19.7.25

Grande Angular - História de vulcões

Por António Barreto

Sob, em cima ou no sopé do vulcão. As imagens são conhecidas. Nem as variações adoçam o significado: a proximidade do vulcão é sempre má conselheira. Pior ainda: quando o fenómeno está adormecido, é enganador. É atraente, fascinante e tentador. Mais uma razão para ser perigoso. E tem consequência: pode nunca acordar, mas leva as pessoas a ter medo.

 

Vem isto a propósito do tempo que vivemos e do debate sobre o “estado da nação” realizado esta semana. O governo está satisfeito, sobretudo consigo próprio. As oposições estão quezilentas, como o governo as quer. Todos usam factos e recorrem a números, só em parte verdadeiros, disponíveis para mostrar o optimismo e o cepticismo, conforme as necessidades.

 

Ouvir o governo é escutar um conto de fadas. Muito corre bem, tudo vai correr melhor. Ouvir as oposições é ter uma percepção do inferno. Muito está mal e vai ser ainda pior. Montenegro e o poder do dia têm a situação a seu favor, mas sabem que estão com enormes dificuldades. O que é paradoxal: a situação favorável contrasta com os ventos adversos. É uma espécie de paz sob o vulcão.

 

O que está a correr bem e parece ser a favor do governo? O que aconselha a uma acção determinada de reforma e progresso? Uma situação social calma, com as guerras das classes em pousio. As oposições estão impotentes. Não sendo famosas, as finanças estão aparentemente sob controlo, aliviadas pelos fundos do PRR, mãe de virtudes e fonte de milagres. A agressão russa à Ucrânia e o massacre israelita de Gaza, assim como o alargamento da guerra ao Irão, à Síria e ao Líbano, estão longe, vão durar anos, ameaçam a paz e a estabilidade na Europa, mas não se fazem sentir em Portugal. Para já. O turismo não dá sinais de enfraquecer e continua a produzir os seus lucros e rendimentos fáceis. Alguns Estados, incluindo a China, a Rússia, Angola, os Emiratos e até Estados Unidos estão interessados em Portugal, se não em desenvolver, pelo menos em comprar. A economia, a viver cada vez mais de mão de obra barata e dependente, em grande parte ilegal, parece florescente, com as exportações a portarem-se bem. Os cidadãos parecem cansados da política e da instabilidade.

 

Mas também há argumentos a desfavor do governo e da energia reformadora. Sem referir a primeira deficiência, a falta de apoio parlamentar, sublinhe-se a incapacidade de gestão dos grandes serviços públicos. Designadamente da saúde e da educação, incluindo o atendimento noutros serviços, como sejam os impostos e a segurança social. Após duas ou três décadas de permanentes progressos tecnológicos, com toda a espécie de novos dispositivos, há milhares de pessoas maltratadas, a quem não se responde, que têm de ficar horas e dias à espera do telefonema, há milhares de enganos e atrasos por culpa do “sistema”. A eficiência e a afabilidade no atendimento são deficitárias, a ponto de configurarem desprezo social pelos cidadãos em geral e pelos trabalhadores e pensionistas especialmente. O desastre absoluto que tem sido a impossibilidade de prever a demografia e a evolução dos serviços de saúde, com milhares de enfermeiros e de médicos a emigrar para o estrangeiro. O sistemático erro de gestão e de previsão que, todos os anos, uns maus outros piores, deixam milhares de alunos sem aulas durante uns tempos e a várias disciplinas, que podem ser muitas. A radical incompetência para a decisão política e económica, assim como para a gestão dos serviços de transportes públicos, com relevo para o comboio, o avião e o metropolitano, o que deixa visível a imagem real do que é a opressão social, o desprezo por quem trabalha. A total ignorância e a criminosa negligência relativamente à habitação social, ao alojamento público e à habitação. Aumenta a emigração, alastram as barracas e cresce o número de imigrantes baratos e ilegais: são sinais inconfundíveis. 

 

O que depende directamente do governo, deste, do anterior de Montenegro e do anterior de Costa, está a correr mal, cada vez pior. A gestão da saúde, da habitação social, da educação e dos transportes públicos, assim como do atendimento nas administrações, é incompreensivelmente má e deficiente. É visível a degradação das capacidades do governo, dos governos, que não sabem e não conseguem ir mais longe ou melhor do que distribuição de dinheiros. Tira um imposto, reduz uma taxa, dá um subsídio, oferece um bónus…. Aonde está a política consistente, a prazo? É a terceira ou quarta vez que, em vésperas de eleições, os governos (Costa e Montenegro) distribuem prémios. Há qualquer coisa de humilhante nesta distribuição, nestas dádivas que tresandam a compra de votos. Não é, evidentemente, a maneira mais nobre de governar. Distribuir bónus extraordinários, dinheiro, subsídios e bonificações, cria dependências e agradecimentos, sem ligar ao mérito. Distribuir benefícios quando interessa a quem dá é geralmente por motivos eleitorais. Transformar as pessoas em mendigos ou gratos dependentes do governo não é o que há de mais nobre e civil. 

 

“Deixem-me trabalhar”, “deixem-nos governar quatro anos”, permitam o governo trabalhar para ganhar mais votos, até à maioria absoluta, poupem as alianças ou as negociações maçadoras com o Chega e com o PS, dêem tréguas e sossego. “Dêem-nos tempo e ver-se-á como cumprimos os nossos deveres, ganhamos a população e os portugueses agradecerão”.

 

É bem provável que o desconforto do PS e a estridência do Bloco e do PCP, assim como o desatino demagógico do Chega, sejam factores favoráveis ao governo e suficientes para que este, sem maioria parlamentar permanente, se aguente muito mais tempo do que se imagina. É bem possível que a incapacidade das oposições recompense a mediocridade do governo.

 

Não foi bem este o debate do estado da nação. Foi mais o debate do estado da oposição, cujo comportamento, no parlamento, foi um lenitivo inesperado para um governo que parece ser perito em distribuição de subsídios e bónus, mas incapaz de voar alto na política e de realizar na vida real. Foi um debate ácido e pouco educado entre dois partidos que lutaram pelo segundo lugar mais do que pela governação.

 

Etna ou Vesúvio, Krakatoa e Pinatubo… Os nomes despertam medos e fantasias. São atraentes e ameaçadores. Ao contrário destes desastres, inevitáveis e incertos, as desgraças sociais são, em grande parte, previsíveis. E podem ser prevenidas. Se houver sabedoria humana, claro.

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Público, 19.7.2025

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18.7.25

TERRAS RARAS EM PORTUGAL E O PARADOXO DA ABUNDÂNCIA


Por A. M. Galopim de Carvalho

Já por diversas vezes trouxe a esta minha página o tema das “terras raras” e, ao falar hoje sobre o que se sabe acerca deste problema, ocorreu-me, não sei porquê (ou talvez saiba) o chamado Paradoxo da Abundância, também conhecido como “maldição dos recursos naturais”, uma ideia desenvolvida em 1993,pelo economista britânico Richard Auty, Professor Emeritus de Economia e Geografia, da Lancaster University. Uma ideia segundo a qual, países ricos em recursos naturais (como petróleo, gás ou minérios) revelam, frequentemente, índices de pobreza, incompatíveis com uma tal riqueza. Uma realidade que anda de mãos dadas com um crescimento económico mais lento, instabilidade política, elevados níveis de corrupção e menor desenvolvimento institucional. Ao contrário do que seria de esperar, a abundância de recursos naturais prejudica o desenvolvimento sustentável de um país, em vez de o impulsionar.

A Nigéria, um exemplo entre vários (Venezuela, Angola, Iraque, Chade), um dos maiores produtores de petróleo da África, sofre de má gestão, vive uma gritante falta de infraestruturas básicas, enfrenta constantes conflitos armados e afunda-se numa corrupção endémica. Em contraste, países com poucos recursos, como Japão, prosperaram por meio de inovação e industrialização.

Portugal não tem nem sabe quando terá exploração comercial de “terras raras”, mas consta, com relativa certeza, que possui diversas áreas promissoras, que poderão vir a tornar-se estratégicas e fonte de desenvolvimento. Notícias que têm vindo a público, apontam como principais ocorrências: Vale de Cavalos (Portalegre) e Monfortinho (Castelo Branco) e quatro jazidas geologicamente confirmadas, no Alentejo, que, sabe-se, já têm quem “ande com o olho nelas”.

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16.7.25

AINDA AS TERRAS RARAS



Por A. M. Galopim de Carvalho

Em finais do século XVIII, quer para os químicos como para os mineralogistas, os óxidos da maioria dos metais constituíam um grupo então designado por “terras”, jorden, para os suecos, Erde, para os alemães, earth, para os ingleses, e terre, para os franceses. 

Face ao qualificativo raras, qualquer pessoa será levada a pensar que se trada de substâncias que ocorrem em quantidades ínfimas, mas não é o caso. Por serem de difícil separação e por serem apenas conhecidos em minerais oriundos da Escandinávia, foram então (estamos a falar de finais do século XVIII, nos alvores da Química e da Mineralogia) considerados "raros", qualificação ainda hoje utilizada, apesar de alguns deles serem relativamente abundantes na crosta terreste. Todos eles são mais abundantes do que metais como a prata e o mercúrio, por exemplo.

Os metais destas “terras”, ou seja, destes óxidos, são, de acordo com o que a Química nos ensina, um grupo de 17 elementos, da “Tabela Periódica dos Elementos Químicos”, dos quais, 15 pertencem ao grupo dos chamados lantanídeos, isto é, os que ali vão do lantânio ao lutécio, aos quais se juntam o escândio e o ítrio, todos eles elementos que ocorrem nos mesmos minérios e apresentam propriedades físico-químicas semelhantes. 

Os 15 lantanídeos são: lantânio, cério, praseodímio, neodímio, promécio, samário, európio, gadolínio, térbio, disprósio, hólmio, érbio, túlio, itérbio e lutécio. Cada elemento tem propriedades únicas que os tornam valiosos para diferentes aplicações nas tecnologias mais avançadas, “do futuro”, daí o seu grande interesse estratégico.

Todos estes minerais são mais difíceis de explorar do que os minerais de metais como o ferro, o cobre, o chumbo, o zinco e muitos outros. Esta dificuldade torna os metais das “terras-raras” relativamente caros, pelo que o seu uso industrial foi limitado até serem desenvolvidas técnicas de separação de alto rendimento, em meados do século XX, tais como, cristalização fraccionada, troca iónica. 

As terras-raras têm aplicação em grande variedade de modernas tecnologias de ponta, de grande interesse estratégico e económico. 

Para os geólogos, as “terras-raras” ajudam a conhecer as fontes magmáticas de certas rochas, permitem datar alguns minerais, entre os quais, certas granadas, através da abundância relativa do par neodímio/samário. Mas o seu interesse científico não fica por aqui. Alarga-se a determinados campos da Física e da Química, da Biologia, da Medicina e outros.

 

Principais minerais com elementos da terras-raras:

 

Bastnaesite - (La, Ce, Y)COF, fluorocarbonato de lantânio, cério e ítrio.

 

 

 

Eritrite (Co(AsO)·8HOarsenato hidratado de cobalto.

Euxenite ((Y, Ca, Ce, U, Th)(Nb, Ta, Ti)₂O₆), óxido de titânio, tântalo e nióbio, com ítrio, cálcio, cério, urânio e tório.

Gadolinite ((Ce,La,Nd,Y)₂FeBe₂Si₂O₁₀), silicato de berílio e ferro, com cério, lantânio, neodímio e ítrio.

Loparite - (Na,Ce,Ca)(Ti,Nb)O₃, óxido de titânio e nióbio, com sódio, cálcio cério.

Monazite-cério - (Ce, La, Nd, Th, Y)PO4, fosfato de cério, lantânio, neodímio, tório e ítrio.

 

Monazite-lantânio - (La, Ce, Nd)PO4, fosfato de lantânio, cério e neodímio.

 

Monazite-neodímio - (Nd, La, Ce)PO4, fosfato de neodímio, lantânio e cério.

 

Monazite-samário - (Sm, Gd, Ce, Th)PO4, fosfato de samário, gadolínio, cério e tório.

 

Xenótima - YPO, fosfato de ítrio.

O de todos conhecido grande interesse estratégico das “terras raras” assenta, por um lado, na sua importância no que se refere às modernas tecnologias e indústrias de ponta, e, por outro, na concentração geográfica (na China) da sua produção, principal causa de vulnerabilidades geopolíticas e económicas. 

As “terras raras” são essenciais em tecnologia militar, nomeadamente na produção de mísseis teleguiados, radares, lasers, sistemas de comunicação, motores de aviões e submarinos nucleares. Estão na ordem do dia em equipamentos electrónicos de uso público, como smartphones, monitores de LEDs (Light Emitting Diodes), baterias recarregáveis, alto-falantes e auriculares. No que diz respeito às energias renováveis lembram-se os motores e baterias de veículos automóveis, os ímanes de neodímio nas turbinas eólicas. Em tecnologia médica, sobressaem os lasers cirúrgicos e os tomógrafos, como tomografia computorizada (TAC), ressonância magnética (RN) e outros. Têm, ainda, grande importância como catalisadores industriais na refinação do crude (petróleo bruto) e na redução da poluição automóvel.

A China domina mais de 60% da produção mundial de “terras raras” e lidera a respectiva refinação, o que lhe dá reconhecida hegemonia geopolítica, no que concerne a capacidade de restringir ou não as exportações com base em motivos políticos ou comerciais. 

Os países que dependem de “terras raras” importadas para as suas indústrias de defesa tornam-se vulneráveis. A corrida tecnológica de acesso garantido a esses minerais é crucial para liderar em inteligência artificial, energia limpa e armamentos avançados. A transição energética, com o crescimento da energia limpa e o número em crescimento de veículos elétricos aumenta exponencialmente a procura.

Resumidamente é este o cerne da situação.

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12.7.25

Grande Angular - Escola de valores

Por António Barreto

É um dos mal-entendidos do nosso tempo: a escola deveria transmitir valores. Na esquerda e na direita, há quem pense assim. Democratas, fascistas e comunistas têm esse traço comum.  Entre cristãos, muçulmanos, judeus e hindus, assim como entre laicos e ateus, há quem não tenha dúvidas: a escola deve dar valores. Deve ensinar a viver, preparar o crescimento, garantir o bom comportamento e formar cidadãos. O problema surge quando tentamos perceber o que cada um quer. E depressa se vê que querem coisas diferentes e contraditórias.

 

De comum, em abstracto, querem valores e crenças nas escolas. E recusam a “escola neutra”. Esta sempre foi um diabo maior. Salazar era fervoroso adversário da escola neutra. Tal como eram Perón, Pétain, Hitler, Mussolini, Goebbels, Estaline, Krupskaia, Mao Tsetung e os Ayatollahs. Todos querem que a escola se substitua às famílias, que os professores ensinem os jovens a viver e a jubilar nos bons costumes. Como é sabido, o que um católico quer da escola não é o que pretende um muçulmano. O que um nacionalista deseja não é a mesma coisa do que um laico socialista. O modo como António Sérgio idealizava a sua escola nada tinha de comum com a instituição de Carneiro Pacheco ou Hermano Saraiva. O que um comunista espera do ensino é muito diferente do que pensa um democrata-cristão. Europeus, ciganos, brasileiros, ucranianos, indianos, africanos e paquistaneses têm expectativas diferentes e esperam que as escolas transmitam as suas crenças e as suas tradições. Numa palavra, os seus valores. Mas os seus, não os dos outros. Assim é que todos os regimes autoritários pretenderam sempre o mesmo: as escolas devem formar os seus cidadãos, os cidadãos do seu regime.

 

Pouco a pouco, tem-se vindo a criar um “fundo comum”, uma espécie de ideologia que valoriza uma escola mais ecuménica. Há já alguns anos que os ministérios da educação, os deputados, muitos professores, várias associações e igrejas vêm trabalhando esta questão da construção de uma escola de valores e de crenças. Mais ainda, defendem, em abstracto, que a escola deve desenvolver a cidadania e a moral, para que se formem cidadãos livres e conscientes. Consideram mesmo que a escola deve substituir-se à família, aos amigos, à rua, aos grupos culturais e a outras formas de socialização, a fim de criar “verdadeiros cidadãos”. Os textos oficiais, elaborados nos últimos vinte ou trinta anos por todos os governos e todos os partidos, dão bem conta dessas ideias. Por exemplo, temos até, em Portugal, uma “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania”, assim como conceitos, organismos, documentos, guias, leis e regulamentos que dão conteúdo ao desejo de que a escola forme “cidadãos livres, democratas, responsáveis, igualitários e plurais”.

 

Pretende-se que a educação para a cidadania se ocupe de “direitos humanos, da igualdade de género, da interculturalidade, do desenvolvimento sustentável, da educação ambiental e da saúde”. Assim como de “sexualidade, media, instituições democráticas, literacia financeira e educação para o consumo, segurança rodoviária e risco (sic)”. Além disso, os jovens devem ser educados para o “empreendedorismo, o mundo do trabalho, a segurança, a defesa e a paz, o bem-estar animal e o voluntariado”. A fechar este missal, diz o texto que “os professores têm como missão preparar os alunos para a vida, para serem cidadãos democráticos, participativos e humanistas”.

 

A escola de valores e a educação para a cidadania criam problemas sem solução. A codificação desses valores é simplesmente impossível. Fica a cargo de quem? Existem pessoas e instituições que, para tratar do nacionalismo, do género, da sexualidade, da autoridade paterna, da organização da família ou do capital e do trabalho, sejam capazes de equilíbrio entre todas as sensibilidades doutrinárias e culturais? Como eleger valores de uma cultura sem afastar os de outra tradição? Pior ainda, como agregar valores de todas as culturas diversas e contraditórias? Outro problema é o da autoridade moral que zela pela aplicação das regras. Quem? O Parlamento? O governo? A Igreja? O sindicato? A academia? 

 

Ensinar matemática e geografia, estudar história e ciências naturais, aprender a escrever e a falar línguas estrangeiras, consultar dicionários e bibliotecas, fazer fichas e resumos, preparar memorandos e sumários, tomar a iniciativa de estudar e investigar, debater questões morais e filosóficas, perceber e utilizar a tecnologia, prever uma actividade ou uma profissão, numa só palavra apender a pensar! Tudo o que precede parece estar submetido à principal função do professor: formar cidadãos! 

 

Não vale a pena pensar que o Estado é o vilão e que as famílias são vítimas do Estado que se esforça por retirar as crianças e os jovens à influência familiar. Não. É verdade que o Estado, qualquer Estado contemporâneo, tenta afastar as famílias dos sistemas educativos. Mas os pais e as famílias agradecem e pedem mais. Uns não têm formação. Outros não têm meios. Uns trabalham longas horas por dia e não têm tempo e há quem queira os tempos livres para outros fins. Quaisquer que sejam os motivos, muitas famílias procuram com prazer que o Estado se ocupe da educação dos filhos. Não apenas da instrução e do ensino, mas também da formação e da educação.

 

Se uma escola der instrumentos e ferramentas para estudar e aprender a matemática, as línguas e a história, as ciências naturais e a geografia, a física e a química, ver-se-á rapidamente que os jovens crescem melhor. Se a mesma escola proporcionar aos seus jovens tempos e modos de cultura e artes, de música e de literatura, de pintura e de dança, as famílias depressa ficarão surpreendidas com as capacidades juvenis em desenvolvimento, sem necessidade de doutrina social. Se a escola conseguir organizar visitas de estudo, ateliers de criatividade e meios de expressão, prontamente surgirão resultados inesperados. Se a escola for capaz de ocupar os jovens durante dias inteiros, sem “furos” nem “folgas”, as consequências surpreenderão os pais e os mentores das escolas de valores. Se a escola for ela própria pontual e rigorosa, o seu exemplo será pedagogia maior. A escola tem de acreditar em si, nos seus alunos e nos seus professores, não tem de pregar valores e crenças. A escola deve respeitar a igualdade de todos os cidadãos, não deve fazer propaganda de uma qualquer forma de igualdade em detrimento de outra. A escola não deve promover uma religião, deve apenas respeitar os que professam uma qualquer. A escola tem de ser democrática, não tem de impingir a doutrina democrática.

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Público, 12.7.2025

 

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5.7.25

Grande Angular - Voto no Jardim

Por António Barreto

Como se vota? Que motivos levam um cidadão a votar num ou noutro partido? Por que razão se vota num candidato em vez de outro? Fidelidade, rotina, ideologia, oportunidade, obra feita ou prometida, pessoa, carácter, cara bonita, vingança, castigo, agradecimento…. É um nunca mais acabar de causas. Há estudos e sondagens que, há décadas, dão respostas e hipóteses. Mas, realmente, na verdade, não se sabe muito bem o que leva a votar, caso a caso, pessoa a pessoa, no momento da urna. É possível que uma parte do eleitorado, um terço, metade, vote de maneira previsível. Sempre no mesmo, dizem, orgulhosos, os fiéis. É a minha gente, a minha classe, o meu partido, garantem os que têm certezas. Mas há tanta gente a votar por outras razões! Ainda bem. Se assim não fosse, não haveria alternância, castigo, recompensa, mudança e progresso. Nem pessoas iguais a votar diferente. Nem diferentes a votar o mesmo.

 

Vem isto a propósito das próximas eleições autárquicas. Estas são, na verdade, ainda mais delicadas do que todas as outras. Há independentes. Há alianças e coligações. Há interesses regionais e locais. Há dissidências partidárias. Ao contrário das legislativas, há personalidades e indivíduos, pelo menos para presidentes de freguesia e de câmara. Tudo nos obriga a reflexão e a esquecer os preguiçosos automatismos, sejam estes de classe ou de ideologia.

 

Tendo o que precede em mente, já decidi. Vou votar no Jardim. No Jardim da Estrela. Neste jardim que frequento amiúde há mais de quarenta anos. Em todas as estações. A todas as horas. Com todas as companhias e sobretudo comigo próprio. Este jardim que teve momentos áureos de conservação e beleza, mas também períodos negros de desleixo. Este Jardim que me deu alguns dos melhores momentos de paz da minha vida, que me permitiu ver evoluir a população portuguesa, do bairro, de Lisboa e do país. A presença de estrangeiros mudou muito. O número de bebés e crianças aumentou também, não que haja mais natalidade, mas foi o hábito de passear crianças nos jardins públicos que se desenvolveu. A idade média dos velhos, cortesmente chamados de idosos, aumentou incrivelmente, mas também os seus modos de locomoção. Hoje há mais cadeiras de rodas, bengalas, andarilhos e canadianas do que há quatro décadas. Bom sinal de que há mais velhos e com mais idade. E com mais hábitos de passeio.

 

Mas isso de sociologia ou de observação é pouco. O que realmente importa é o sentimento e a emoção. A paz de espírito, que, se não se tem, ali se ganha depois de chegar. O convívio com as árvores, um dos mais belos produtos da criação, quando não massacrados pela humanidade. O som dos sinos da Basílica, companheiros dos quartos de hora, das vésperas e das matinas, a recordarem a certeza do tempo e da sua amiga crueldade.

 

Dizem que o Jardim da Estrela foi feito, entre 1842 e 1852, segundo o modelo inglês dos jardins românticos, em contraste com a tradição presunçosa francesa, mais pomposa. Os seus últimos responsáveis foram D. Maria II e Costa Cabral. Tem quase 5 hectares. O seu verdadeiro nome é Jardim Guerra Junqueiro, mas ninguém liga: é da Estrela e da Estrela será.

 

O Jardim da Estrela tem um companheiro, pequeno, modesto, quase secreto, ali ao lado: é o encantador Jardim da Burra, que saúdo com frequência. O seu nome deve-se a uma formidável estátua da “Santa Família” (camponês a pé com enxada ao ombro, acompanha mulher sentada em burro, bebé ao colo dela). A inauguração, nos primeiros anos do século XX, mereceu honras de reportagem da Ilustração Portuguesa. O seu autor foi o escultor Costa Motta. Também o Jardim da Burra tem outro nome, Jardim 5 de Outubro, mas ninguém quer saber: é da Burra e da Burra será.

 

Jardim da Estrela já foi “chique”, já foi burguês, já foi de jovens e de várias iniciações, de idosos a jogar às cartas e ao dominó, de mães a amamentar bebés, de grupos de adolescentes a estudar matemática… Tem, numa tão pequena área, uma variedade incrível de árvores de médio e grande porte, vindas de climas longínquos e das nossas zonas temperadas. Tem arbustos e flores. Tem bancos públicos, dos antigos, daqueles de madeira e de encostar. Tem um maravilhoso coreto feito de pedra, madeira e ferro forjado, que tinha vivido, no século XIX, no Passeio Público, lá para os Restauradores, e para aqui veio em 1936. É um dos mais bonitos de Lisboa e do país. Tem quiosque e café bar. Tem, raridade notável, um quiosque-livraria da biblioteca municipal onde se pode ler e requisitar livros e revistas. Tem estátuas, do “Cavador” à “Fonte da Vida” e de “Antero de Quental” a “João de Deus” e ao “Actor Taborda”. Tem, de vez em quando, “feira de velharias” e de “artesanato urbano”.  Já teve aulas de dança e exercícios de meditação ao ar livre e no coreto.

 

Sempre teve namorados. Tem uns fanáticos a ouvir relatos de futebol. Raras vezes se vêem zangas de amigos, familiares ou namorados. Tem jardim infantil. Tem casa de banho. Hoje, o Jardim da Estrela é isso tudo. Mas também é sinal de desleixo e de um processo de abandono que nunca se sabe se e quando vai acabar. Começou um dia a ter placas de identificação de cada árvore, mas os poderes devem ter-se arrependido, pois tal prática, doce e inteligente, desapareceu. Teve patos, cisnes e carpas nos lagos, hoje já não tem, vá lá saber-se porquê. Aliás, um dos dois lagos está seco. Já teve pavões, hoje já não tem. Há passarinhos exóticos e papagaios de passagem, mas pavões é que não. Nas últimas semanas, em vez das dezenas do passado, vi um pato magricelas e duas tartarugas pachorrentas.

 

Em numerosos lanços dos caminhos o pavimento está em vias de destruição, há alguns anos esburacado e em levantamento.  Os canteiros, meu Deus, os canteiros! Relva queimada e erva seca. Flores murchas e mortas. O coreto está entaipado, tapado, para obras, com anos de atraso, já tiveram mesmo de mudar os tapumes. O desmazelo e o desprezo tomam conta da Estrela. Ainda há partes do jardim em bom estado. Mas pressente-se o triste declínio.

 

Não tenho dúvidas! Voto em que trate do Jardim da Estrela. Em quem demonstre que está realmente interessado nos serviços municipais, no espaço público, na beleza das cidades, no conforto dos cidadãos, na paz e no sossego das pessoas, no descanso de quem trabalha, na alegria de viver em comunidade. Voto em quem prometa recuperar o Jardim da Estrela, deixá-lo viver, respeitá-lo e, sobretudo, respeitar os cidadãos.

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Público, 5.7.2025

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