7.12.24

Grande Angular - Mário Soares, europeu

Por António Barreto

antigo regime queria, antes de 1974, uma qualquer forma de associação, distante, leve e possivelmente superficial, com a Comunidade Europeia. Estava satisfeito com a EFTA. Além disso, a Comunidade implicava condições políticas democráticas que as autoridades de então não queriam aceitar. Assim é que se preparava um acordo diplomático. Depois de 25 de Abril, o debate foi aberto e novas hipóteses estavam em causa. Os Liberais do marcelismo e os principais do PPD queriam um novo contrato de associação. Talvez um pouco mais pormenorizado ou mais vinculativo do que durante o anterior regime, mas só associação certamente. Garantiam que Portugal não estava preparado, que a economia ainda não estava à altura da concorrência europeia, que o proteccionismo era necessário e que as empresas portuguesas tinham de ser defendidas. A EFTA era uma boa alternativa.

 

As esquerdas do PCP queriam tudo menos a Comunidade Europeia, que consideravam capitalista e contrária ao socialismo que se preparava vigorosamente em Portugal. Os comunistas olhavam mais para Leste, União Soviética e seus satélites, países com os quais se deveriam desenvolver relações o mais rapidamente possível. Preparavam-se afanosamente acordos políticos e tratados comerciais, incluindo cooperação em matéria de energia nuclear, a fim de explorar e consolidar este novo horizonte estratégico. Era claro que o objectivo não seria o de integrar o Pacto de Varsóvia. E os soviéticos não estavam muito interessados em arranjar uma nova Cuba na Europa. Mas ficar longe da Comunidade Europeia e da NATO era a prioridade.

 

Os restantes grupos esquerdistas, sobretudo o MES e a UDP, assim como as facções radicais do MFA, estavam mais virados para outros continentes, para países africanos, árabes e latino-americanos. Assim como para países europeus vagamente dissidentes do universo soviético. A Cuba de Fidel de Castro, a Líbia de Kadhafi, o Iraque de al-Bakr ou Sadam Hussein, a Roménia de Ceausescu e a Jugoslávia de Tito eram alternativas e mereciam atenção. Aliás, quase todos estes dirigentes foram, naquela altura, convidados a visitar Portugal e seriam anfitriões de importantes delegações portuguesas. A independência nacional e a autonomia perante o capitalismo e as grandes potências eram os argumentos essenciais. Mais ainda: uma terceira via entre o capitalismo ocidental e o comunismo soviético surgia como hipótese atraente.

 

No PS, a situação era mais difícil. O PS de direita queria uma associação solta e distante com a Europa. Um contrato de associação parecia satisfatório, pelo menos para os primeiros tempos. Europeus sim, mas devagar. Havia medo por causa das empresas portuguesas que não estavam preparadas para a concorrência. O PS de esquerda preferia relações com o Terceiro Mundo, países africanos e árabes. Ao contrário dos esquerdistas, os seus porta-vozes queriam a democracia, seguramente, mas receavam a ingerência capitalista. Pensavam ainda que, com os produtores de petróleo e de matérias-primas do Terceiro mundo, era possível desenvolver vias alternativas. O PS do centro, se é que assim se pode chamar, era favorável à adesão Comunidade Europeia sem reservas. E quanto mais cedo melhor.

 

Não houve sondagens, mas é pouco provável que a maioria do PS fosse favorável à adesão plena à Comunidade. As reticências da direita e da esquerda militavam a favor de um compasso de espera, de um adiamento para melhor esclarecimento. Mas os que eram favoráveis à plena adesão tiveram em Mário Soares imediatamente, sem hesitações, a vontade de adesão, sem espera, sem períodos de transição e sem associações especiais que diminuíssem o gesto. As questões especiais dos preços da agricultura, da protecção das empresas portuguesas e do respeito pelas regras do “acquis communautaire” eram secundárias. Mário Soares pensava que a Europa ou a Comunidade Europeia era um atalho para a liberdade, uma garantia para a democracia. A adesão à Europa não era um projecto económico e financeiro, era um desígnio político. Com a Europa, vinham as liberdades e os direitos dos cidadãos, o respeito pela dignidade humana, as garantias dos parceiros e o apoio a dar, em caso de necessidade, a uma democracia recente e inexperiente. Sem falar na cultura ocidental e na história europeia.

 

Naquela altura, a esquerda democrática europeia tinha voz e peso. Momentos houve em que a maioria dos governos era composta de socialistas, social-democratas e aparentados. Nomes de homens de Estado de excepcional envergadura marcavam as políticas europeias. Willy Brandt e Helmut Schmidt, Olaf Palme, Harold Wilson e James Callaghan, François Mitterrand, Jacques Delors e Michel Roccard eram desse tempo, quase todos vieram a Portugal, todos apoiavam Mário Soares e a democracia portuguesa e com todos Mário Soares fez amizade pessoal.

 

Em Fevereiro de 1977, o Primeiro-ministro Mário Soares fez viagens a todos os países da Comunidade, assim como à sede em Bruxelas e ao Vaticano, a fim de apresentar a candidatura portuguesa a uma adesão plena. Antecipavam-se dificuldades, sobretudo por causa da junção das candidaturas portuguesa e espanhola. Os europeus receavam a dimensão e a produtividade da agricultura de Espanha. Além disso, pensava-se que as boas palavras dos políticos europeus relativamente à adesão de Portugal escondiam reservas e contrariedades dos técnicos e dos economistas. A primeira viagem do périplo meticulosamente organizado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros começava por Bruxelas. No momento da partida, no aeroporto, estavam presentes todo o governo e metade das autoridades. A sala dos VIPS para chegadas e partidas era uma colossal festa. Mesmo em cima da hora de partida, revelando uma desconhecida ansiedade, Soares queria saber tudo dos preparativos. Se todos os dirigentes Europeus estavam devidamente informados. Se os políticos europeus, especialmente os social-democratas, estavam sensibilizados. Discretamente, virando-se para dois ou três ministros mais próximos, Soares perguntou quase sussurrando: “E se eles disserem que não?”. Medeiros Ferreira, o Ministro dos Negócios Estrangeiros que tinha tudo preparado, garantiu: “Eles não podem dizer que não, senhor Primeiro-Ministro. Está tudo preparado”. Dois segundos depois, Soares murmura: “Que Deus o ouça”! E ouviu, pelos vistos!

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Público, 7.12.2024

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4.12.24

CONVITE

 



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3.12.24

NO PRINCÍPIO ERA O MAGMA”


Por A. M. Galopim de Carvalho

Após a acreção do protoplaneta que antecedeu a formação deste maravilhoso corpo planetário que nos deu berço, e na sequência dos processos que determinaram a sua diferenciação como planeta (nomeadamente e em especial, a contracção gravítica e a formação núcleo), a Terra acumulou uma quantidade de calor tal que se converteu numa imensa “bola” incandescente.

Durante as primeiras centenas de milhões de anos, este nosso hoje “Planeta Azul” esteve envolvido num “oceano” de magma, em resultado da fusão da sua parte mais externa, “oceano” cuja profundidade teria sido da ordem de algumas centenas de quilómetros. Foi a partir da capa mais superficial deste invólucro ígneo que, por arrefecimento posterior, se formou a primitiva crosta terrestre (com mais de 4000 milhões de anos, praticamente desaparecida na sequência da contínua renovação da crosta determinada pela chamada tectónica de placas), separada de uma outra entidade, que se lhe segue em profundidade, também ela já parcialmente arrefecida, a que foi dado o nome de manto.

Entendendo por magmatismo o processo natural através do qual um material fundido, a que se convencionou chamar magma, conduz à formação das rochas (ditas magmáticas), temos de concluir que este processo geológico é uma constante na história do nosso planeta (e do Sistema Solar) e que está na origem de todos os tipos de rochas (petrogénese). Com efeito, não haveria rochas sedimentares sem as magmáticas preexistentes, nem rochas metamórficas sem que, pelo menos, tivesse existido um destes dois tipos de rochas. É, assim, lícito pensar que o mesmo acontece nos planetas telúricos, nossos vizinhos, e noutros de outros sistemas planetários da nossa e de outras galáxias. 

O magmatismo é, pois, uma das fases da evolução da matéria no quadro universal da sua história, como são, entre outras:

- a nucleossíntese que dá nascimento aos elementos químicos, em grande parte no interior das estrelas e na sequência das explosões (supernovas) que lhes ditam o fim; e

- a quimiossíntese que, por junção dos elementos químicos, dá origem aos compostos, entre os quais os minerais, fase esta que inclui o magmatismo e os restantes processos petrogenéticos, para além de outros, como são os biogénicos.

Foi através do magmatismo que a Terra, em formação, libertou uma atmosfera primitiva, rica (entre outros componentes) em vapor de água e dióxido de carbono. Foi a partir deste vapor de água que se formou, por condensação, grande parte da hidrosfera. E, na medida em que a vida foi gerada nas águas, torna-se evidente a sua dependência do processo magmático. Assim, é lícito pensar que, 

sem magmatismo, a biodiversidade, tal como a conhecemos, não teria existido. 

Também os seres das profundidades oceânicas associadas a fontes hidrotermais e a chaminés negras (um ecossistema muito particular que só há mais de três décadas foi conhecido) dependem absolutamente da actividade magmática, neste caso, submarina. 

Do mesmo modo, a atmosfera actual (a que hoje respiramos e que diariamente poluímos em nome do chamado desenvolvimento), na qual o oxigénio resulta da actividade biológica das plantas com clorofila, é uma consequência, embora indirecta, do magmatismo.

Os magmas que, desde a existência de uma litosfera (conjunto da crosta e da capa rochosa do manto nascidas da diferenciação do planeta) geraram e continuam a gerar as rochas que, por isso, apelidamos de magmáticas, nasceram e continuam a nascer da fusão de rochas da crosta ou do manto superior, a temperaturas que variam entre cerca de 850°C, num xisto argiloso, em profundidade, na crosta continental, e em presença de água, e cerca de 1300°C num peridotito do manto, na ausência de água. No que se refere às pressões, o fenómeno pode verificar-se entre cerca de 3 a 4 atmosferas, a 10 km de profundidade, e várias dezenas de atmosferas, 100 km mais abaixo. 

Ao nível da crosta a fusão dos materiais rochosos, isto é, a geração de um magma acontece associada ao metamorfismo de grau mais elevado, no decurso da formação de uma cadeia montanhosa (orogénese). No manto, a fusão é praticamente anorogénica, isto é, não envolve compressões tangenciais. Está, sim, relacionada com movimentos verticais e diminuição de pressão ou com penetração de fluidos aquosos.

A comparação frequente do magma com a lava incandescente ou ígnea saída dos vulcões, embora sugestiva, não é correcta. Deve acentuar-se que a lava já não é, exactamente, um magma, dado que, ao descomprimir-se na saída para o exterior, perde parte dos seus componentes gasosos (vapor de água, dióxido de carbono, entre outros) e, ao arrefecer, permite a cristalização (solidificação) prematura de alguns minerais (como é o caso dos cristais de olivina ou de augite em alguns basaltos) que, por acção gravítica, decantam no fundo da câmara magmática, saindo também desse fundido, empobrecendo-o. 

Um material assim, como o que se vê transbordar do vulcão e fluir à superfície, em que coexistem grãos cristalinos (sólidos), material ainda fundido e apenas parte dos gases que inicialmente o formavam, já não deve ser considerado um verdadeiro magma embora tenha mobilidade. 

É curioso assinalar que, na origem, a palavra “magma significa” “massa empedernida”. Não obstante este significado, a petrologia adoptou essa mesma palavra para designar o material ainda em fusão (na totalidade ou em parte) que, por arrefecimento, consolida e, só então, se torna pedra.

Do ponto de vista composicional, o magma pode ser então definido como um fundido de substâncias químicas, na grande maioria silicatos, existente em zonas mais ou menos profundas do planeta que, em virtude da temperatura e da pressão a que está sujeito, se mantém, pelo menos em parte, no estado líquido e, como tal, flui, ou seja, tem mobilidade. Neste banho e com uma representação muitíssimo inferior à dos silicatos, podem existir óxidos, em particular os de ferro, de titânio e de crómio, sulfuretos, fosfatos e carbonatos.

Como numa sopa quente, além do caldo, que nesta imagem exemplifica a parte fundida, podem coexistir no magma fases sólidas, representadas pelos minerais, e gasosas (vapor de água, dióxido de carbono, gás sulfídrico e outros) que lhe são próprios, de que podemos ter uma ideia através das manifestações secundárias do vulcanismo, como são as mofetas e as sulfataras. As fases sólidas, quando presentes no magma, estão expressas pelos minerais que, por serem mais refractários (isto é, com um ponto de fusão mais elevado), cristalizaram prematuramente no seio do líquido magmático, o que não impede a mobilidade do conjunto, que poderá fluir enquanto houver uma fase fluida, ainda que residual, a assegurar-lhe essa característica implícita na própria definição de magma. É o que acontece, como se disse atrás, com os cristais de olivina e ou de augite em certas lavas de natureza basáltica.

Como ingredientes fundamentais do magma figuram quase sempre pouco mais de uma dezena de elementos químicos, os mais abundantes na crosta terrestre, e, por isso, ditos principais ou maiores (do inglês “major elements”), cujas percentagens, respectivamente, em peso e em volume são:

........... Oxigénio (O): 46,6% peso; 93,8 % volume

........... Silício (Si): 27,7% peso; 0,8 % volume

........... Alumínio (Al): 8,1% peso; 0,5 % volume

........... Ferro (Fe): 5,0% peso%; 0,4% volume

........... Cálcio (Ca): 3,6% peso%; 1,0% volume

........... Sódio (Na): 2,8% peso; 1,3% volume

........... Potássio (K): 2,7% peso; 1,8 % volume

........... Magnésio (Mg): 2,1% peso; 0,3 % volume

São estes, pois, os principais constituintes dos minerais das rochas magmáticas, entre os quais, como se disse, os silicatos que, por si só, representam cerca de 99% da crosta terrestre. A análise química destas rochas revela, ainda, manganês, fósforo, titânio, carbono, enxofre e hidrogénio praticamente sempre presentes, embora em muito menores percentagens.

Parte da água inicialmente contida no magma entra na composição de certos minerais, outra perde-se, quer em profundidade, no interior da crosta, indo alimentar outros processos petrogenéticos, quer à superfície, no vulcanismo. É esta água no estado de vapor que, com o dióxido de carbono e outros gases de menor representatividade igualmente libertados do magma, se evola nas erupções vulcânicas, originando os espessos “fumos” brancos que se dispersam no ar, acompanhando quer as projecções sólidas de piroclastos, quer a saída e progressão da lava.

Para além dos já referidos elementos principais ou maiores (por definição, aqueles cujas percentagens, em peso, nas rochas é superior a 1%), há ainda a considerar os elementos menores (do inglês, “minor elements”), entre os quais bário, chumbo, cobre cobalto, níquel, ouro, prata e muitos mais, cuja presença nas rochas se situa, em termos percentuais, abaixo de 1%. Nestes há que distinguir elementos secundários (entre 1% e 0,1%) e elementos vestigiais ou elementos-traço (do inglês, “trace-elements”) que, como o nome indica, estão representados em quantidades ínfimas. A presença de elementos-traço na composição dos minerais e das rochas é hoje fácil e rotineiramente pesquisada nos estudos petrológicos e geoquímicos. Consoante o rigor exigido pelas análises ou possibilitado pelos equipamentos disponíveis, a sua quantificação é expressa em ppm (partes por milhão) ou em cifras ainda menores, em ppb (partes por milhar de milhões). O termo oligoelemento (do grego, “oligós”, ínfimo), usado por alguns autores, é ambíguo, pois tem sido usado quer como sinónimo de elemento menor quer como de elemento-traço.

No que se refere ao nosso planeta, o magmatismo foi e é uma constante na respectiva dinâmica global, quer sob a forma de vulcanismo e subvulcanismo (ascensão de magma que acaba por arrefecer e solidificar a pequena profundidade, antes de atingir a superfície, como aconteceu com os maciços de Sintra, Sines e Monchique), quer de plutonismo (arrefecimento e solidificação em profundidade). Pelo que conhecemos da história da Terra, temos de admitir que o magmatismo sempre antecedeu e antecede os outros dois processos petrogenéticos (a sedimentogénese e o metamorfismo). Com efeito, só depois das primeiras rochas (magmáticas) formadas à superfície da Terra estarem expostas aos agentes externos é que pôde ocorrer a sua erosão seguida de sedimentação e/ou a sua transformação em rochas metamórficas.

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30.11.24

Grande Angular - Perigo e fantasia: Uma encenação

Por António Barreto

Segurança está na ordem do dia. Dos cidadãos e das famílias. Dos homens e das mulheres. Dos adultos e dos jovens. Dos velhos e das crianças. Das instituições e das empresas. Dos nacionais e dos estrangeiros. No mundo inteiro, a insegurança cresce. É o que provam os factos, as observações e os sentimentos. Há países (Brasil, Estados Unidos, México, Colômbia, Nigéria, Quénia, Congo, África do Sul e outros) com inacreditável número diário de crimes, atentados, agressões, roubos e destruições. Portugal estaria entre os países do grupo com menos crimes e atentados. Ainda bem. Mas toda a gente sabe que o sentimento de insegurança, aqui e lá fora, cresce todos os dias. É o que a sociedade contemporânea produz.

 

Segurança consiste na certeza ou na esperança de que a integridade física dos cidadãos, os seus direitos, a sua liberdade, os seus familiares, os seus bens e a sua tranquilidade são respeitados ou protegidos.

 

É a confiança em que, se cumprir os meus deveres, ninguém, pessoa ou instituição, ofende os meus direitos e que, se o fizer, haverá repreensão.

 

Segurança é a esperança de que a justiça apure, julgue e castigue quem atenta contra a liberdade e os direitos dos cidadãos.

 

É a certeza de que nunca serei incomodado por exprimir a minha opinião, nunca me será indevidamente retirado o direito à palavra e nunca serei objecto de represálias por causa das minhas opiniões.

 

É a expectativa de poder rezar aos meus deuses, ou a nenhum, sem ser incomodado por quem reza a outros.

 

Segurança consiste no sentimento de que alguém acorre quando sou ameaçado na rua, quando entro em casa e encontro ocupantes indevidos, de que alguém ajuda quando o marido, o pai ou o filho agridem e espancam as mulheres.

 

É a sensação de que alguém responde quando chamo o 112 ou o INEM, quando estou em sofrimento ou com dores de parto, quando telefono aos bombeiros, quando sinto fumo e fogo em minha casa ou na da vizinhança.

 

É a possibilidade de passear em qualquer parte da cidade, sem recear violência e com a certeza de que não há bairros interditos, áreas de acesso reservado e ruas perigosas. 

 

É a esperança de que alguém, polícia ou autoridade, responde prontamente aos meus apelos quando alguém ameaça os meus filhos, viola a minha filha, bate nos meus pais e agride a minha mulher. Ou alguém que faça tudo isso a mim próprio.

 

É a esperança em que bombeiros ou policias, voluntários ou assistentes, ajudam e acorrem quando a casa pega fogo, quando se sente inundação ou tremor de terra, quando alguém pretende roubar os meus bens e assaltar a minha casa.

 

É a certeza de que posso sair à noite, passear nas ruas da cidade, ver os meus filhos frequentar locais públicos sem serem agredidos e roubados e de que, se acontecer, os culpados são perseguidos, detidos e castigados.

 

É estar convencido de que nas escolas não há bandidos, traficantes, assaltantes e outros meliantes a agredir, enganar ou magoar os meus filhos.

 

É a convicção de que, no meu trabalho, nos comboios, nos autocarros, no metropolitano, nos serviços públicos, eu e os meus não somos assediados, incomodados, agredidos, roubados e espancados, e de que, se o formos, podemos pedir socorro e ajuda, e de que alguém virá, e de que, se não for o caso e ninguém chegar a tempo, alguém, serviço ou instituição, investigará, descobrirá, deterá e castigará.

 

É a impressão de que os mais vulneráveis na sociedade, velhos, crianças, doentes, pobres e sem abrigo são protegidos, de que alguém está atento à sua situação e aos seus pedidos de socorro.

 

É ter a ideia de que as ruas e os espaços públicos não estão cada vez mais perigosos, com mais imprevisibilidade e com menos liberdade e sem paz.

 

Insegurança, em Portugal, hoje, é este sentimento crescente, fundamentado ou não, comprovado ou não, de que a vida, a tranquilidade, a liberdade e os direitos individuais estão a ser ameaçados, de que o espaço público é perigoso e de que temos cada vez mais de nos abrigar em espaço privado e em casa.

 

Insegurança consiste em viver anos à espera de julgamento, de investigação, de detenção e de castigo de quem atentou contra os meus direitos, contra a minha integridade física, contra os meus bens e contra a minha liberdade.

 

É a crença fundada em instituições que servem para prever e prevenir, para estudar as condições de vida e de segurança, para procurar culpados e malfeitores, para julgar e castigar bandidos.

 

Era disso tudo e muito mais que o Governo se deveria ocupar em matéria de segurança. Com serenidade, com sentido do dever e com a certeza de que estava a tocar em zonas complexas de sentimentos e da razão dos cidadãos. Com uma longa e recatada preparação, com uma revisão profunda da situação actual e com um exame sério e honesto das fragilidades actuais. Era sobre isso que o Governo deveria fazer leis, organizar instituições, avaliar organismos e ouvir as populações. Em vez disso, o Governo organizou uma operação quase imoral de propaganda e dissimulação.

 

Por estranhas razões políticas e publicitárias, por motivos partidários ou fúteis, por vaidade ou oportunismo, o Primeiro-Ministro e um “bouquet” de autoridades decidiram apresentar-se ao país, em comunicação solene, para falar de segurança de nós todos. O anúncio foi feito com circunspecção durante a tarde desse dia. “Às 20.00 horas, o Primeiro Ministro fará uma alocução ao país”. Vinte horas. Horário nobre, diz-se na gíria. Cinco ou seis estações prepararam as suas equipes, câmaras, comentadores e jornalistas. Sabia-se apenas que estava em causa a segurança dos portugueses. A cena seria precedida de reuniões do Primeiro ministro com as ministras da Justiça e da Administração Interna, além dos chefes das polícias. Às 20.00, ao mesmo tempo, em directo, como se fosse um país em guerra, sob uma ditadura ou em pleno PREC, oito canais de televisão transmitem a alocução.

 

Esperava-se o pior. Coisa pesada. Medidas sérias. Revelações importantes. Ou diagnóstico dramático. Enfim, qualquer coisa que justificasse a expectativa e a solenidade.

 

Não aconteceu nada. E se aconteceu, não se percebeu. E se se percebeu foi inútil e risível. Submeter a segurança dos cidadãos, as suas fantasias, os seus fantasmas e os seus pesadelos, às necessidades publicitárias do governo ou dos partidos é gesto condenável. Fazer demagogia com a incerteza e a insegurança dos cidadãos é gesto política e moralmente reprovável.

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Público, 29.11.2024

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29.11.24

“Aprender a gostar de Saber”


Por A. M. Galopim de Carvalho

Respondendo ao desafio dos meus leitores no Facebook, dei à estampa, em 2023, “Ao Romper da Aurora”, uma primeira parte do conjunto seleccionado dos posts ali publicados ao longo dos últimos nove anos. “Aprender a gostar de Saber” é a segunda parte dessa selecção. Diga-se que o título escolhido para este último livro, reflecte o que foi a minha prática como professor, procurando e conseguindo lovar os alunos a encontrarem beleza nas matérias em estudo. Reflecte igualmente a resposta que me pareceu dever dar aos retornos de muitos dos meus mais de 37 000 leitores no Facebook, que, cada um à sua maneira, me têm feito saber que o convívio diário, mantido comigo, através da leitura, têm aprendido a gostar de conhecer matérias que desconheciam, que conheciam mal e, até, aquelas que achavam desinteressantes ou, mesmo, que detestavam. Algo no género «eu detestava geologia, mas, com os seus textos, aprendi a gostar de tudo o que esta disciplina nos ensina».

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27.11.24

O GRANITO PARA LÁ DE GEOLOGIA - Anta Grande do Zambujeiro




Por A. M. Galopim de Carvalho

Entre os muitos monumentos megalíticos, de tipo dolmen, existentes em Portugal, a Anta grande do Zambujeiro, junto à Herdade da Mitra, próximo de Valverde (concelho de Évora), é uma das maiores existentes na Península Ibérica. Declarada Património de Interesse Nacional, em 1971, encontra-se actualmente em sério risco de colapso e num lamentável estado de degradação. 

Datada de há 6000 a 5500 anos, é formada por uma câmara poligonal, limitada por sete grandes esteios, na ordem dos 8 metros de altura bem cravados no chão, O chapéu com cerca de 7 metros de diâmetro, está partido e jaz a poucos metros da câmara. Entra-se aqui por um corredor com 12 metros de comprimento, 1,5 metros de largura e cerca de 2 de altura. À entrada um enorme esteio tombado, que não chegou a ser utilizado.

Todo o espólio reunido na escavação (por Henrique Leonor Pina) está guardado, mas não estudado, no Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, em Évora.

Oportunamente, propus à autarquia que incluísse no programa de Évora capital europeia da Cultura, em 2027, a conclusão do projecto concebido para a sua conveniente utilização como monumento visitável.

 

Cromeleque dos Almendres

Exemplo maior do megalítico europeu, o cromeleque dos Almendres orientado segundo a direcção poente-nascente, desce do chamado Alto das Pedras Talhas (413 m de altitude) por uma encosta suave bem alentejana voltada a leste na Herdade dos Almendres, localizada na freguesia de Nossa Senhora de Guadalupe, a cerca de 12 km a oeste da cidade de Évora, com fácil acesso a partir da estrada nacional de Évora para Lisboa, ao km 10.

Diga-se, antes de mais, que a palavra cromlech, do galês antigo, que quer dizer pedra grande arredondada, já era usada no século XVII para designar este tipo de monumento megalítico. Nela, o elemento lechsignifica pedra.

Muitos dos megálitos (nome de cada uma destas pedras grandes, do grego mega, grande, e lithos, pedra) ali reunidos têm a forma ovóide dos grandes recipientes de barro, as ditas talhas, em que, no Alentejo, se fermentava o mosto e guardava o vinho e, daí, o nome do sítio. São todos de granito ("lato sensum"), entre granodioritos e quartzodioritos, de vários afloramentos da região, alguns transportados de distâncias superiores a 2 km. 

Guindado à condição de maior conjunto de menires da Península Ibérica, o Cromeleque dos Almendres é considerado um dos maiores e mais importantes monumentos deste tipo no mundo, bem mais antigo do que o conhecidíssimo Stonehenge, e pôs o Alentejo e Portugal na rota de especialistas neste domínio do saber.

Datado de há cerca de 7000 anos, no Neolítico, segundo alguns autores, este cromeleque, que é constituído por dois recintos geminados, um maior de forma elíptica, a poente, e um menor e circular, a nascente, edificados em épocas distintas, aponta no sentido da sedentarização do povo que aqui viveu. Estudos arqueológicos realizados no local por especialistas fazem supor que o conjunto foi edificado em diferentes etapas, durante o Neolítico, Uma no final do Neolítico antigo (fim do sexto milénio a.C.), com a reunião de um conjunto de menhires de pequeno tamanho, agrupados em três círculos concêntricos (o maior com cerca de 20 m de diâmetro). Outra com a formação de duas elipses concêntricas (a maior com cerca de 44 m por 36 m) coladas a oeste dos citados círculos de recinto mais antigo. Uma última, no Neolítico final (terceiro milénio a.C.) com modificações dos dois recintos, em particular do menor, transformado num átrio do recinto maior. 

Quando completo, o conjunto dos menhires teria ultrapassado a centena, de tamanhos diversos. Destes, ainda restam noventa e dois, desde os mais pequenos, pouco ou quase nada afeiçoados, aos maiores (com 2,5 a 3 metros de altura), lembrando as ditas talhas, em muito bom estado de conservação, uns com pequenas covas centimétricas (covinhas) e outros decorados, exibindo relevos ou gravuras.

Classificado como Imóvel de Interesse Público desde 1974, e como Monumento Nacional, em 2015, o Cromeleque dos Almendres, descoberto em 1964 por Henrique Leonor Pina foi, desde então, objecto de várias acções de escavação e restauro. Faz parte do universo megalítico eborense e está relacionado com diversas antas, com destaque para a do Zambujeiro, bem perto dali, e dois outros monumentos próximos, os Cromeleques da Portela de Mogos, e Vale Maria do Meio.

 

Menhir dos Almendres

Importante megálito de granito porfiróide, menhir é o que o vulgo chamava pedra alçada ou “pera fita” de forma fálica, com cerca de 3,5 metros de altura a partir da superfície do terreno e secção, grosso modo, elíptica com 1,20 x 0,80 metros. Está localizado na freguesia de Nossa Senhora de Guadalupe, no concelho de Évora, no topo de uma encosta, 1,3 km a nordeste do Cromeleque dos Almendres, supondo-se haver íntima relação, entre ambos, dado que o seu alinhamento coincide com o nascer do Sol no Solstício de Verão.

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23.11.24

Grande Angular - Novembro!

Por António Barreto

Em 25 de Novembro de 1975, deu-se um confronto político e militar benfazejo. De um lado, tudo o que, sendo de esquerda, não era democrático, era revolucionário, desejava liquidar a iniciativa privada e o capitalismo, impedir a livre elaboração da Constituição, evitar as eleições legislativas previstas para uns meses depois, afastar a ideia de um Parlamento eleito e plural, erguer obstáculos à criação de um regime democrático parlamentar parecido com o que vigorava em praticamente todos os países ocidentais e europeus. Pretendiam transformar em órgãos de soberania os poderes de organismos não eleitos, como as comissões de trabalhadores e de moradores, os sindicatos e outros “órgãos de poder popular”, segundo a terminologia da época. Neste lado, brilhavam o Partido Comunista Português e o MDP, sua excrescência. E também outros epifenómenos revolucionários como a UDP, o MES, a FEC-ML, o PUP e a LCI. E sobretudo oficiais e unidades militares identificados com as facções revolucionárias do MFA. Todos estes activistas menores detinham a iniciativa e a ribalta, mas quem realmente tinha peso era o PCP.

 

Do outro lado, estavam oficiais e unidades militares comprometidos com o 25 de Abril e entregues definitivamente à ideia democrática, pela qual se tinham elevado um ano antes. Uma grande parte da instituição militar estava interessada no programa de democratização e de Estado de direito. É bem provável que militares afectos ao antigo regime se encontrassem neste campo político e institucional, tal como outros estavam na área revolucionária. Mas a direcção e o protagonismo deste universo político e militar pertenciam sem qualquer dúvida aos militares empenhados no 25 de Abril e que, cada vez mais, se identificavam com a Forças Armadas nacionais e se afastavam do activismo onírico revolucionário.

 

Ainda deste último lado, na sociedade civil, encontrava-se tudo o que era democrático, a começar pelo Partido Socialista, que muito cedo percebeu que seria a primeira vítima da revolução. Mário Soares compreendeu, desde 1974, que o futuro da democracia em Portugal, assim como dos socialistas, dependia da capacidade de oposição aos projectos comunistas e aos delírios revolucionários. A seguir ao PS, o PPD (futuro PSD), animava vastas áreas de população interessada em resistir ao comunismo e à revolução, tanto quanto em contribuir para uma democracia parlamentar. Outros pequenos partidos e movimentos, várias instituições (a começar pela Igreja Católica) e gente de todas as classes sociais e profissionais, lutavam pela democracia e contra a revolução. Evidentemente que, no meio da multidão, não faltavam, em números insignificantes, gente do antigo regime e fascistas de velha criação ou nova semente. Sentido de oportunidade? Talvez. Mas essas pessoas também tinham direito à vida, que era o que a democracia lhes concedia, como a toda a gente. Como até aos revolucionários antidemocráticos que a queriam derrubar.

 

Em poucas palavras: em Novembro de 1975, estavam, frente a frente, a revolução e a democracia. Mais precisamente, 20% dos portugueses a favor da revolução contra 80% dos portugueses favoráveis à democracia. Por entre golpes e contragolpes, ameaças e armadilhas, os militares da democracia derrotaram os da revolução. E os democratas derrotaram os revolucionários. Sem apelo nem agravo. E, contrariamente à tradição das revoluções, os vencedores não mataram, não proibiram, não liquidaram os derrotados, deixando-lhes, fazendo disso questão, um lugar no Estado democrático. É disto que se fala, quando se fala do 25 de Novembro. É dos militares do Grupo do Nove, de Melo Antunes, Vasco Lourenço e seus amigos. É dos militares da instituição militar dedicados à democracia, com Ramalho Eanes à cabeça. É dos militares operacionais, como Jaime Neves, que correram riscos pela democracia.

 

Aquilo a que temos assistido, há vários anos, é esta espécie de entremês medíocre ou de futilidade palerma que é a dança de argumentos e disparates sobre o 25 de Novembro. Mais ou menos importante do que o 25 de Abril? Foi o regresso dos fascistas com a conivência dos socialistas? Foi uma armadilha da direita em que caiu o PS? E como se vai comemorar? Igual a Abril? Ou em vez de Abril? Ou como Abril com menos minutos, menos hino e menos bandeira? E comemora-se na Assembleia, no hemiciclo ou nas enxovias? E se fosse só numa caserna para mostrar que aquilo foi coisa de militares e que nada teve de socialismo nem de democrático?

 

O que os socialistas fizeram, mais uma vez, mas agora parece que definitivamente, foi entregar o 25 de Novembro à direita. Pagar mais um preço à “geringonça de esquerda”. Colaborar com a ideia de que o 25 de Novembro foi um movimento militar de direita destinado a correr com as esquerdas e com os partidos do 25 de Abril. Aceitar a tese de que os socialistas tiveram esse desvio de direita, mas que hoje estão muito distantes dessas fantasias e que a sua política é à esquerda, com os partidos de esquerda, contra todos os partidos da direita. Confirmar o boato que diz que Mário Soares teve devaneios com a direita, um deles a 25 de Novembro, mas que isso lhe passou depois. Afirmar que o 25 de Novembro não pertence ao património da democracia, muito menos à história do PS. Sublinhar que primeiro vem o socialismo e o partido, só depois vem a democracia e Portugal.

 

Felizmente que há ainda muitos socialistas que pensam que Novembro salvou e garantiu a democracia. Que sabem que o PS só tinha dois anos em Abril e que, mesmo com as notáveis figuras de Mário Soares e Salgado Zenha, estava longe de mostrar a grandeza real, longe de ser o preferido dos portugueses. Que sabem que foi a luta contra o comunismo e contra a ditadura de esquerdas que fez o PS e que engradeceu Mário Soares. Que sabem que os socialistas estavam à frente de todos, nas unidades e nos regimentos, em Rio Maior, no Porto e em Gaia, em Estremoz e Vendas Novas, na Amadora e na Ajuda, a rechaçar os revolucionários e os comunistas e a defender a democracia. Que sabem que foi com Novembro que os socialistas infligiram aos comunistas a sua maior derrota democrática e que talvez tenha sido o único caso em que os comunistas foram retirados, pacificamente, do poder que dominavam. Felizmente que há quem honre a história, quem respeite os seus, quem cultive os maiores, quem goste de seguir o exemplo dos seus dirigentes históricos, quem tenha a certeza de que a liberdade está acima dos cálculos mesquinhos de oportunidade. 

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Público, 22.11.2024

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O corpo e a mente+



Por A. M. Galopim de Carvalho

Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim.

Quando dou uma aula, ainda dou muitas, o entusiasmo e a energia que ponho na voz situam-me nos meus anos de docência, mas o facto de ter de a dar sentado, coisa que outrora nunca fiz, diz-me que esse tempo já passou há muito.

Quando olho para dentro de mim, tanto posso ser a criança ou adolescente, como o activo adulto que fui, mas, na rua, as irregularidades da calçada, ao fazerem-me procurar, na bengala, a segurança e o equilíbrio que perdi, dizem-me a mesma desconfortável verdade. 

Comodamente instalado, aqui, frente ao monitor do computador, vivo a despreocupação e a alegria de uma crónica de tempos idos, volto a ser o que fui nos anos de maior pujança da minha vida, mas mal me levanto da cadeira, os joelhos e as pernas trazem-me ao presente.

Bem sentado no autocarro, tenho a idade daquele ou daquela que vai ao meu lado e, se acontece falarmos, irmano-me com ele ou com ela e só me dou conta da idade que carrego sobre os ombros, ao descer do dito, naquele degrau que nunca me pareceu tão alto.

Muitas outras realidades me dizem, todos os dias, que sou mais um entre os muitos velhos deste belo e, desde sempre, mal governado país. São os meus antigos alunos, agora de cabelos brancos, muitos deles pensionistas como eu. São os meus netos, já adultos e com barba, são as consultas médicas, as idas frequentes ao Hospital e aos Centros de Saúde e o exagerado número de fármacos diários ao pequeno-almoço, almoço e jantar.

Diz-se que os velhos só têm o presente, o que não está longe da verdade. Não têm passado nem futuro. O passado perderam-no, sem darem por isso. Uns mais do que outros, podem guardá-lo na memória e é tudo o que dele lhes resta. Quanto ao futuro, esse foge-lhes por entre os dedos, como a areia. A diminuição progressiva das suas capacidades rouba-lhes a ideia de futuro. Não lhes permite fazer planos. Vivem, como se ouve dizer, “um dia de cada vez”. Preparar uma palestra e proferi-la, fazer uma conversa, onde quer que seja, e escrever algo sobre o que me parecer dever fazer, cabem dentro deste horizonte de vida. 

É nesta tranquila certeza que, nos meus 93 anos já vividos, organizo as 24 horas do dia, de todos os dias. Proferi ontem a última de cinco conversas de um minicurso de Geologia, “Como Bola Colorida”, numa perfeita organização do Âmbito Cultural, do El Corte Inglés. Casa cheia todos os dias. Eram só idosos, da primeira à última fila de cadeiras, e eu era o mais idoso de todos eles. 

É nesta tranquila certeza que me dou conta da exiguidade do meu horizonte de vida, face ao muito que ainda tenho em mente e gostaria de fazer, e nesse muito está, por um lado, escrevendo e falando, deixar aos meus concidadãos o que a vida e a profissão me ensinaram e, por outro, continuar a exercer o que entendo ser o meu dever de cidadania. Neste dever estão as lutas (lutas, sim, porque é de lutas que se trata, sempre morosas e difíceis de vencer) que continuo a travar com os governantes e outros decisores, pela valorização e salvaguarda do nosso património geológico.

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20.11.24

No "Correio de Lagos" de Outubro de 2024

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18.11.24

Grande Angular - A saúde é o teste da democracia portuguesa

Por António Barreto

Os recentes incidentes com o INEM deixaram o país perplexo. É obsceno que seja possível acontecer o que se diz que aconteceu. É inaceitável que, por culpa do ministério, dos serviços, das ambulâncias, dos técnicos de emergência ou das greves, tenham morrido, numa semana, onze pessoas por falta de assistência. Será do serviço? Ou da greve? Será dos técnicos? Ou do ministério? Dos doentes não é certamente. Vai ser analisada a culpa. Espera-se que seja um pouco mais célere do que em tantos outros casos. Verdade é que, antes das conclusões, a Provedora de Justiça já veio a público, e muito bem, declarar que o Estado deve assumir as suas responsabilidades, até por via de indemnização.

 

Há anos que nos habituámos, justamente, a considerar a saúde como o termómetro da democracia e do regime. Se excluirmos o mais óbvio, como sejam o voto e as liberdades, a saúde perfila-se. Se não olharmos para a mudança “sistémica” que mais marca a evolução social, a ascensão das mulheres a posições quase paritárias, é novamente a saúde que aparece como o campeão dos êxitos. Há concorrentes, como a alfabetização, as estradas e a segurança social universal, mas todos estes são discutíveis. Olhando para a frieza dos números, a saúde exibe melhores resultados.

 

Pergunte-se aos cidadãos e tente-se apreciar a experiência das últimas décadas: o mais provável é que a resposta seja “saúde”.  Há muito que se lhe diga. As queixas são mais do que muitas. Não há português que não se queixe dos médicos (dos outros, raramente dos seus…), dos centros de saúde, dos hospitais (públicos e privados) e dos enfermeiros. Parece não haver pessoa que não tenha a certeza de que os erros e a negligência médica são constantes, sobretudo com os vizinhos, parentes e amigos. Mas, colocados perante a necessidade de escolher, o mais provável é a saúde!

 

A verdade é que há motivos para isso. Da experiência de cada um (que tenha conhecido os cuidados de saúde nos anos 60 a 80), mas também dos testemunhos, dos jornais e das estatísticas, resulta que os progressos foram colossais. Tudo contribuiu, desde a água potável e a literacia, aos modos de vida e à urbanização. Mas foram os cuidados, os equipamentos, os médicos e os enfermeiros os principais responsáveis. E foi o alargamento desses cuidados e a quase gratuitidade que desempenharam papel fundamental. Em poucas palavras, o Serviço Nacional de Saúde foi o responsável. 

 

Se olharmos para o período que vai de 1974 até hoje, os progressos são incomensuráveis! Qualquer série estatística revela os melhoramentos com clareza absoluta. É verdade que, aqui e ali, há oscilações e até um ou outro retrocesso, como nos anos de crise económica e financeira. Mas, globalmente, na média duração, a evolução é notabilíssima. A esperança de vida aumentou muito. A mortalidade infantil deixou de ser a pior da Europa para passar a ser uma das melhores. A morte por certas doenças do subdesenvolvimento diminuiu.

 

O pessoal dos serviços de saúde aumentou inacreditavelmente! O número de médicos por habitante é um dos três mais elevados da Europa! E obviamente o número de doentes e de habitantes por médico é dos mais baixos. Evolução semelhante é a do número de dentistas, de enfermeiros e de técnicos auxiliares. Foi constante, com apenas alguns recuos, o crescimento da despesa por habitante. Cresceram sempre os números de urgências e de consultas em unidades do SNS.

 

É sabido que um grande número de médicos e enfermeiros formados em Portugal se desloca rapidamente para o estrangeiro onde vai auferir salários muito superiores ao que poderiam esperar por cá. Além do défice de pessoal, este facto constitui um enorme desperdício de investimento e recursos. Mas a verdade é que médicos e enfermeiros fazem muito bem em ir fazer a sua vida onde são reconhecidos. Mesmo assim, os médicos e os enfermeiros em serviço em Portugal são em número muito considerável e superior ao que se conhece em quase toda a Europa e Américas.

 

Com esta evolução, seria de esperar um excepcional grau de eficácia e de qualidade na prestação de serviços. Não é, infelizmente, verdade. Ou antes: o grau de satisfação é muito reduzido. As queixas e as reclamações são permanentes. A despesa é proporcionalmente enorme. O pior é a realidade dos factos concretos e quotidianos. Os tempos de espera por consulta, exame ou cirurgia são absurdos. E de tal maneira recorrentes que já poucos se escandalizam. Semanas e meses, para não dizer mais de um ano, à espera de vez para uma consulta, uma intervenção simples ou uma cirurgia mais complicada, são chocantes. A existência de centenas de milhares de pessoas sem médico de família é aflitiva. Ainda por cima há actos médicos que dependem do médico de família. Ora, são muitas as pessoas que o solicitam e não são atendidas.

 

As instalações dos SNS (hospitais e Centros de Saúde) são medianas e medíocres, o que quer dizer que, em muitos casos, são más e péssimas. É verdade que há unidades de saúde organizadas com sentido de humanidade, eficientes, bem geridas e prontas na resposta aos utentes. Mas muitas, talvez a maioria, são desconfortáveis, frias, sujas, sem respostas ao telefone, sem atendimemnto cuidado de pessoas em sofrimento e sem acompanhamento dos doentes. É frequente ter de fazer dezenas ou centenas de quilómetros para uma consulta. As maternidades fecham de vez em quando. Nascer numa ambulância parece agora ser moda. 

 

E o pior de tudo é o sentimento claro de segregação e desigualdade. Quem tem poder e dinheiro, quem tem influência e conhecimentos, quem tem partido ou empresa, quem vive na boa cidade e no bom bairro, quem tem cunha ou cunhado, tem serviço de saúde, atendimento e tratamento. Quem não tem, que espere e que se cuide! Quem quiser realmente saber da saúde em Portugal tem de ver ou ouvir quem lá está, quem lá vai e quem quer lá ir. Quem é obrigado a horas extraordinárias fora de qualquer sentido. Quem tem vencimentos ridículos. Quem espera meses por uma consulta ou uma cirurgia “urgente”. Quem é pobre e trabalha e não pode fazer horas de fila e espera, ou não pode faltar ao emprego para levar os pais ou os filhos aos centros e aos hospitais.

 

Que o SNS precisa de refundação, não parece haver dúvidas. Que os modos de gestão e de organização devem ser revistos e reformados, também parece certo e seguro. Que quem quiser consolidar ou salvar a democracia deve tratar da saúde e do SNS, também parece indiscutível.

Público, 16.11.2024

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11.11.24

BARRO OU ARGILA, O ARGILITO NO JARGÃO PETROGRÁFICO


Por A. M. Galopim de Carvalho

Diz o Velho Testamento que, depois de ter feito o mundo, Deus pegou no barro e fez o homem. E o homem, depois de ter lascado a pedra, pegou no barro e fez o primeiro vaso.

Depois do sílex, a principal matéria-prima mineral foi o barro, com o qual os nossos antepassados do Neolítico começaram a fazer recipientes cerâmicos diversos, de início, rudimentares, e, progressivamente, mais aperfeiçoados.

 

Argila, termo que herdámos do grego, argilós (a partir do étimo argos, que significa branco), através do latim, argila, é o barro, material de todos conhecido, na linguagem vulgar, com origem no latim hispânico, barrum

 

Argilito é uma forma, proposta pelos sedimentólogos, tida por mais apropriada para, na petrografia sedimentar, dizer argila ou barro. É descrito como uma rocha sedimentar essencialmente composta por argilominerais associados a quartzo, feldspatos e micas naturalmente pulverizados, e, e, ainda, impregnações de óxidos e hidróxidos de ferro (hematite, goethite) e matéria orgânica, que lhe conferem colorações, respectivamente avermelhada, amarelo acastanhada e castanha-escura a negra.

 

Argilominerais são descritos quimicamente como silicatos hidratados de alumínio e/ou magnésio, associados ou não a outros elementos como, por exemplo, cálcio e sódio. São filossilicatos, (por aposição do elemento grego phylon, que significa folha), isto é, silicatos em cuja estrutura interna os átomos estão dispostos em folhas paralelas, sob a forma decristais ou agregados cristalinos, de pequeníssimas dimensões (nanométricas, no geral, inferiores a 0,004 mm), só visíveis ao microscópio electrónico. 

Entre as espécies ou grupos de espécies mais comuns de argilominerais, destacam-se: caulinite, ilite, esmectites, palygorskite e clorite, apenas cinco entre os muitos conhecidos. Face ao que se conhece sobre a sua génese nos diferentes sistemas bioclimáticos, eles permitem, como nenhum outro componente mineral dos sedimentos, inferir reconstituições paleoambientais do maior interesse em geologia.

Enquanto o termo barro se manteve na linguagem vulgar, o termo argila guindou-se ao estatuto de vocábulo do léxico científico. 

 

Toda a argila é branca, quando liberta de impurezas, como os ditos óxidos e outras substâncias que lhe confiram colorações.


Os romanos dispunham ainda do termo creta para referir a mesma substância e que passou ao português antigo sob a forma de greda, termo hoje muito menos usado.

No conceito que todos temos de rocha, como um material coeso rígido e duro, como qualquer pedra, o argilito não é uma rocha, mas é-o no contexto da sistemática petrográfica, onde ocupa lugar bem definido no conjunto das rochas sedimentares. Rocha ou não, como se queira entender, é, sem sombra de dúvida, uma fase ou etapa, dita exógena (superficial), do grande ciclo das rochas. 

O argilito corresponde ao mudstone (de mud, lama e stone, pedra) dos geólogos de língua inglesa e ao lamito dos brasileiros, um vocábulo que ainda não entrou no nosso léxico da especialidade.

Na classificação do alquimista persa Avicena (980-1037), a argila foi considerada na classe das “terras”ao lado de outras (“pedras”, “sais”, “metais”, “minerais fusíveis”). Este critério manteve-se até começos do século XIX, estando bem exemplificado na sistemática do químico e mineralogista sueco, Torbern Bergman (1749-1817). É esta a razão que explica que os ingleses designem a argila por earth (terra), os franceses por terre e que nós ainda usemos o termo terra com o mesmo significado em expressões como terra rossa terracota, terra de pisoeiro ou terra fulónica (por tradução do inglês fuller’s earth).

Acrescente-se que pisoeiro era o artífice que pisoava (lavava e desengordurava com um tipo especial de argila, dita esméctica) a lã, usando o pisão. Diga-se que terracota é uma maneira de dizer cerâmica ou argila cozida no forno, sem ser vidrada. E que terra rossa é uma expressão italiana internacionalizada, alusiva a um material de cor vermelha, composto essencialmente por argila e óxido de ferro, resultante do processo de dissolução das rochas carbonatadas pelas águas pluviais carregadas de dióxido de carbono.

A argila é componente essencial ou subordinado de algumas rochas sedimentares (arenitos de cimento argiloso, calcários argilosos e margas), de diversos xistos argilosos e da ardósia (já no domínio das rochas metamórficas) e está quase sempre presente nos solos e em muitas rochas alteradas (saibros). Quando dizemos que uma rocha ou um solo contém argila, queremos dizer que, na sua composição, estão geralmente presentes um, dois ou três dos citados argilominerais que, na grande maioria, resultam da alteração dos feldspatos das rochas, como granitos, gnaisses, sienitos, dioritos, gabros, basaltos e muitas outras.

Na maior parte dos casos, os argilitos entendidos como rochas sedimentares, resultam, via de regra, de uma sedimentação detrítica de argilominerais e outros (com destaque para quartzo, feldspato e micas) finamente pulverizados (à atrás dita dimensão nanométrica, no geral, inferiores a 0,004 mm), posteriormente transportados até ao local de sedimentação. No âmbito petrográfico são considerados argilitos terrígenos, detríticos ou herdadosque, podem sofrer transformações, em função dos ambientes geológicos a que forem submetidos. 

Fala-se de argilas de alteração meteórica, relativamente às que formam a capa de meteorização superficial, exercida sobre rochas ricas em feldspatos (gabro, basalto, sienito e outras) e também sobre rochas argilosas como xistos e ardósia. São consideradas argilas de alteração deutérica, (do grego deuterós, ulterior, secundário), as geradas no subsolo, por efeito de águas muito quentes (hidrotermais), ascendentes, residuais do magmatismo, bem como dos vapores e dos voláteis associados, e de águas meteóricas penetradas na crosta e, aí, aquecidas por efeito do grau geotérmico. O qualificativo deutérico, sinónimo de hipogénico (origem profunda, do grego hipo- inferior, no sentido de por debaixo, e genesis, origem), alude à posterioridade dos minerais resultantes desse tipo de alteração, secundários relativamente aos minerais da rocha magmática, entendidos como primários. 

Existem outras acumulações de argilominerais, cuja génese tem lugar no próprio local, por síntese, a partir de substâncias em solução nas águas. São as argilas de neoformação, com muito pouca expressão geológica, mas com grande significado nos solos actuais.

Face ao que se conhece sobre a génese dos argilominerais nos diferentes sistemas bioclimáticos, eles permitem, como nenhum outro componente mineral dos sedimentos e como se disse atrás, inferir reconstituições paleoambientais do maior interesse em geologia.

 

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