29.3.25

Grande Angular - Propostas modestas

Por António Barreto

A actual crise política, cujo fim não se antevê, deixou claras várias deficiências da democracia e dos sistemas eleitoral e de governo. Tivemos um pouco de tudo. Governos minoritário e maioritário, governo formado pelo primeiro ou pelo segundo partido, governo de maioria absoluta demitido antes do fim do mandato, governo minoritário mantido à força de arranjos e governos de um só partido ou coligação. Um número claramente excessivo de eleições que não conseguiram criar governos de mandato, nem produziram soluções de estabilidade. Criou-se mesmo uma situação perigosa, a da certeza de que as crises políticas desencadeavam perturbações sociais, administrativas e dos serviços públicos.

 

Sem real necessidade e sem motivos de tensão, tem-se desenvolvido um mal-estar. Era bom que os partidos fizessem o que muitos lhes pedem que é de olhar um pouco mais para os cidadãos. Isso é certo, mas também poderiam olhar para si próprios e perceberem melhor o mal que fazem à democracia. Ou o mal que deixam que outros façam à democracia, o que vai dar ao mesmo.

 

Com a devida vénia a Mestre Jonathan Swift, eis umas propostas modestas que talvez fizessem bem à democracia. Destinam-se a reformar o sistema político, obrigando-o a estar mais atento aos cidadãos e menos orientado para a protecção dos partidos. Todas ou quase têm de comum o facto de exigirem revisão da Constituição, o que é parecido com a escalada de Sísifo. Mesmo nessas condições, é útil insistir. 

 

A primeira proposta é a de tornar obrigatória, no momento da sua apresentação ao Parlamento, a aprovação do programa de governo. Não mais as palermices de passagem com abstenção ou de suposta aprovação pela minoria. Não mais a coreografia dos espertalhões que dizem e não dizem, votam e não votam, calam-se para não ter de falar, em poucas palavras querem deixar abertas as portas para exercer chantagem contra o governo. O programa de governo exigiria um voto positivo e explícito da maioria dos deputados eleitos. Não haveria governos sem aprovação explícita, o que não é a mesma coisa do que confiança. Votar contra um programa não é a mesma coisa do que censurar. Não se limitam direitos dos deputados, mas exige-se que o governo respeite o eleitorado.

 

A segunda proposta é a de tornar obrigatória a eleição dos membros do governo. Por outras palavras, todos os ministros e secretários de Estado teriam de ser deputados eleitos. Isto é, garantir que o governo se forma dentro do Parlamento. Hipoteticamente, numa óptica de transição, só os secretários de Estado poderiam não ser eleitos. Na verdade, o ideal é que qualquer membro do governo tenha de ser deputado eleito. Um deputado membro do governo continua a votar leis como se deputado fosse. Ou então, se tiver de sair da Assembleia, é substituído pelo seu suplente, único também eleito e não pertencendo àquela infinita lista de substitutos putativos.

 

Terceira proposta, os deputados seriam eleitos nominalmente, a duas voltas, cada um obtendo assim sempre mais de 50% dos votos. O deputado eleito representa-se a si, ao eleitorado e ao seu partido, em vez de, como hoje, representar essencialmente o seu partido. Qualquer cidadão independente poderia candidatar-se a qualquer círculo, sem necessariamente ser membro de um partido. A seu lado, constaria sempre o nome de um suplente ou substituto. A candidatura de independentes sempre meteu medo aos partidos. Dizem que assim se retira força ao Parlamento e que se criam parlamentos sem lógica nem coesão. Está implícita a ideia de que os independentes têm qualidades (competência ou demagogia) que põem em causa os parlamentos democráticos. A verdade é que, perante a ameaça de candidatos independentes com qualidades e currículo, o que os partidos têm a fazer é de os ir buscar para as suas listas. Se não forem chamar os melhores, pior para eles, talvez melhor para nós.

 

Quarta proposta, os membros do governo, sobretudo os ministros, assim como todos os grandes funcionários e administradores do Estado, a começar pelas grandes instituições, depois de serem designados pelo governo, deveriam passar diante de uma comissão parlamentar e assim serem escrutinados ou avaliados, antes de começarem a sua acção.

 

Todo o sistema foi preparado para favorecer governos minoritários ou para remediar a sua inevitabilidade. Com esta engenharia, vai-se destruindo a democracia. Coligações com sentido e responsabilidade, maiorias de governo com coerência e boa articulação entre Governo e Parlamento poderão resultar destas reformas. É inacreditável o tempo e a energia que se perdem com as negociações de governos minoritários. 

 

            Os partidos políticos continuariam, evidentemente, a desempenhar funções primordiais na democracia. Nem poderia deixar de ser. Ou há partidos ou não há democracia. Mas esta seria o património de todos os cidadãos, com ou sem partido. Sem esquecer que qualquer cidadão poderia criar um partido para se candidatar ou fundar um depois de eleito. Os partidos passariam a prestar atenção aos cidadãos competentes, sérios e responsáveis, por si próprios, não apenas aos cidadãos obedientes e merecedores da confiança partidária. Votar livremente, no Parlamento, com ou sem partido, passaria a ser a regra, sabendo nós, todavia, que o frequente é os eleitos votarem mais vezes com o partido. Veja-se o que se passa na maior parte das democracias nas quais os partidos dependem dos eleitos e não o contrário.

 

Repare-se que quase todas as regras da Constituição e das leis eleitorais e dos partidos políticos, têm como principal objectivo defender os partidos, reduzir  a actividade política dos independentes e retirar eficácia ao escrutínio levado a cabo por cidadãos independentes. A legislação actual é feita, em tudo o que é essencial, para defender os partidos políticos existentes e para proteger quem já está dentro do sistema.

 

As eleições são idealizadas com vários fins. Talvez os dois mais importantes sejam o de garantir a representatividade e o de formar governo. Ao não exigir uma maioria nem a aprovação do programa de governo, o nosso sistema subalterniza o segundo critério. Ao não permitir candidaturas independentes nem círculos uninominais, o mesmo sistema favorece os partidos existentes e privilegia a representatividade dos partidos, não a dos eleitores. O nosso sistema político precisa de mais responsabilidade e mais confiança nos cidadãos. Às vezes, fica-se com a sensação de que o sistema político tem receio deles. 

.

Público, 29.3.2025

Etiquetas:

25.3.25

Torradas com toucinho


Por A. M. Galopim de Carvalho

Provavelmente já havia torradeiras eléctricas, mas nós ainda as não conhecíamos, e a manteiga-de-vaca era um dos muitos produtos tornados raros e caros com o desenrolar da 2ª Guerra Mundial. O pão, felizmente, nunca nos faltou. Quando o não havia no padeiro, íamos buscá-lo à Manutenção Militar, recurso a que tínhamos acesso, uma vez que o nosso pai era um reformado da Marinha, de onde tinha saído em 1917, por motivo de doença, no posto de 2.º grumete.

Uma ou duas vezes por semana a mãe fazia cozido, geralmente com sopas de pão perfumadas de hortelã. Nos meses mais frios, esta confecção, além do repolho, dos nabos e das batatas, privilegiava a carne de porco fresca, os enchidos e o toucinho da salgadeira. Nos meses mais quentes, o cozido era de abóbora, vagens (feijão verde), grão e batata, com carne de vaca, os mesmos enchidos e o mesmo toucinho. Num tempo em que ninguém falava de colesterol, o toucinho do porco alentejano, branco e alto de uma mão-travessa, bem conservado no sal, era uma constante na nossa casa e na da generalidade das famílias. Metido na panela em quantidade para ir ficando de uns dias para os outros, era o nosso conduto para barrar o pão.

No Inverno, em que as pessoas se aqueciam nas tradicionais braseiras com cisco e picão, faziam-se torradas. As fatias de pão eram dispostas sobre uma grelha de ferro ou de arame a que se dava o nome de torradeira, e esta colocada sobre o brasido. Uma vez no ponto desejado, as torradas eram barradas com toucinho que, bem cozido, se desfazia como manteiga, exalando um perfume inesquecível. Em nossa casa estas mesmas torradas eram depois esfregadas com os restos da linguiça ou do chouriço dos ditos cozidos, o que lhes dava um outro perfume e um sabor deliciosos.

As recomendações médicas, acentuando os malefícios desta gordura na nossa saúde, em geral, e na das artérias, em particular, veio pôr um travão nesta delícia da gastronomia da minha infância e adolescência,

 

Etiquetas:

22.3.25

Grande Angular - Central, moderado, responsável, em coligação

Por António Barreto

As atribuladas experiências dos governos provisórios, seis ao todo, de 1974 a 1976, não foram propriamente governos de aliança, coligação ou bloco central. Tratava-se bem mais de governos de salvação nacional, sob controlo do MFA (Movimento das Forças Armadas). Cometeram erros medonhos e deixaram-se, parte do seu tempo, dominar pelos comunistas e pelos militares revolucionários, mas salvaram a hipótese de democracia. Dentro dos próprios governos, partidos e militares combatiam-se mortalmente. Os militares do MFA mais moderados, em estreita associação com os socialistas, principalmente, mas também os sociais democratas, conseguiram dar conta do recado e preservar a democracia, o futuro Estado de direito e as liberdades.

 

Governo de Bloco Central, de coligação formal, só houve um, de 1983 a 1985, com Mário Soares como Primeiro Ministro e Mota Pinto vice-primeiro ministro. Dele muito mal se diz, a história trata-o como governo facilitador de negócios e da corrupção, vendido ao capitalismo internacional e fonte de partidarização da Administração Pública. Não é bem a história, mas sim os detractores dessa solução política que assim narram. Este governo prestou altos serviços ao país, salvou as finanças públicas, protegeu alguma estabilidade social, económica e política e deu os últimos preparativos para a entrada de Portugal na UE (então CEE). Com e sem erros, com e sem favoritismo, com e sem negocismo, este governo deu um enorme contributo para a democracia.

 

Portugal conheceu, nestes cinquenta anos, muitos outros governos, vinte e quatro. Há lá de tudo. Bons e maus. Curtos e longos. De maioria de um só partido, minoritários, de aliança ou coligação de direita, de conveniência de esquerda, de gestão e com ou sem maioria parlamentar. Não é possível retirar conclusões políticas. Nenhuma solução de governo pode ser classificada como a melhor, sendo que iguais soluções se prestam a diagnósticos muito negativos. Maioria de um só partido? Temos do melhor e do pior. Minoria? Do pior e do melhor. Corrupção e nepotismo? Há contributos das várias soluções maioritárias e minoritárias, monopartidárias ou de coligação. Eficiência e capacidade de realização? Também temos as duas soluções: nem sempre um só partido ou uma coligação. Em poucas palavras: cada tipo de governo já foi capaz de tudo, do pior e do melhor.

 

Podem imaginar-se mil razões e centenas de causas, mas a verdade é que, em Portugal, graças à particular visão que se tem da política, os governos de coligação gozam de má fama. Diz-se que são instáveis, corruptos, dados à mentira e ao favoritismo, ineficientes e instáveis. Quando se fala de “aliança” ou coligação do centro moderado, entre a esquerda e a direita, logo os punhais e as más línguas se preparam. Pior de tudo, é mesmo o “Bloco Central”, protagonizado pela coligação entre o PS e o PSD. Diz-se no espaço público, na imprensa, no Parlamento e nas mesas de má língua, que esse Bloco é o mais corrupto, inepto e ineficiente que se pode imaginar. Mesmo que se possa provar que não, que houve governos de um só partido, ou de maioria parlamentar, mil vezes mais corruptos, nada altera a má reputação do Bloco Central. 

 

E, no entanto, já várias vezes se verificou que tinha sido a boa solução, tinha aumentado a força negocial portuguesa e poderia ter-se revelado mais estável do que as soluções postas em prática. Não é por acaso que vários países, com mais longa experiência democrática do que Portugal, diante de instabilidade ou de crises internas e externas, conhecem episódios de governos de aliança central ou equiparados. Com resultados discutíveis para cada um dos partidos, mas com efeitos positivos para o país, a sociedade e a economia.

 

Entre os argumentos mais frequentes que contrariam os adversários do Bloco Central, conta-se o do receio da extrema-direita (ou da extrema-esquerda, no passado). O enredo é simples. Os dois partidos do centro envolvem-se no governo. Quem fica de fora guarda para si a reserva de energia de protesto e o espaço político e eleitoral. Com o centro ocupado, rapidamente a extrema-direita cresce. Em Portugal, anos houve em que o pavor do comunismo funcionava assim. Agora, é o pânico diante do Chega. Em poucas palavras: se o centro se ocupa com o governo, o Chega rapidamente ameaçará a democracia, ganhará eleições e formará governo.

 

O argumento é sofisticado como uma batata. O Chega desenvolveu-se em períodos de separação entre os partidos do centro. O Chega aumentou em períodos de maioria de um só partido. O Chega cresceu de modo surpreendente, como nunca na história da democracia portuguesa, durante períodos de total separação dos partidos de centro. Os defensores destes pontos de vista inverteram a causalidade dos factos. O Chega cresceu por causa dos maus governos, da insatisfação da sociedade, do aumento das razões de queixa, da absoluta indiferença dos governos perante muitos sectores sociais em crise, da corrupção permanente, da ineficácia da justiça e da falta de resposta dos grandes partidos democráticos. O Chega e a extrema direita são filhos dos desastres da democracia, dos erros dos democráticos, da incapacidade de trabalho conjunto e sério dos partidos democráticos e da fragmentação dos partidos de centro. O Chega e a extrema direita crescem quando a democracia e os democratas falham. Como dizia Ignazio Silone, as extremas direitas não tomam as democracias de assalto, por fora. As democracias morrem por dentro e as extremas de protesto tomam conta dos destroços.

 

Não parece haver, hoje, em Portugal, crise suficiente para gritar “Aqui d’El Rei”! Nem “Ó da Guarda”! Mas o mundo está perigoso, a Europa em crise e a democracia em recuo. Os efeitos desta situação internacional far-se-ão sentir com tanta mais força quanto menos um país pequeno e pobre como Portugal esteja preparado. Vivemos actualmente um momento, não propriamente raro ou inédito, mas pouco frequente, que se caracteriza pelo facto de serem as crises políticas a desenvolver as crises sociais e económicas, não o contrário. Dia após dia, as falhas de Justiça e Segurança são ressentidas pela população. A instabilidade política e partidária destrói o interesse dos cidadãos pela política. A fragilidade das instituições e das empresas agrava as crises políticas. São estas, hoje, as grandes ameaças contra a paz social e o bem-estar colectivo. Não é absolutamente certo, mas a estabilidade política e governamental criada por uma coligação e um governo de centro é o grande trunfo pelas liberdades e pelo progresso.

 

Público, 22.3.2025

Etiquetas:

19.3.25

No "Correio de Lagos" de Fevereiro de 2025

Etiquetas: ,

No "Correio de Lagos" de Fevereiro de 2025

 

Etiquetas: ,

17.3.25

Os 2 arco-íris

 

A foto da direita mostra o ténue arco-íris secundário, 
com a sequência de cores invertida

Etiquetas: ,

9.3.25

PERGUNTA de ALGIBEIRA:


Nestas imagens há algo estranho. O que é?

Etiquetas: ,

8.3.25

Grande Angular - É assim que os homens vivem?

Por António Barreto

Será assim? Mentindo? Fingindo? Acusando sem razão? Disfarçando? Fazendo de conta? Perdendo tempo e energias? Desperdiçando oportunidades? Enganando-se a si próprios? Louvando os seus defeitos e desprezando as qualidades dos seus rivais? Ludibriando os eleitores? Elevando à categoria de arte os mais reles sentimentos? Alimentando a corrupção e deixando vegetar o favoritismo? Sendo complacente com a aldrabice? Praticando o nepotismo e o favoritismo impunes? Escapando à justiça como rápidas aves de rapina?

 

A presente crise de governo, de partidos, de instituições democráticas e de estabilidade não resulta de agitação social, de problemas económicos graves e repentinos, de perturbações internacionais e financeiras, nem de qualquer desastre sanitário, climático ou natural. Pelo contrário, é a crise política, o protagonismo dos políticos, a autoridade política e a condução política do Estado e da nação que criam ou vão criar problemas económicos e financeiros, debilidade institucional, vulnerabilidade democrática e desordem social. E também é a crise política que provoca dois dos fenómenos mais nefastos da vida nacional: a abstenção (ou desinteresse) e o partido Chega.

 

O enredo da crise actual mais parece obra de inspiração do Teatro de Revista. Ninguém mostra bem o que é nem o que quer. Ninguém é o que parece. Ninguém cumpre o que promete. A mentira e a dissimulação são artes criativas, não são defeitos. Nenhum partido deseja eleições. Mas todos acusam os outros de as querer. Todos os partidos garantem que estão prontos para eleições, estão sempre prontos para eleições, mas na verdade não estão preparados, nelas não vêem vantagens seguras porque nelas não adivinham promessas de vitórias. Realmente só querem eleições quando sentem que as podem ganhar ou quando acreditam que podem aumentar, por pouco que seja, os seus grupos parlamentares ou as suas hipóteses de entrar para o governo. Na verdade, estão dispostos a tudo para as evitar. Cedem uma moção de censura, negoceiam uma comissão de inquérito, trocam uma moção de confiança e mercadejam um inquérito da Procuradoria. Ameaçam dizer tudo sobre os outros, contra os outros, mostram-se dispostos a revelar, mantidos em carteira para estas ocasiões, negócios e mentiras dos outros. Tratam das moções de censura e de confiança, ou antes, da vida parlamentar, como quem joga matraquilhos. Aliás, terá sido talvez nestas últimas legislaturas que a actividade parlamentar mais se rebaixou. As comissões de inquérito transformaram-se nas arenas preferidas para as artes e as manhas. O tom do debate conheceu novos precipícios de má-criação e de hostilidade gratuita. As exibições televisivas destruíram a qualidade nobre da discussão parlamentar.

 

Havia quase tudo. Há talvez dez anos, mais ou menos, parecia não faltarem motivos de esperança e energia. Ordem social de qualidade razoável. Algum capital nacional e promessa de muito capital europeu. Números e indicadores económicos que desmentiam os cépticos. Hipóteses de estabilidade política e institucional. Colaboração intencional entre Governo, Parlamento e Presidente da República. Uma atenção cuidadosa do resto do mundo, dos europeus, dos americanos e dos outros continentes, para os trunfos portugueses.

 

Lentamente, paulatinamente, tudo se modificou e tudo se agravou. Cada vez mais os portugueses procuram ir viver para o estrangeiro, sobretudo os jovens, os técnicos, os formados e os quadros. A saúde perdeu o pé e desorganiza-se. A capacidade de oferecer oportunidades aos imigrantes transformou-se numa quase indústria de tráfico ilegal, de redes criminosas, de angariadores sem escrúpulos e de empregadores mestres em exploração do trabalho clandestino. Depois de revelar uma inesgotável energia na sua contribuição para a mudança e o progresso, o turismo transformou-se numa hecatombe destruidora da urbanidade, da qualidade de vida, da solidez económica e da paisagem. Gradualmente, através da segregação social e graças ao descontrolo das políticas demográficas e de imigração, a sociedade portuguesa desenvolve apartheids e inventa novas formas de exclusão. O país parece especializado em oferecer, aos imigrantes pobres, vastas oportunidades de habitação esquelética, de quartos sórdidos, de empregos desvalorizados, de estatuto de inferioridade, de salários miseráveis e de vida paralela. Empresas e sectores públicos foram sendo desbaratados, desorganizados, entregues a outros interesses estrangeiros, públicos ou privados, mas não certamente interpretes do interesse nacional.

 

Há, evidentemente, boas notícias. Nalguns sectores da ciência e da técnica, numa ou noutra arte, na ressurreição de aglomerações do interior ou da província, na actividade cultural de algumas câmaras municipais, na vida de umas tantas empresas de sectores muito especiais e em certas produções agrícolas, como o vinho e as hortofrutícolas em geral. Mas não são essas as tendências dominantes. Os “nichos” de progresso, de justiça, de criatividade e de bem-estar são isso mesmo, “nichos” minoritários. 

 

É assim que os homens vivem? À beira do precipício e a preparar o desastre? Defendendo ferozmente a liberdade de mentir e fingir? É assim que os partidos sobrevivem, mas não é assim que os homens vivem. Por entre dores e sofrimento, no meio de alegrias e felicidade, sempre à beira da contradição, entre a sorte e a ameaça, como talvez dissessem Aragon e Ferré, não é assim que os homens querem viver. Era bom que as elites, os políticos, os artistas e os dirigentes da empresa e do trabalho percebessem.

 

Sabemos que a política é uma actividade humana. Como as outras. Com todos os defeitos e virtudes. Como a economia, a escola, a empresa, a religião, a cultura ou o futebol. Mas também sabemos que a política não é uma actividade como as outras. Porque é feita em nosso nome. 

.

Público, 8.3.2025

Etiquetas:

6.3.25

VAMOS CONTINUAR A FALAR DE TERRAS-RARAS - MONAZITE



Por A. M. Galopim de Carvalho

No passado dia 1, citei os minerais monazite, loparite, xenótima (xenothyme) e bastnasite, como sendo os que designamos por “minerais das terras-raras”. e mostrei um belo cristal de monazite, isolado, euédrico, isto é, que tem todas as faces desenvolvidas (do grego “eu”, que alude a perfeição e “edro” que significa plano, face), de todos o mais importante e conhecido. Dos restantes apenas direi que:

 

- loparite é um fosfato complexo, com cério, lantânio, cálcio, titânio e níquel;

- xenótima é um fosfato de ítrio;

- bastnasite é um fosfato complexo, com flúor, lantânio, cério, ítrio, admitindo trocas com outros elementos do mesmo grupo.

 

O nome monazite, com origem no grego “mona zein”, que, não só alude ao facto de ocorrer em cristais isolados, como ao, então, ser visto como único, no sentido de ser raro.

A monazita é um fosfato (-PO4) de vários metais, entre os quais figuram alguns do grupo das terras-raras, como lantânio (La), neodímio (Nd), ítrio , samário (Sm), gadolínio (Gd) e outros que o não são, como o tório (Th, radioactivo) e o cério (Ce).

São conhecidos quatro tipos diferentes de monazita, assim separados, tendo em conta a composição relativa dos elementos químicos presentes:

 

- monazite-cério (Ce, La, Nd, Th, Y)PO4, em que o cério é o metal mais abundante;

- monazite-lantânio (La, Ce, Nd)PO4, em que o lantânio é o metal mais abundante;

- monazite -neodímio (Nd, La, Ce)PO4, em que o neodímio é o metal mais abundante;

- monazite-samário (Sm, Gd, Ce, Th)PO4, em que o samário é o metal mais abundante.

Os elementos dentro dos parênteses estão ordenados, segundo as proporções relativas. 

 

A monazita é um mineral ligeiramente magnético, de cor geralmente castanho-avermelhada. Os dois tipos com tório são altamente radioactivos, podem ser utilizados em datações de minerais e rochas (geocronologia isotópica).

 

A monazite é bastante resistente, química e fisicamente, sendo muito pouco ou nada afectada pelos agentes atmosféricos responsáveis pela alteração química (“apodrecimento”) das rochas.

Assim sendo, ao apodrecer, a rocha que contenha este mineral na sua composição, liberta-os, praticamente intactos e é, então, que os agentes de erosão, sobretudo, a água, os arranca e os transporta. Por outro lado, a sua dureza (5 a 5,5 na escala de Mohs) confere-lhes relativa resistência ao desgaste (abrasão) provocado pelo atrito com outros grãos minerais, no seio do material essencialmente arenoso, durante o transporte.

 

A sua densidade (4,6 a 5,7), relativamente elevada face às do abundantíssimo quartzo (2,7) e dos feldspatos (2,5 a 2,8), permite que, em termos de gravidade, os seus grãos se concentrem, separando-os dos grãos desses dois minerais menos densos (“minerais leves”). Eles são, portanto, removidos das rochas hospedeiras e transportados pelas águas dos rios, ao longo de grandes distâncias, indo depositar-se e acumular-se em aluviões fluviais e até, mesmo, em areias de praias marinhas.

Ao realizar uma selecção química, mineralógica e gravítica, a Natureza dá origem a depósitos de elevado interesse económico, referidos na gíria profissional por “placers”, do castelhano, banco de areia ou de seixos rolados.

 

Um parêntese para dizer, por outras, que os “placers” são depósitos onde grãos ou fragmentos de minerais mais “pesados” se depositam, enquanto outros, mais “leves”, são constantemente removidos pela força das águas. Este processo concentra, naturalmente, minerais ditos “pesados” muito valiosos, como, por exemplo, ouro, platina, rútilo, monazite, cassiterite, e pedras preciosas como diamantes, rubis, safiras e espinelas, entre outros.

 

Em “placers”, são importantes as ocorrências de monazite na Índia, Austrália, Brasil, Sri Lanka, Malásia, Nigéria, Flórida e Carolina do Norte, nos EUA. .

Também é conhecida em pegmatitos nos estados norte-americanos de Wyoming, Novo México, Virgínia, Colorado, Maine, Carolina do Norte, bem como na Bolívia, brasil (Minas Gerais), Madagáscar, Noruega, Finlândia, Áustria e Suíça.

Em Portugal, ocorre em aluviões, em Monfortinho (Idanha-a-Nova) e em Vale de Coelha (Almeida).

Etiquetas:

5.3.25

FAJÃ, UM ACIDENTE GEOMORFOLÓGICO COMUM EM TODA A MACARONÉSIA



Por A. M: Galopim de Carvalho

Termo de origem obscura, fajã designa uma porção de terra plana, em geral cultivável, de pequena extensão, avançada sobre o mar, constituída, nuns casos, por materiais desprendidos das arribas e, noutros ou por penetração no mar de escoadas de lava descidas da vertente. Estas últimas, designadas por “fajãs de deltas lávicos”, são particularmente resistentes à erosão do mar devido a sua natureza rochosa, basáltica, nas que conheço.

O mais recente delta lávico conhecido, encontra-se nas Canárias, na ilha de La Palma, no município de Tazacorte. Nasceu de um derrame de lava basáltica, descido da arriba, com a duração de três, início 28 de setembro de 2021, durante a grande erupção de Cumbre Vieja, permitindo mostrar com se forma uma fajã de delta lávico.

O conceito de fajã foi objecto de consagração legal, tendo o parlamento açoriano, através do Decreto Legislativo Regional n.º 32/2000/A, de 24 de Outubro, definido que se entende por fajã toda a área de terreno relativamente plana, susceptível de albergar construções ou culturas, anichada na falésia costeira entre a linha da preia-mar e a cota dos 250 m de altitude.

Este pequenos acidentes geomorfológicos são conhecidos em toda a Macaronésia, sendo muito comum nos Açores, em quase todas as ilhas, na  Madeira e em Porto Santo, em muitas ilhas de Cabo Verde e nas Canárias

Nas imagens: o delta lávico em formação, na Ilha de La Palma, e Fajã Grande, na Ilha Graciosa, Açores.

Etiquetas:

1.3.25

Grande Angular - A consciência tranquila

Por António Barreto

Quase nunca falha. Quando um político, governante, deputado ou autarca, um dirigente da Administração Pública, um Magistrado, um empresário ou um agente da autoridade lhe disser, a propósito de casos de corrupção ou equiparados, que “tem a consciência tranquila”, é quase certo, mesmo quase, que tem qualquer coisa que não bate certo. Culpa, cumplicidade ou interesse, não se percebe bem. Mas ninguém acredita. “Ter a consciência tranquila” é uma das piores confissões involuntárias que se conhecem. A tranquilidade da consciência sucede a explicações públicas tardias e incompletas, de transparência discutível.

 

O universo da promiscuidade e da corrupção é tal que não se consegue saber onde começa e acaba, onde é frequente ou raro. Nas autorizações de construção? No futebol? Na venda de património do Estado? Na aquisição pelo Estado de grandes equipamentos, sistemas e material de guerra, etc.? Na aprovação de projectos (comboios, aeroporto, etc.) verdadeiras âncoras de actividades ilícitas?

 

Por outro lado, é verdade que as tradições se têm revelado maleáveis perante este universo das influências e do favoritismo. Colocar amigos, familiares, correligionários e companheiros parece fazer parte do comportamento político. Ocupar lugares na Administração, no sector público e empresarial, nas autarquias e nas empresas é actividade quotidiana. Receber pensões, bolsas, avenças e indemnizações de grandes montantes e enorme escala, em contas estranhas, numeradas ou com pseudónimo, algures no mundo, das Caraíbas ao Luxemburgo, da Ásia ao Próximo Oriente, parece possível. Tomar decisões “estruturais” sobre sectores da economia, empresas e autorizações a longo prazo, que condicionam e facilitam futuros investimentos, processa-se num “caldo de cultura” aparentemente “normal” e “legal”, que pouco tem de um e de outro. Receber presentes, de relógios de pulso e viagens de jacto privado a fundos e doações pode parecer aceitável. Receber comissões fictícias por favores e decisões a tomar, ainda no segredo dos deuses, não parece ser grave. Emprego para a filha e o neto, colocação para o cunhado e a sobrinha ou cargo para a mulher do amigo ou o tio da amiga parece já não chocar, a não ser que seja necessário tornar pública uma campanha de demolição pessoal. 

 

Mas depois… há o clima mental contra os ricos, contra os proprietários, contra quem tem o que quer que seja, capital, acções ou quotas. Parece que só pode fazer política quem tenha a educação restrita, o salário mínimo, um emprego do Estado, uma função na autarquia ou um cargo no partido. Por outras palavras, quem trabalhe para o Estado ou quem ganhe muito pouco e não tenha bens nem propriedades. São ideias macabras que diminuem direitos, criam desigualdades e provocam ainda mais corrupção.

 

Há o ambiente da “ética republicana”, recurso retórico, mas que, na verdade, se traduz simplesmente na regra de fácil acepção: quem tem os votos, manda. Quem não tem os votos, obedece. Quem tem os votos, nomeia e decide. Quem não tem, cala e consente. Evidentemente, há uma variante: a regra republicana aplica-se bem quando somos “nós” quem tem os votos… Quando são “os outros”, a regra então é a de respeitar a oposição, no melhor espírito republicano. Esta “ética republicana”, associada a políticas moderadas e a alianças ponderadas, poderia servir de incentivo às reformas e à moralização democrática da sociedade. Não! Em vez disso, parece ser um estímulo ao favoritismo. 

 

Em tantos casos conhecidos na história recente do nosso país, o problema parece estar mais do lado da explicação do que da acção. Muitas vezes, diante da verdade, os visados reagem mal, não reagem, negam, garantem a consciência tranquila, depois corrigem, logo a seguir rectificam, depois esclarecem, mais tarde clarificam, não sem antes acrescentar uns pormenores que ficaram na penumbra…. Passam dias, semanas e meses, com cenas indecorosas de acusações mais ou menos fabricadas e de defesas pusilânimes, sempre com o esclarecimento mínimo. A cada explicação enviesada, surge mais um pormenor que complica. O que parece uma falta, um esquecimento, cedo se torna num pecadilho, rapidamente transformado em pecado venial, pecado leve, antes de vir a ser pecado mortal e falta grave. 

 

É difícil perceber a razão pela qual, após cinquenta anos de democracia e dezenas ou centenas de casos de corrupção, favoritismo, peculato ou prevaricação, um eleito, autarca, deputado ou governante, não trata, na véspera de tomada de posse, de vender o que tem e não deve ter, de criar um “blind trust” e de revelar tudo o que fez e tem e que possa ser considerado fonte de conflito de interesses. Não se entende a perversão moral e política que leva os eleitos a considerar que “a eles” nunca chegarão, que nunca nada de mal fizeram e que venais são os outros. Não se compreende a razão pela qual um eleito, um político, um alto funcionário não sente sequer o receio do abismo, o medo de ser apanhado, o risco de estar numa posição em que inimigos, adversários, invejosos e justiceiros tudo farão para os descobrir. 

 

No campo das respostas a estes mistérios, há uma primeira, interessante, mas insuficiente. Na verdade, os visados estão de tal maneira cheios de si próprios, convencidos de que a pátria ou a autarquia não podem viver sem eles e certos de que tudo quanto pensam e fazem só pode ser para bem de todos, que não lhes ocorre sequer que o que fazem ou deixam de fazer não o seja em nome da virtude e para o bem de todos. Esta hipotética candura serve para telenovelas, mas não convence.

 

Talvez a resposta seja outra. O que explica a falta de instinto de sobrevivência e a ausência de medo de perda de honra é o sentimento de impunidade. A ideia de que a justiça nunca chega ou, quando chega, é tarde e mal. A sensação de que o processo judicial é de tal modo condicionado, vulnerável, burocrático e injusto, que a “sua vez” nunca chegará. A esperança de que haja sempre meios para convencer jornalistas e outros profissionais a orientar as denúncias e as explicações. A justiça falha neste universo de complacência. Falha o sistema e falham muitos dos seus magistrados e oficiais. Não necessariamente que sejam corruptos, mas não têm noção do que depende deles, do que de importante seria o seu contributo para uma sociedade mais justa. A promiscuidade entre política, Administração e Justiça é tão profunda que a complacência tem esse efeito, o de “normalizar” o que não o deveria ser.

.

Público, 1.3.2025

Etiquetas:

28.2.25

TERRAS-RARAS



Por A. M. Galopim de Carvalho

Terras-raras é hoje um tema actualíssimo no discurso a circular nos media, sem que muitos dos que falam e escrevem e muitos mais dos que ouvem e lêem, tenham conhecimento do que são. Podia não ser assim, mas lamentável e tristemente é esta a nossa realidade. Há décadas que a nossa escola tem vindo a dar diplomas, nas não deu e continua a não dar cultura, seja humanística, seja a científica. É claro que há excepções, mas é da generalidade que estou a falar.

Acontece que, em finais do século XVIII, quer para os químicos como para os mineralogistas, os óxidos da maioria dos metais constituíam um grupo então designado por “terras”, “jorden”, para os suecos, “Erde”, para os alemães, “earth”, para os ingleses, e “terre”, para os franceses. Nós, os portugueses, continuávamos distraídos e já, nessa altura, éramos um povo atrasado, na cauda da Europa.

 

Face ao qualificativo “raras”, toda a gente será levada a pensar que se trada de substâncias que ocorrem em quantidades ínfimas, mas não é o caso. Por serem de difícil separação e por serem apenas conhecidos em minerais oriundos da Escandinávia, foram então (estamos a falar de finais do século XVIII, nos alvores da Química e da Mineralogia) considerados "raros", qualificação ainda hoje utilizada, apesar de alguns deles serem relativamente abundantes na crosta terreste. Todos eles são mais abundantes do que metais como a prata e o mercúrio, por exemplo.

 

Os metais destas “terras”, ou seja, destes óxidos, são, de acordo com o que a Química nos ensina, um grupo de 17 elementos da Tabela Periódica dos Elementos Químicos, dos quais, 15 pertencem ao grupo dos chamados lantanídeos, isto é, os que ali vão do lantânio ao lutécio, aos quais se juntam o escândio e o ítrio, todos eles elementos que ocorrem nos mesmos minérios e apresentam propriedades físico-químicas semelhantes. 

As principais fontes com interesse económico para serem exploradas são alguns minerais relativamente raros (cujos nomes, para quem quiser saber, se indicam no final do texto) e certas argilas ricas em óxido de ferro, qualificadas de lateríticas.

 

Apesar da sua abundância relativamente elevada, como se disse atrás, os minerais das terras-raras são mais difíceis de explorar do que os minerais de metais como o cobre, o chumbo, o zinco e muitos outros. Esta dificuldade torna os metais das terras-raras relativamente caros, pelo que o seu uso industrial foi limitado até serem desenvolvidas técnicas de separação de alto rendimento, tais como, cristalização fraccionada, troca iónica, em meados do século XX.

As terras-raras têm aplicação em grande variedade de modernas tecnologias de ponta, mais que evidente interesse económico, justificativo duma procura que ressalta nos noticiários de todos os dias.

Para os geólogos, as terras-raras ajudam a conhecer as fontes magmáticas de certas rochas, permitem datar alguns minerais, entre os quais, certas granadas, através da abundância relativa do par neodímio/samário. Mas o seu interesse científico não fica por aqui. Alarga-se a determinados campos da Biologia, da Medicina e outros.

Estima-se que grande parte das terras-raras esteja localizada na Ásia, com especial destaque para a China. 

Cientistas de finais do século XVIII, a que se refere o texto acima:

Karl Wilhelm Scheele, (1724-1786), químico sueco; 

e químico sueco;

Torbern Olof Bergman (1749-1817), químico e mineralogista sueco; 

John Lukas Woltersdorf (1721-1772), mineralogista alemão; 

Joseph Priestley (1733- 1804), químico inglês); 

Antoine Lavoisier (1743.1794,) químico francês.

 

Principais minerais com elementos da terras-raras:

monazitebastnasite, xenothyme e loparite. Se quiser saber o que são, procure facilmente na net,

O grupo das terras-raras inclui os seguintes elementos químicos: 

LantânioCério, Praseodímio, NeodímioPromécio

SamárioEurópio, GadolínioTérbioDisprósio, 

HólmioÉrbioTúlio, ItérbioLutécioEscândio e Ítrio.

 

Nota: A Tabela Periódica é uma disposição sistemática de pouco mais de uma centena de elementos químicos, iniciada pelo químico russo Dmitri Mendeleev, em 1869.

Etiquetas:

27.2.25

CLIMAS E PAISAGENS (1)



Por A. M. Galopim de Carvalho

As diferentes paisagens da Terra, em qualquer momento da sua história, foram e são, em grande parte, reflexo das características meteorológicas aí prevalecentes. Esta afirmação é evidente para a generalidade dos cidadãos que, embora nunca tenham formulado esta conjectura, têm-na por adquirida. Sem saírem deste nosso rectângulo, no ocidente da Europa, todos relacionam os campos verdejantes do Minho com a maior pluviosidade anual ali verificada (2000 a 2400 mm) e as terras de sequeiro do sudeste alentejano com os menores valores dessa mesma precipitação atmosférica (<600 mm). 

À escala mundial, a televisão mostra-nos constantemente imagens dos múltiplos visuais do nosso planeta marcadas pelo clima, sejam, por exemplo, a floresta equatorial da Amazónia, os glaciares do sul da Argentina, a pradaria norte-americana ou a estepe siberiana, a tundra boreal ou as areias escaldantes do Saara.

Embora na explicação da paisagem, haja que ter em conta o enquadramento geológico regional, com destaque para a natureza das rochas (granito, xisto, calcário, etc.) que lhes servem de substrato e da respectiva estrutura (modo de ocorrência dos corpos rochosos: homogéneos, estratificados, dobrados falhados, etc.), a influência do clima é muito superior. Face a esta realidade desenvolveu-se um capítulo, comum à geologia e à geografia, conhecido por “geomorfologia climática”, com o estabelecimento de domínios ou regiões morfoclimáticas.

“Faça sol ou faça chuva” é uma expressão vulgar de alusão ao estado do tempo, informação que diariamente nos chega através dos boletins meteorológicos, transmitidos pela televisão, pela rádio e pelos jornais. O estado do tempo, num dado lugar, é uma manifestação de uma realidade mais vasta, própria e à escala do nosso planeta, a que chamamos clima. Em termos muito simples, entende-se por clima um conjunto de fenómenos próprios da atmosfera, na interactividade que estabelece com os oceanos (e os lagos de maiores extensões) e com as terras emersas, nas quais a latitude, a altitude, a interioridade e a cobertura vegetal têm papel mais visível. 

Temperatura, humidade do ar e pressão atmosférica são factores de clima assegurados pela energia radiante do Sol. Relacionados entre si, são os responsáveis pelas situações de tempo quente ou frio, de tempo chuvoso ou de neve ou, pelo contrário, de tempo seco. São ainda responsáveis pela existência de vento, não raras vezes catastrófico, tal a intensidade que chega a atingir. 

O clima condiciona a alteração superficial (meteorização) das rochas, a génese e evolução dos solos, a erosão e transporte (evacuação) dos materiais erodidos (os sedimentos que estão na génese de muitas rochas sedimentares), bem como a ocupação vegetal e animal, incluindo a humana. São as manifestações de clima que, conjugadas com a natureza geológica dos terrenos, determinam o tipo da paisagem que nos rodeia e todas as outras de todos os lugares da Terra.

Ao longo da sua história de milhares de milhões de anos, a mudança das paisagens foi uma constante. Praticamente imperceptível à dimensão temporal de uma vida humana, esta mudança tem pouca expressão no tempo histórico, sendo notável e bem testemunhada à escala do tempo geológico. A paisagem é um sistema dinâmico, só aparentemente estático. É como um simples fotograma de um filme, escreveu Don L. Eicher, em 1970. 

Processos geodinâmicos internos à escala global, com destaque para as translacções continentais e os enrugamentos orogénicos, ocasionaram mudanças de latitude e de altitude e subsequentes modificações climáticas que, por sua vez, determinaram mudanças

na paisagem.

Na Terra só há alteração das rochas, formação de solos e erosão, (três aspectos modificadores do relevo e, portanto, da paisagem), porque há energia solar e porque temos uma atmosfera e uma hidrosfera, duas entidades susceptíveis de captar essa energia e de a transformar no dinamismo necessário aos processos geológicos ocorrentes à superfície e, também, aos biológicos. 

As massas de ar diferentemente aquecidas pelo calor solar dão origem à circulação atmosférica, processo que se traduz na existência do vento. Nas baixas latitudes, nomeadamente nas regiões intertropicais, a incidência dos raios solares aproxima-se e atinge a perpendicular (o Sol está a pique, como vulgarmente se diz), aquecendo o ar mais do que nas latitudes das regiões polares. Nestas, a incidência desses raios é muito oblíqua e, até, rasante, pelo que a temperatura do ar é aí muito mais baixa. Esta diferença de aquecimento faz com que o ar quente suba e o ar frio desça, sendo essa uma das causas da circulação atmosférica (outra causa é da própria rotação do planeta). Por outro lado, a evaporação da água à superfície dos mares, rios e lagos e a resultante da transpiração da cobertura vegetal (uma realidade bem visível nas grandes florestas equatoriais, quentes e húmidas) fornece humidade suficiente para formar nuvens que o vento transporta e descarrega como chuva ou neve, consoante as temperaturas locais. 

É, sobretudo, a esfericidade do globo terrestre e a consequente variação da latitude que determinam a zonalidade climática de que toda a gente tem noção, ainda que sumária e empírica. Mas há outros factores que interferem nessa zonalidade, entre os quais a altitude, a proximidade ou afastamento (interioridade) face ao litoral, a existência ou não de barreiras montanhosas que impeçam a passagem de ventos húmidos e, ainda, a orientação dominante do vento nas fronteiras terra/mar.

Existe, pois, uma dialéctica constante entre o clima e a paisagem, dois aspectos que também ditam a génese e a natureza das rochas sedimentares formadas na sua dependência. As areias das praias portuguesas, à semelhança de outras das regiões de clima temperado a frio, são essencialmente constituídas por grãos de quartzo, mineral oriundo, sobretudo, da desagregação dos granitos e de outras rochas afins, características e abundantes na crosta continental. Parte significativa das areias das praias das latitudes intertropicais é essencialmente calcária, dado que resultam da trituração e acumulação de restos de conchas de moluscos e de outras partes esqueléticas de múltiplos organismos construtores de carbonato de cálcio (algas, corais, etc.) que pululam nessas regiões. São estas areias, excepcionalmente brancas, que fazem a alvura das praias das Caraíbas ou das Bahamas, entre outras, e os característicos tons de azul dos mares de coral. Foram areias deste tipo e vasas finas da mesma natureza que, uma vez litificadas, deram origem a muitos calcários, entre eles os do Jurássico das nossas Serras do Sicó, d’Aire e Candeeiros, bem como do barrocal algarvio, e testemunham o posicionamento tropical destas regiões nesses recuados tempos.

O nosso satélite, embora receba o mesmo tipo de energia, não dispõe destas duas entidades, pelo que não exibe qualquer actividade erosiva para além da resultante dos antiquíssimos impactes meteoríticos. Cessado o vulcanismo que aí existiu e diminuída a intensidade de quedas meteoríticas, as suas paisagens são praticamente as mesmas desde há mais de 3000 milhões de anos.

Nas imagens, o Minho verdejante e o Alentejo a caminho da desertificação.

Etiquetas: