoritários.

 

Igualmente interessante seria rever certos aspectos do sistema eleitoral, como o alargamento das eleições individuais e uninominais, além das candidaturas independentes.

 

Uma boa revisão é útil pelos seus próprios termos, pelo seu conteúdo, não pela capacidade de fomentar a luta de armadilhas. Uma boa revisão afasta do horizonte o mito da revisão profunda e excessiva. Limpa repetições, erros e incongruências. Na verdade, há muitas matérias que deveriam estar contempladas na lei, mesmo se com necessidades de votos reforçados, mas cuja residência na Constituição acaba por ser uma diminuição dos poderes dos cidadãos de cada geração.

 

Além de útil e de melhorar a nossa vida colectiva, dando mais responsabilidade aos cidadãos e aos seus representantes, uma boa revisão afasta a revisão rancorosa e a mudança de regime.

 

Quanto mais a Constituição for fechada e conservadora, maior será a sua vulnerabilidade. Imutável, a Constituição convida a que se faça uma nova. Feita nas condições em que o foi em Portugal, sob pressão, dependendo das circunstâncias e do curto prazo, moldada por interesses menores e ocasionais, a nossa Constituição deveria ser mutável, poder evoluir. Com tantos pormenores mesquinhos e inúteis, esta Constituição, para manter o que tem de mais importante, precisa de ser flexível e adaptável ao nosso tempo.

 

A revisão pode ser levada a cabo com vários partidos, com todos ou quase todos. Há várias maiorias possíveis. Ao contrário do que alguns pretendem, a melhor revisão seria aquela que consegue mais vasto apoio, mesmo se sabemos que, na maior parte dos casos, isso não será possível. Mas é bom que seja tentado. É bom que os cidadãos percebam que os partidos fizeram os possíveis. É bom que os cidadãos percebam que os partidos não se limitaram a coreografias ridículas de culpabilização ou de humilhação do outro. Muito especialmente, seria excelente que a revisão fosse um verdadeiro e exemplar debate nacional. Tanto quanto o resultado, a revisão seria boa pelo processo que a ela leva. A participação de muita gente que não sejam os habituais profissionais da política só será útil. A academia, as profissões, as autarquias, as empresas, os sindicatos e os intelectuais dariam seguramente um contributo valioso e talvez mesmo criativo. Uma boa revisão afasta uma má revisão.

-

Público, 24.5.2025

Etiquetas:

20.5.25

NO AUGE DA CRISE


Por A. M. Galopim de Carvalho

Julgo ser evidente que Portugal atravessa uma deplorável crise, não do foro económico, financeiro ou social, mas dos partidos políticos e dos seus protagonismos na condução da vida nacional. Uma crise de valores sem precedentes, deveras preocupante que, salvo meia dúzia de excepções, bateu no fundo, e isso ficou bem claro na pobreza desta corrida ao poder que ontem teve fim. Sou um geólogo e a minha cultura social e política resume-se ao que tenho aprendido na vivência atenta do dia-a-dia. Bom ou não, é este o meu sentir que, como sempre, divulgo como dever de cidadania, honesta e humildemente.

Sempre procurei pensar pela minha cabeça, na convicção de que a política partidária é uma habilidade para manusear conhecimentos do foro das ciências políticas e sociais, tendo em vista a conquista do poder. Dito isto e para que não restem dúvidas, reafirmo que sempre estive ao lado dos explorados e ofendidos, contra os exploradores e ofensores.

Todos os que os que não andam distraídos, e são muitos, têm vindo a dizer e eu também digo que, no tempo que estamos a viver, paira grande insegurança a nível internacional, não só no que respeita a economia, com inevitável reflexo na vida nacional, como também no que envolve o espectro da guerra e a corrida aos armamentos, com todas as consequências e sofrimentos daí decorrentes.

À semelhança do que se passou com a Primeira República, a classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há meio século, generosa, honradamente e de “mão beijada” entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se completamente de facultar aos cidadãos cultura civilizacional necessária na sociedade que se quer democrática. Esqueceu-se ou não quis. Há uma máxima que diz que “o poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais”, máxima que é fácil entender como uma metáfora do que tem sido a nossa democracia.

Já escrevi o essencial destas minhas palavras não sei quantas vezes, mas sei que não foram as suficientes. Também já disse e volto a dizer que, entre os sectores da vida nacional que nada beneficiaram com esta abertura à liberdade e à democracia está a educação. E, aqui, a escola falhou completamente. Uma escola que tem vindo e continua a dar diplomas, mas que não deu e continua a não dar cultura no sentido mais amplo da palavra.

 

Nesta “apagada e vil tristeza”, uma muito significativa parcela do nosso povo, destituído dessa cultura, foi presa fácil do populismo da extrema-direita. Uma extrema-direita que, beneficiando da liberdade e democracia que tanto custaram a ganhar, já mostrou, sobejamente, procurar destruí-las e voltar ao “antigamente”.

 

Tudo isto são gravíssimas preocupações nacionais, a que se adicionam as das áreas da saúde, da habitação, da justiça e outras. Preocupações que, tendo em conta as condicionantes nacionais e internacionais, socialistas e sociais-democratas, cujos fundamentos que os inspiraram não estão, assim, tão afastados, tinham obrigação de se ter entendido, a bem deste, deste sempre, maltratado povo. Os seus actuais protagonistas mostraram não terem sabedoria ou vontade para o fazer, pelo que há que encontrar, entre os seus correligionários, quem o possa fazer. Chame-se Bloco Central ou outra coisa qualquer, mas é, no tempo que estamos a viver, em que as esquerdas se têm vindo a autodestruir, o único caminho a seguir.

 

Quem me conhece e tem acompanhado as minhas intervenções e tomadas de posição públicas, sabe, volto a dizer, da minha independência face aos aparelhos partidários e não espera de mim outro pensamento que não seja este.

Etiquetas:

19.5.25

No "Correio de Lagos" de Abril de 2025

 

Etiquetas: ,

17.5.25

Grande Angular - Lembretes

Por António Barreto

Os movimentos Hamas, Hezbollah, Estado Islâmico ou Daesh, Hutis e outros grupos terroristas, assim como alguns Estados da região, seguramente o Irão e parte do Iémen, declaram expressamente que lutam pela liquidação do Estado de Israel e pela expulsão dos Judeus ou Israelitas da região. Nunca o esconderam. Nunca usaram subterfúgios ou metáforas. Por isso Israel tem todo o direito e dever de lutar pela sua vida e pela sobrevivência. Após as agressões de 7 de Outubro de 2023, Israel decidiu justamente retaliar. Tratava-se de punir os agressores, recuperar os reféns e sobretudo derrotar o Hamas. Ao fazê-lo, Israel decidiu também agredir apoiantes do Hamas, seja o Líbano e o Irão, seja o Iémen e a Síria, ou ainda o Hezbollah e outros terroristas. A ofensiva israelita atingiu dimensões e natureza totalmente desproporcionadas, configurando mesmo uma intenção deliberada para eliminar todas as expressões políticas dos palestinianos na região, em particular na Cisjordânia e em Gaza. As cidades arrasadas e mais de 50.000 palestinianos mortos configuram um massacre de população absolutamente inaceitável que nem sequer o argumento de sobrevivência de Israel justifica. Outros meios e outras acções haveria para atingir os mesmos fins. É verdade que o Hamas e outros movimentos utilizam deliberadamente os civis, as mulheres, as crianças, os idosos, os doentes, os hospitais, as escolas e outras realidades civis para se defender, como aliás diziam Ho Chi Min e Mao Tsé-Tung ao insistir que os guerrilheiros deveriam misturar-se e viver com o povo “como peixes dentro de água”. As vítimas inocentes servem para forjar argumentos publicitários e demagógicos. Mesmo sabendo isso, a estratégia israelita de devastação é política e moralmente condenável. Israel acaba por merecer tanto apoio e solidariedade, quanto censura e condenação.

 

Que tem o governo português a dizer sobre isto tudo? Que têm os principais partidos políticos, candidatos a formar governo, a declarar? Seguir o que diz parte da União Europeia? Imitar países europeus que se calam? Tomar posição própria e autónoma? É verdade que Portugal não tem interesses na região, nem populações envolvidas de perto ou de longe. Mas poderá ter suficientes argumentos políticos, morais e humanitários para tomar posição, afirmar os seus valores e defender os seus pontos de vista autónomos. A campanha eleitoral que terminou ontem em nada ajudou a contrariar esta absurda situação. Portugal faz parte de uma civilização e de instituições internacionais de modo que adquire deveres e valores que deve respeitar. O silêncio e a abstenção não são opções.

 

Algures na Europa oriental, um país independente e consagrado pelas instituições internacionais e pela ordem política estabelecida, a Ucrânia, foi agredido e invadido, estando a ser, há mais de três anos, verdadeiramente massacrado por um país muito maior, mais forte e poderoso, a Rússia, ao arrepio de todas as regras internacionais políticas e jurídicas. Portugal, pela voz dos seus últimos governos, tomou partido pelo país ofendido, juntando-se aos europeus que apoiaram e ajudaram a Ucrânia no seu esforço de defesa. Passados três anos e mais de 400.000 mortos e feridos, continua a guerra naquela parte da Europa e há sinais fortes de enfraquecimento da Ucrânia. A Rússia recebe apoio, cumplicidade ou silêncio cordial de algumas dezenas de países do mundo, em especial de um grande número de ditaduras. A Europa e a sua União, assim como o mundo ocidental e os Estados Unidos, começam a dar sinais de desconforto perante esta guerra injusta e agressiva que ameaça o futuro da Europa e da democracia. Surgem dúvidas quanto aos caminhos para a paz e quanto às condições políticas para o futuro daqueles dois países e de toda a região. Portugal, através dos seus dois últimos governos, alinhou simplesmente no apoio que a Europa ofereceu. Evitou qualquer debate sério. Absteve-se de tomar iniciativas, se é que as podia levar a cabo. Verdade é que, mesmo sem ter originalidade ou interesses próprios, Portugal deveria estar mais informado, a opinião pública mais sensibilizada e a população mais conhecedora. Os partidos políticos mais importantes deveriam trazer este tema, que afinal é do da paz e da liberdade na Europa, ao espaço público e à possibilidade de participação da população. Não o fizeram, na convicção de que não ganhariam votos e de que os portugueses não se interessam. É pena.

 

Estes temas internacionais, ausentes da campanha eleitoral, sugerem outra questão igualmente afastada de compromissos dos principais partidos e do esclarecimento dos cidadãos: é a da defesa nacional, da despesa pública e dos investimentos militares e de segurança, do equipamento das forças armadas, do serviço militar, do recrutamento e do envolvimento da população no esforço de defesa nacional e comum europeu. Há uma espécie de covardia generalizada. Os principais partidos políticos não querem gastar dinheiro, ou pelo menos não querem dizer que têm de gastar recursos. Não aceitam publicamente que as novas realidades europeias e internacionais exijam um enorme esforço militar e de defesa, dado que a paz, a liberdade, a democracia e as independências nacionais estão em causa e são ameaçadas. Tentam calar responsabilidades e compromissos, pois entendem que a população é avessa à despesa com a defesa e adversária de qualquer alteração no serviço de recrutamento. Não encaram sequer a discussão sobre o serviço militar e cívico, pois calculam que tal lhes faça perder votos. Escondem planos e projectos de investimentos consideráveis, na renovação técnica e no desenvolvimento, pois sabem que tudo isso implica despesa e investimento. Com receio de eventuais reacções desfavoráveis, fazem os possíveis por esconder ou esquecer a necessidade de tomar decisões urgentes sobre a armada, os submarinos e a força aérea, cujas renovações são agora de extrema urgência e de muito significativas despesas. Os principais partidos políticos, candidatos a governar, fizeram tudo o que puderam para arredar este tema das consciências dos cidadãos. Não por pacifismo, mas por covardia. E por vontade clara de reservar para si, nos gabinetes e nos corredores do poder, o direito de se exprimir e de agir em consequência.

 

Sem grande esperança e com pouco optimismo, aqui ficam lembretes para discussões e debates perdidos, mas que poderão ao menos ser retomados com o novo governo e o novo parlamento. Mesmo sabendo que há animais que não aprendem.

Público, 17.5.2025

Etiquetas:

13.5.25

Petroquímica (2)




Por A. M. Galopim de Carvalho

PVC é a sigla de Polímero de Cloreto de Vinil, um tipo de plástico composto por carbono, hidrogénio e cloro, amplamente utilizado em diversas indústrias devido às suas características de durabilidade, resistência, versatilidade e à capacidade de se adaptar a diferentes necessidades e aplicações. É um material omnipresente no nosso dia-a-dia, na construção civil, em casa, nos transportes e no trabalho. É um dos plásticos mais consumidos no mundo, produzido por polimerização do monómero de cloreto de vinil, um dos muitos derivados do petróleo ou do gás natural. É uma substância durável, resistente a muitos produtos químicos, à água e à humidade, ideal para aplicações em espaços húmidos como cozinhas e casas de banho. Não é tóxico, sendo seguro para o uso humano, de serviço à cozinha, à mesa e em recipientes de produtos de higiene pessoal (frascos, bisnagas e outros recipientes). É pouco denso, fácil de trabalhar e bom isolador térmico e eléctrico. É relativamente barato, quando comparado com outros produtos e reciclável (em alguns tipos).

Produzem-se actualmente dois tipos principais de PVC, consoante os aditivos usados: 

(1) um rígido, utilizado na fabricação de tubagens para instalações industriais (químicas ou de ventilação), hidráulicas e de esgotos, perfis para portas e janelas, forros e revestimentos de paredes, caixas d'água, placas e chapas industriais, mobiliário diverso, doméstico, de escritório e hospitalar, cartões de crédito (PVC laminado); 

(2) um flexível, utilizado em produtos que exigem maleabilidade, utilizado no fabrico de mangueiras de jardim, de gás e outras, cortinas diversas, cabos e fios eléctricos revestidos, cobertura de toldos, pisos vinílicos, brinquedos (com certificação apropriada), bolsas e mochilas sintéticas, películas adesivas, capas impermeáveis para usar à chuva, bolsas e tubos para recolha de sangue, carteiras, sapatos e outros artigos de couro sintético.

Etiquetas:

10.5.25

Grande Angular - Mais uma oportunidade perdida

Por António Barreto

Como nunca, nestes cinquenta anos, as eleições e a campanha do ano corrente foram tão dirigidas para o “chefe”, o “líder”, o “cabeça” e o “primeiro”. Quase nada se sabe sobre a equipa, os colaboradores e os grupos de apoio. Pouco se conhece sobre as instituições, empresas, associações e outros grupos que se sentem mobilizados e empenhados. Mal se percebem as ideias e os programas que cada um deseja ou diz desejar para o seu país. Apenas se sabe que querem o poder. Conquistar o poder. As arruadas são procissões tristonhas de gente, por vezes paga, que seguem o que vai à frente. Só ele (ou ela) conta, só ele (ou ela) se vê, só ele (ou ela) fala, só ele (ou ela) distribui brindes e só ele (ou ela) dá entrevista. Os comícios, cada vez menos, organizam-se à volta dele (ou dela) que, no fim, dá entrevista breve às televisões, geralmente rodeado de múmias sinistras e apagadas, mesmo quando se trata de deputados e ministros. Os principais “eventos” eleitorais são almoços e jantares de carne assada, antes dos quais ele (ou ela), rodeado de carantonhas ou fantoches, desfila uns rápidos lugares-comuns. Antes dessas romarias, crucial é o debate na televisão. Entre eles (ou elas), de modo automático e programado, parecem bonecos articulados. Porque, na verdade, o que interessa são as avaliações, com notas e tudo, de dezenas de comentadores que, quase sem excepção, favorecem os seus amigos com ar sabedor e arrasam os outros com ar de desprezo.

 

É verdade que a eleição política sempre foi, sempre será, um acto de reconhecimento e identificação, para o qual a personalidade e o carácter do “líder” são essenciais. Mas que, excepto quando se trata de um “herói”, mesmo assim exige uma equipa, um programa, uma energia especial, uma preocupação fundamental, umas ideias sobre o que importa fazer e umas certezas sobre grandes princípios.

 

O desvio dos debates políticos para as contas e os impostos de cada um, para os favores prestados e as influências vendidas por cada um, é revelador disso mesmo: do esvaziamento político das eleições e da pasteurização cultural da democracia. O importante é cada vez mais o favor que se fez, a cunha que se meteu, o imposto que se evitou, o amigo que se promoveu, as influências que se exercem e os lugares que se preenchem.

 

Debates e discussões entre partidos e candidatos andam apenas à volta de um tema libidinoso: como se conquista o poder, quem o guarda, como se divide, quem o quer e quem fica sem ele.

 

Os protagonistas das eleições actuais são quase todos bem-talhados e adequados aos tempos que correm. E característicos das eleições que temos. O Chega, uma fabulosa energia de claque de futebol feita de fanatismo e de reflexos condicionados. O PSD (ou a AD), uma eficaz e sub-reptícia máquina de influências, o mais capaz de confundir clientes com eleitores. O PS, um sindicato desnorteado e sem destino, que parece ter negado o futuro, quando apenas queria esquecer o passado. A IL, de uma pureza impecável, a caminho da beatitude. O PCP, nervoso e tenaz à procura de não desaparecer da história. O Bloco, já sem graça, com o seu ar de superioridade das avenidas, de mãos nos bolsos e dogma bem oleado. O Livre, um neófito envelhecido, aparentemente imprescindível. O PAN, que quanto mais conhece os animais, mais gosta da política.

 

Que pensam estes nossos partidos, candidatos a mandar em Portugal e em nós todos, do destino da Europa, periclitante como nunca, ameaçada pela Rússia, marginalizada pela América, cobiçada por África e pelo Islão e desprezada pela China? 

 

Que pretendem eles fazer com a Justiça portuguesa, cada vez mais desorganizada e injusta?

 

Que se preparam realmente para fazer com os grandes serviços públicos ou as grandes empresas nacionais, umas miseravelmente vendidas, outras estranhamente desmanteladas, outras ainda entregues aos mais desvairados traficantes de influências?

 

O Estado português, já agora a nação portuguesa, ou o país e a sua população, se quiserem, raramente estiveram tão dependentes, tão frágeis, tão vulneráveis como hoje. Quem o diz é designado por céptico e pessimista, fanático do “bota-abaixo” e descrente da pátria. Mas é garantido que esse tem mais razão do que uma mão cheia de burocratas, de “influenciadores” e de caciques. Quem se ocupa realmente dos caminhos de ferro, dos portos, do mar e dos rios? Quem está de facto a tratar dos aeroportos e da companhia de aviões? Quem se encarrega com força e solidez da energia do futuro? Quem vai tentar voltar a dar um módico de dignidade e de autonomia, ou de afirmação do interesse nacional, nas telecomunicações, na produção e na distribuição de energia? Quem vai tentar reconstruir ou construir alternativas autónomas à energia, às telecomunicações, aos cimentos, às celuloses, à madeira, à metalurgia e a outros sectores que demonstravam, pelo menos parcialmente, alguma solidez?

 

Para além do miserável oportunismo de última hora, que entendem fazer para elaborar, pôr em prática políticas de população e de imigração necessárias para a economia, dignas de uma nação antiga e orgulhosa, próprias de uma cultura, crentes nos direitos humanos, guardadoras das liberdades e respeitadoras do sentido de humanidade?

 

Para além de distribuir subsídios, ratear subvenções, fornecer descontos e isentar de impostos, alguém tem um plano, um projecto, uma intenção, uma ideia de como se cria riqueza, como se reforça a economia, como se formam gerações de profissionais, como se criam cientistas, como se dá liberdade a empresários? 

 

É ou não verdade que a vida urbana, nas grandes cidades portuguesas, se deteriorou muito nos últimos anos, talvez últimas décadas? Que a situação na saúde e nos serviços públicos decaiu significativamente? Que o funcionamento da Justiça se danificou, parece que sem emenda? Que as oportunidades para os jovens diminuíram? Que o tráfico de pessoas e de trabalhadores aumentou sem controlo nem limites? Que os transportes públicos, sobretudo citadinos, se transformam em zona de perigo e incómodo? Que os riscos de cair na pobreza não diminuem? Alguém é capaz de negar, factos e números na mão, este declínio, este progresso adiado? Se assim é, por que razão os partidos e os candidatos não se sentem mobilizados para abandonar o “cliché” banal e o palavreado automático e para se sentirem empenhados em dar e procurar o melhor? O mais sensível? O mais sério? O mais sólido? Em vez do mais ligeiro, o mais fátuo, o mais ilusório e o mais enganador?

 

Há quem não confesse, nem sob tortura, em quem vai votar. É compreensível: não quer ser culpado.

-

Público, 10.5.2025

Etiquetas:

9.5.25

ÂMBAR




Por A. M. Galopim de Carvalho

ÂMBAR, ou resina fóssil, é também um produto de oxidação de substâncias de origem orgânica. Tem cor amarela-acastanhada ou avermelhada, é transparente e parte com fractura conchoidal, lembrando o pês. O mais antigo âmbar foi encontrado em formações do Triásico, mas conhecem-se resinas fósseis no Carbonífero e no Pérmico. As mais divulgadas são as da região do Báltico e resultaram de acumulação de resina de coníferas no Eocénico.

O âmbar do Báltico, ou succinito (do latim succinum, com idêntico significado), foi alvo do interesse dos homens do Neolítico. Temos provas da sua procura e utilização intensiva nos séculos XVI e XVII. Do seu estudo, na região da Península de Sambia, por geólogos alemães, no século XIX, quando se iniciou a sua exploração industrial, ficámos a conhecer tratar-se de um tipo particular de depósito sedimentar com cerca de 40 Ma, associado a uma vasta estrutura deltaica oriunda da Escandinávia, espalhada em leque, na parte sul do actual mar Báltico. O âmbar aqui contido nas “argilas azuis” (blue earth) encontra-se também disperso, por desmantelamento desta unidade, nos depósitos do litoral da Alemanha, Polónia, Lituânia e outros países do sul do Báltico, para onde foi transportado por acção fluvio-glaciária durante o Pleistocénico, sendo hoje também aí explorado.

A transformação diagenética da ou das resinas originais no produto fóssil envolve a perda de substâncias voláteis e processos químicos de polimerização, oxidação e outros, com participação activa e reconhecida de bactérias. Na sua composição elementar participam carbono, hidrogénio, oxigénio e enxofre em muito pequena percentagem (0,5 a 1%), elementos que, sabe-se hoje, fazem parte da macromolécula do âmbar. A dureza, na escala de Mohs, varia entre 2 e 2,5, a densidade oscila à volta de 1 (um) e o índice de refracção está compreendido entre 1,539 e 1,542. Torna-se plástico a 250ºC e funde a 287–300ºC. Estudos recentes, com utilização de espectrometria de infravermelhos, revelam grande semelhança entre esta resina fóssil e a resina actual de Cedrus asiatica. Outras investigações apontam uma certa identidade química com a resina de Agathis australis, uma araucária de grande longevidade.

Aprisionadas no succinito do Báltico foram referenciadas mais de duzentas e cinquenta espécies vegetais, como líquenes, fungos, musgos, flores e frutos diversos, sementes, pólens e esporos. Tal diversidade aponta para florestas de montanha numa latitude então subtropical a tropical, como são actualmente as das regiões montanhosas do sudeste asiático, dominadas por coníferas, as responsáveis pela anormal produção de resina que, sedimentada e afundada, evoluiu, diageneticamente, para âmbar. Várias espécies de árvores devem ter concorrido nesta produção e a elas se deu o nome colectivo de Pinus succinifera. Do reino animal são igualmente muitas as espécies preservadas no âmbar. Variadíssimos artrópodes, formigas, mosquitos, aranhas, etc., etc., e até pequenos vertebrados (lagartos) têm sido encontrados e estudados nos seus mais ínfimos pormenores, anatómicos, histológicos e genéticos.

Etiquetas:

3.5.25

Grande Angular - Um país frágil

Por António Barreto

As eleições são más conselheiras. Péssimas oportunidades. E circunstâncias ruins. Com elas à vista, perde-se rapidamente a serenidade. Revelam-se comportamentos irracionais. Mente-se com desfaçatez e sem vergonha. A presunção e o narcisismo crescem de modo quase ofensivo. Algumas das mais vis condutas humanas são exibidas em permanência diante de todos. O apagão desta semana foi bom exemplo e oferece evidência de tudo quanto precede.

 

O governo considerou exemplar o seu comportamento. Gabou-se mesmo do êxito pela ausência de vítimas (“Não houve um só morto”, disse o Primeiro ministro em momento particularmente infeliz). Os governantes e as autoridades esconderam-se e, quando apareceram, foram quase hilariantes. Um recomendou jerricans de petróleo para as maternidades. Outros sugeriram que a culpa era toda do estrangeiro, de Espanha, de França ou mais simplesmente da Europa. Não faltou quem sugerisse um ciberataque, a última ameaça da moda. Não ficou esquecida a alusão à eventual autoria russa ou muçulmana. As autoridades chegaram tarde. Não falaram a tempo e horas. A população viveu mal durante muitas horas. A ansiedade foi grande. Os prejuízos terão sido importantes, ainda não se fizeram as contas. Muitas instituições e organizações, escolas, hospitais, empresas e serviços suspenderam, diminuíram ou encerraram actividades. Milhões de pessoas viram as suas vidas, trabalho, emprego, deslocação e actividade doméstica, ameaçadas e perturbadas. Mas ao governo, não faltou a frase rainha: “Em Espanha, foi pior!”.

 

Uma parte do que aconteceu, ou não, a propósito do apagão, ficou a dever-se à campanha eleitoral e ao modo como esta suscita as paixões menores e os vícios maiores.  Mas o essencial não está aí. Se não houvesse eleições, teria acontecido muito provavelmente a mesma coisa ou quase. O problema está na fragilidade do nosso país e das nossas instituições. Faltam, estão ultrapassados, não existem, são desadequados, os sistemas de emergência, a gestão de stocks para situações excepcionais e a manutenção de reservas para tempos de guerra ou de crise.

 

A história recente está recheada de experiências e acontecimentos nos quais a imprevidência, a falta de prevenção, a ausência de substituição e de reservas e a impreparação dos serviços são as regras. Não faltam exemplos: todos os casos graves de incêndios florestais, as inundações de Lisboa e Porto, os temporais da Madeira e dos Açores, a seca no Alentejo, a falta de reservas de água em muitas regiões, certas greves (da estiva, das ambulâncias, do INEM, dos controladores, dos enfermeiros), o colapso das urgências médicas, as crises de abastecimento de cereais e combustíveis… 

 

país não está preparado. Os planos de emergência elaborados em muitos gabinetes são anedotas teóricas, burocráticas, desactualizadas, sem espírito prático, sem sentido de urgência e sem participação das populações e das autarquias. Nos piores momentos, os governos limitam-se a aparecer tarde, a tentar culpar terceiros, a procurar louros e dividendos. Em plena crise, quase ninguém, pessoa, família, instituição, empresa ou serviço público sabe o que deve fazer, o que lhe compete, onde e com quem. Alguém se lembra de ter visto, regularmente, nas suas caixas do correio ou nos seus emails, avisos sobre as emergências e as crises? Alguém jamais viu, entre nós, informação completa, prática e actualizada, sobre as reservas estratégicas, de guerra ou de emergência, a manter em casa, nos bairros, nas autarquias, nas empresas e nas instituições? Quem sabe, entre nós, o que deve fazer, onde, quando, com quem e como, em caso de emergência, acidente, desastre ou crise?

 

Podemos ter a certeza de que reinam a má gestão de recursos e a péssima organização de serviços de apoio. Ninguém duvida de que, nas administrações, os planos de emergência estão desactualizados, são inoperantes, se encontram esquecidos, mas são muito bem elaborados no papel, sem qualquer espécie de sentido prático.

 

O apagão não é obra da natureza, é obra de gente. Como tal, não deveria ter acontecido. A acontecer, deveria haver a possibilidade de “autonomizar” a rede nacional. Seria necessário haver regiões autónomas dentro da rede nacional. É indispensável haver mecanismos de emergência prontos a entrar em operações. Os municípios deveriam estar envolvidos desde o primeiro minuto. As autoridades públicas nacionais e locais, os órgãos de fiscalização e regulação, as grandes empresas nacionais e internacionais, deveriam ter obrigações drásticas para actuar imediatamente em caso de emergência. As mais importantes instituições públicas, incluindo hospitais, clínicas, escolas, lares, bombeiros, polícias, órgãos de comunicação e outros, deveriam ter obrigatoriamente uma grande capacidade de produção autónoma de emergência. As autoridades, a começar pelo Primeiro ministro e pelos ministros, deveriam ter obrigações taxativas de informação e comunicação imediatas e deveriam cumpri-las.

 

Além do apagão, para muitas outras circunstâncias deveria haver regras claras e normas imperativas de actuação. Como, por exemplo, a fixação de níveis mínimos de stocks de emergência de alimentos, medicamentos, produtos de uso doméstico e combustíveis. Ou, nas empresas e nas instituições, a existência de estruturas de intervenção no plano individual, autárquico e local. Ou ainda, mecanismos e dipositivos conhecidos e disponíveis de substituição e de emergência em caso da falta ou de falha (luz, calor, água, energia, transporte, alimentação, primeiros socorros, etc.).

 

Estas, apenas algumas sugestões conhecidas e evidentes. Sem esquecer as obrigações a cumprir pelos Governos, imediatamente e diante de todos. Ou ainda, a responsabilidade autónoma, sem intervenção dos governos e das autoridades políticas, das entidades e serviços de protecção civil que, para cumprir os seus deveres e mobilizar a população, não devem ficar dependentes dos governos.

 

É uma tendência moderna dos sistemas políticos: distribuir, recompensar, fazer obra e criar emprego, em detrimento da que deveria ser a primeira prioridade, proteger os seus cidadãos. Servir as populações garantir-lhes a liberdade. Ajudar a que os cidadãos sejam fortes e saibam vingar na vida. Por isso, a previsão, a prevenção e a comunicação são tão essenciais. O verdadeiro drama e a real ameaça estão, não nas ocorrências, mas antes das inundações, das chuvas, da seca, dos incêndios e de outros desastres. Assim como antes do apagão, obra humana.

Público, 3.5.2025

Etiquetas:

2.5.25

O Primeiro 1ºde Maio



Por A. M. Galopim de Carvalho

Sete dia antes, Portugal inteiro saíra à rua, conhecidos e desconhecidos abraçavam-se, nos olhos havia sorrisos e lágrimas da alegria. Vitoriavam-se os militares que haviam posto fim a meio século de estúpido sufoco. Foram sete dias e sete noites de festa espontânea e verdadeira “O povo está com o MFA” e “O povo unido, jamais será vencido” ouviam-se por todo o lado. Os homens e as mulheres da minha idade (eu tinha então 43 anos) estávamos na fase mais pujante das nossas vidas quando fomos apanhados por este extraordinário o feliz acontecimento. Ninguém revelou o mais pequeno apego ao regime acabado de cair, no qual era suposto terem sido moldados. Não se viu um gesto nem se ouviu uma palavra em sua defesa. A injecção de ideologia salazarista que, como eu, receberam na Mocidade Portuguesa, não surtiu qualquer efeito. O ditador falecera quatro anos antes e, com ele, a filiação obrigatória na já então defunta organização da juventude do Estado Novo. Em termos que se visse, a Mocidade Portuguesa não fez nem os homens nem as mulheres que Salazar sonhou. Sentia-se que o país era nosso.

A fraternidade e a solidariedade pareciam ir desabrochar como os cravos de Abril. Mas foi Sol de pouca dura. Já o disse e direi tantas vezes quantas as necessárias, que a classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há 51 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada”, entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se sistematicamente de uma numerosa parcela deste povo, a raiar a miséria ou a viver dentro dela; a comer, cada vez em maior número, do Banco Alimentar Contra a Fome e de outas organizações de solidariedade social; sem habitações condignas para viver e a desanimar de esperas ao frio e à chuva, noites a fio, nas filas dos Centros de Saúde ou a morrer nas urgências dos hospitais ou à porta delas, nas ambulâncias. Classe política que tem vindo a perder preocupações pela ciência e pela cultura, que mantém uma justiça para ricos, à margem de outra para pobres e um sistema de educação que falhou redondamente.

Verdadeiros défices na educação, na formação e na preparação para uma cidadania plena abriram as portas a um populismo, a que a democracia deu voz e que, usufruindo da liberdade dessa mesma democracia, nos procura arrastar para um modelo de sociedade que a história já mostrou que sempre nos amordaçou, com consequências funestas. Estes, que não fizeram um gesto ou proferiram uma palavra em defesa do regime que caiu de podre, disfarçaram-se e abrigaram-se, depois, à sombra dos partidos de direita, legalizados, e esperaram, calados, até o momento em que os sucessivos erros dos políticos que nos têm governado e a Liberdade, lhes abriram portas e janelas e ei-los a somar os votos de uma população que se sente traída face às promessas daqueles dias radiosos.

Há 51 anos vivi intensamente esse dia, no trajecto do Marim Moniz à Alameda D. Afonso Henriques e no estádio da então FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho), onde Mário Soares e Álvaro Cunhal, lado a lado, falaram para mais de cem mil manifestantes e helicópteros militares despejaram sobre eles braçadas de cravos. 

Quem viu a manifestação do passado dia 25, na Avenida da Liberdade diz-me que há uma passagem de testemunho em curso, estampada nos rostos e cartazes de muitos jovens que estão a tomar a Liberdade nas suas mãos. Quero acreditar que assim seja e isso deixa-me feliz. Diz me, ainda, que eles eram a maioria dos presentes, e que os presentes eram muitíssimos. 

Vamos, pois, acreditar que “O povo unido nunca mais será vencido!” 

Etiquetas:

1.5.25

PARA UMA HISTÓRIA DA MINERALOGIA, NUMA CONVERSA FICCIONADA DO AUTOR COM D. JOÃO III



(Do meu livro “Conversas com os Reis de Portugal - Histórias da Terra e da Vida”, Ancora Editora, 2013)

Por A. M. Galopim de Carvalho

- Soube que estavas aqui e tenho uma série de questões que gostaria que me ajudasses a esclarecer. São questões no domínio da mineralogia

- Se eu souber, tenho todo o gosto em vos ser útil.

- Percorro muitas vezes os mais variados departamentos e serviços desta Universidade que ainda considero como minha. Ultimamente tenho-me detido mais tempo e com particular atenção na esplêndida sala de mineralogia do Museu Mineralógico e Geológico, no antigo Colégio de Jesus. Os minerais expostos encantam-me pela beleza dos seus cristais, dos seus brilhos e cores. Fiquei, assim, curioso em saber mais sobre eles, sobre a natureza e a utilidade destas dádivas da criação. Sou hoje um curioso obsessivo acerca da história do que quer que seja. Das civilizações, das artes, das tecnologias, das coisas, em geral. De momento, estou interessado em seguir os passos que conduziram ao conhecimento que actualmente temos dos minerais.

- Desde os tempos mais remotos que os minerais despertaram a curiosidade e o interesse dos nossos antepassados. – Iniciei eu o discurso que me pareceu mais adequado ao interesse do monarca. - A utilização intensiva do sílex, do quartzo, da calcedónia, da obsidiana ou vidro vulcânico na feitura de utensílios vários e de objectos de adorno e votivos, permite-nos concluir que o homem pré-histórico os procurou sistematicamente e que, portanto, lhes dispensou tratamento racional, ainda que rudimentar. A manufactura de objectos de ouro, cobre, bronze e ferro mostra que as primeiras civilizações, prospectaram, exploraram e transformaram os correspondentes minérios. Os pigmentos minerais usados nas pinturas rupestres do Paleolítico superior, ou sobre os corpos dos seus protagonistas, permitem conclusão idêntica. Mesmo antes de terem nome já muitos minerais eram conhecidos e procurados pelas suas utilidades.

- Acho que encontrei a pessoa certa para conversar sobre este assunto. - comentou D. João III, satisfeito com esta introdução, o que me encorajou a subir o nível da exposição.

- A primeira obra escrita visando a mineralogia, de que temos conhecimento, – continuei - é um Tratado sobre as Pedras e foi escrito por Teofrasto, filósofo grego do século III antes de Cristo. Devemos a este discípulo de Aristóteles a primeira classificação mineralógica, baseada nas respectivas utilidades. Nesta classificação distinguiu, sobretudo, minérios, pedras preciosas e pigmentos. Há, no entanto, que ter em conta um longo caminho percorrido pelas civilizações que o precederam, no domínio do conhecimento das substâncias, das suas natureza e constituição. Em Roma, no século I, Plínio, o Velho, uma das vítimas da histórica erupção do Vesúvio, tem lugar de destaque através da sua “História Natural”. Nesta obra monumental, em 37 volumes, o autor retoma Teofrasto e volta a falar de minérios, pigmentos e gemas, uma outra maneira de dizer pedras preciosas. 

- E a alquimia, de que tanto se fala, qual foi o seu papel nesta caminhada?

- Podemos dizer que a mineralogia percorreu a Idade Média de mãos dadas com a alquimia, numa prática e numa atitude trazidas pelos árabes, seus cultores, sob a designação de Al kimia, ou ”pedra filosofal”. Esta expressão encerra um conceito carregado de sabedoria, nem sempre devidamente apreciado. É necessário lembrar que todo este saber vem da Antiguidade, com destaque para a chinesa, a babilónica, a hindu e a egípcia, através da tradição popular e dos textos eruditos dos clássicos gregos e latinos. Os alquimistas desenvolveram a Polypharmacia, uma actividade onde se experimentavam, entre outros, processos como combustão, sublimação, dissolução e precipitação e que, de mistura com outros procedimentos fantasiosos à luz do conhecimento actual, deram nascimento, não só à química como à mineralogia.

- Quer dizer que a mineralogia tem aí as suas raízes?!

- Exactamente. Foi, de facto, no seio da alquimia que a mineralogia cresceu, deixando para trás muitas das concepções fantasistas e místicas dos escolásticos. Mas só cresceu e se afirmou como disciplina científica no decurso dos séculos XVIII e XIX, a par da química, fazendo-a progredir e tirando dela o essencial do seu próprio aprofundamento como ciência de acentuada organização sistemática. A partir da 2ª metade do século XVI e na sequência dos trabalhos de Agricola, os alquimistas começaram a dividir-se por duas correntes.

- É do meu tempo esse Agricola. Foi também um notável médico alemão, de nome Georg Bauer. Mas, desculpa a interrupção, ias referir as duas correntes em que se dividiram os alquimistas.

- Uma delas preconizava explorar a natureza das coisas, caminhando no sentido da química científica. A outra cultivava uma atitude fantasista e extravagante, em busca da pedra filosofal, responsável pela imagem negativa que, injustamente, tem sido divulgada em torno da alquimia e dos alquimistas. Esta outra corrente teve como resultado retardar o avanço da química e, consequentemente, da mineralogia, disciplinas que, como disse atrás, só começaram a ganhar foros de ciência a partir do século XVIII.

- E o que é que me podes dizer sobre os lapidários?

- Eram manuais de medicina e magia plenos de descrições de minerais e pedras, entre as quais muitas meramente fantasiosas. Sei que surgiram e se desenvolveram durante a Idade Média. Inicialmente manuscritos e, portanto, de divulgação limitada, passaram a ser impressos a partir da descoberta da Imprensa, no século XV.

- O meu mestre Tomás de Torres tinha um lapidário, mas confesso que, na altura, não me despertou grande curiosidade.

- O avanço do conhecimento deu lugar a obras escritas com preocupações de rigor científico, ao nível do possível na época, entre as quais a do italiano Ulisse Aldrovandi, no século que se seguiu ao vosso. Por causa dessa obra, este mestre da Universidade de Bolonha foi alvo de forte perseguição por parte do Santo Ofício. 

- Hoje envergonho-me dessas perseguições, muito encorajadas pelo espírito retrógrado da Contrarreforma que dominou Portugal.

- Na mesma época, - continuei - o dinamarquês Nicolau Steno, sem qualquer oposição dos guardiões da Fé e do saber antigo, revelava haver constância nos valores dos ângulos entre faces homólogas nos cristais de quartzo. Trata-se de um pequeno, mas decisivo passo que abriu portas ao estudo dos cristais e, consequentemente, dos minerais. Deve dizer-se que a Inquisição mostrava alguma tolerância pelas investigações de pendor matemático e geométrico que não questionassem os princípios dogmáticos da Divina Génese. Tal não sucedeu, por exemplo, com o químico inglês Robert Boyle, na segunda metade do século XVII, conhecido no mundo científico por ter inovado o conceito de elemento químico. Na visão do poder eclesiástico, este conceito punha em causa o saber escolástico e os fundamentos tidos por intocáveis. Assim, este conceito de elemento químico teve de esperar cerca de um século para ser divulgado e, finalmente, aceite.

- Diga-se também, em abono da verdade, que foi no seio da Igreja que surgiu Inácio de Loyola e a Companhia de Jesus, contrariando uma postura tradicional da Santa Sé com a criação, entre muitas outras realizações, do que ficou célebre Colégio Romano, considerado na época uma instituição científica de vanguarda.

Etiquetas: