12.7.25

Grande Angular - Escola de valores

Por António Barreto

É um dos mal-entendidos do nosso tempo: a escola deveria transmitir valores. Na esquerda e na direita, há quem pense assim. Democratas, fascistas e comunistas têm esse traço comum.  Entre cristãos, muçulmanos, judeus e hindus, assim como entre laicos e ateus, há quem não tenha dúvidas: a escola deve dar valores. Deve ensinar a viver, preparar o crescimento, garantir o bom comportamento e formar cidadãos. O problema surge quando tentamos perceber o que cada um quer. E depressa se vê que querem coisas diferentes e contraditórias.

 

De comum, em abstracto, querem valores e crenças nas escolas. E recusam a “escola neutra”. Esta sempre foi um diabo maior. Salazar era fervoroso adversário da escola neutra. Tal como eram Perón, Pétain, Hitler, Mussolini, Goebbels, Estaline, Krupskaia, Mao Tsetung e os Ayatollahs. Todos querem que a escola se substitua às famílias, que os professores ensinem os jovens a viver e a jubilar nos bons costumes. Como é sabido, o que um católico quer da escola não é o que pretende um muçulmano. O que um nacionalista deseja não é a mesma coisa do que um laico socialista. O modo como António Sérgio idealizava a sua escola nada tinha de comum com a instituição de Carneiro Pacheco ou Hermano Saraiva. O que um comunista espera do ensino é muito diferente do que pensa um democrata-cristão. Europeus, ciganos, brasileiros, ucranianos, indianos, africanos e paquistaneses têm expectativas diferentes e esperam que as escolas transmitam as suas crenças e as suas tradições. Numa palavra, os seus valores. Mas os seus, não os dos outros. Assim é que todos os regimes autoritários pretenderam sempre o mesmo: as escolas devem formar os seus cidadãos, os cidadãos do seu regime.

 

Pouco a pouco, tem-se vindo a criar um “fundo comum”, uma espécie de ideologia que valoriza uma escola mais ecuménica. Há já alguns anos que os ministérios da educação, os deputados, muitos professores, várias associações e igrejas vêm trabalhando esta questão da construção de uma escola de valores e de crenças. Mais ainda, defendem, em abstracto, que a escola deve desenvolver a cidadania e a moral, para que se formem cidadãos livres e conscientes. Consideram mesmo que a escola deve substituir-se à família, aos amigos, à rua, aos grupos culturais e a outras formas de socialização, a fim de criar “verdadeiros cidadãos”. Os textos oficiais, elaborados nos últimos vinte ou trinta anos por todos os governos e todos os partidos, dão bem conta dessas ideias. Por exemplo, temos até, em Portugal, uma “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania”, assim como conceitos, organismos, documentos, guias, leis e regulamentos que dão conteúdo ao desejo de que a escola forme “cidadãos livres, democratas, responsáveis, igualitários e plurais”.

 

Pretende-se que a educação para a cidadania se ocupe de “direitos humanos, da igualdade de género, da interculturalidade, do desenvolvimento sustentável, da educação ambiental e da saúde”. Assim como de “sexualidade, media, instituições democráticas, literacia financeira e educação para o consumo, segurança rodoviária e risco (sic)”. Além disso, os jovens devem ser educados para o “empreendedorismo, o mundo do trabalho, a segurança, a defesa e a paz, o bem-estar animal e o voluntariado”. A fechar este missal, diz o texto que “os professores têm como missão preparar os alunos para a vida, para serem cidadãos democráticos, participativos e humanistas”.

 

A escola de valores e a educação para a cidadania criam problemas sem solução. A codificação desses valores é simplesmente impossível. Fica a cargo de quem? Existem pessoas e instituições que, para tratar do nacionalismo, do género, da sexualidade, da autoridade paterna, da organização da família ou do capital e do trabalho, sejam capazes de equilíbrio entre todas as sensibilidades doutrinárias e culturais? Como eleger valores de uma cultura sem afastar os de outra tradição? Pior ainda, como agregar valores de todas as culturas diversas e contraditórias? Outro problema é o da autoridade moral que zela pela aplicação das regras. Quem? O Parlamento? O governo? A Igreja? O sindicato? A academia? 

 

Ensinar matemática e geografia, estudar história e ciências naturais, aprender a escrever e a falar línguas estrangeiras, consultar dicionários e bibliotecas, fazer fichas e resumos, preparar memorandos e sumários, tomar a iniciativa de estudar e investigar, debater questões morais e filosóficas, perceber e utilizar a tecnologia, prever uma actividade ou uma profissão, numa só palavra apender a pensar! Tudo o que precede parece estar submetido à principal função do professor: formar cidadãos! 

 

Não vale a pena pensar que o Estado é o vilão e que as famílias são vítimas do Estado que se esforça por retirar as crianças e os jovens à influência familiar. Não. É verdade que o Estado, qualquer Estado contemporâneo, tenta afastar as famílias dos sistemas educativos. Mas os pais e as famílias agradecem e pedem mais. Uns não têm formação. Outros não têm meios. Uns trabalham longas horas por dia e não têm tempo e há quem queira os tempos livres para outros fins. Quaisquer que sejam os motivos, muitas famílias procuram com prazer que o Estado se ocupe da educação dos filhos. Não apenas da instrução e do ensino, mas também da formação e da educação.

 

Se uma escola der instrumentos e ferramentas para estudar e aprender a matemática, as línguas e a história, as ciências naturais e a geografia, a física e a química, ver-se-á rapidamente que os jovens crescem melhor. Se a mesma escola proporcionar aos seus jovens tempos e modos de cultura e artes, de música e de literatura, de pintura e de dança, as famílias depressa ficarão surpreendidas com as capacidades juvenis em desenvolvimento, sem necessidade de doutrina social. Se a escola conseguir organizar visitas de estudo, ateliers de criatividade e meios de expressão, prontamente surgirão resultados inesperados. Se a escola for capaz de ocupar os jovens durante dias inteiros, sem “furos” nem “folgas”, as consequências surpreenderão os pais e os mentores das escolas de valores. Se a escola for ela própria pontual e rigorosa, o seu exemplo será pedagogia maior. A escola tem de acreditar em si, nos seus alunos e nos seus professores, não tem de pregar valores e crenças. A escola deve respeitar a igualdade de todos os cidadãos, não deve fazer propaganda de uma qualquer forma de igualdade em detrimento de outra. A escola não deve promover uma religião, deve apenas respeitar os que professam uma qualquer. A escola tem de ser democrática, não tem de impingir a doutrina democrática.

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Público, 12.7.2025

 

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5.7.25

Grande Angular - Voto no Jardim

Por António Barreto

Como se vota? Que motivos levam um cidadão a votar num ou noutro partido? Por que razão se vota num candidato em vez de outro? Fidelidade, rotina, ideologia, oportunidade, obra feita ou prometida, pessoa, carácter, cara bonita, vingança, castigo, agradecimento…. É um nunca mais acabar de causas. Há estudos e sondagens que, há décadas, dão respostas e hipóteses. Mas, realmente, na verdade, não se sabe muito bem o que leva a votar, caso a caso, pessoa a pessoa, no momento da urna. É possível que uma parte do eleitorado, um terço, metade, vote de maneira previsível. Sempre no mesmo, dizem, orgulhosos, os fiéis. É a minha gente, a minha classe, o meu partido, garantem os que têm certezas. Mas há tanta gente a votar por outras razões! Ainda bem. Se assim não fosse, não haveria alternância, castigo, recompensa, mudança e progresso. Nem pessoas iguais a votar diferente. Nem diferentes a votar o mesmo.

 

Vem isto a propósito das próximas eleições autárquicas. Estas são, na verdade, ainda mais delicadas do que todas as outras. Há independentes. Há alianças e coligações. Há interesses regionais e locais. Há dissidências partidárias. Ao contrário das legislativas, há personalidades e indivíduos, pelo menos para presidentes de freguesia e de câmara. Tudo nos obriga a reflexão e a esquecer os preguiçosos automatismos, sejam estes de classe ou de ideologia.

 

Tendo o que precede em mente, já decidi. Vou votar no Jardim. No Jardim da Estrela. Neste jardim que frequento amiúde há mais de quarenta anos. Em todas as estações. A todas as horas. Com todas as companhias e sobretudo comigo próprio. Este jardim que teve momentos áureos de conservação e beleza, mas também períodos negros de desleixo. Este Jardim que me deu alguns dos melhores momentos de paz da minha vida, que me permitiu ver evoluir a população portuguesa, do bairro, de Lisboa e do país. A presença de estrangeiros mudou muito. O número de bebés e crianças aumentou também, não que haja mais natalidade, mas foi o hábito de passear crianças nos jardins públicos que se desenvolveu. A idade média dos velhos, cortesmente chamados de idosos, aumentou incrivelmente, mas também os seus modos de locomoção. Hoje há mais cadeiras de rodas, bengalas, andarilhos e canadianas do que há quatro décadas. Bom sinal de que há mais velhos e com mais idade. E com mais hábitos de passeio.

 

Mas isso de sociologia ou de observação é pouco. O que realmente importa é o sentimento e a emoção. A paz de espírito, que, se não se tem, ali se ganha depois de chegar. O convívio com as árvores, um dos mais belos produtos da criação, quando não massacrados pela humanidade. O som dos sinos da Basílica, companheiros dos quartos de hora, das vésperas e das matinas, a recordarem a certeza do tempo e da sua amiga crueldade.

 

Dizem que o Jardim da Estrela foi feito, entre 1842 e 1852, segundo o modelo inglês dos jardins românticos, em contraste com a tradição presunçosa francesa, mais pomposa. Os seus últimos responsáveis foram D. Maria II e Costa Cabral. Tem quase 5 hectares. O seu verdadeiro nome é Jardim Guerra Junqueiro, mas ninguém liga: é da Estrela e da Estrela será.

 

O Jardim da Estrela tem um companheiro, pequeno, modesto, quase secreto, ali ao lado: é o encantador Jardim da Burra, que saúdo com frequência. O seu nome deve-se a uma formidável estátua da “Santa Família” (camponês a pé com enxada ao ombro, acompanha mulher sentada em burro, bebé ao colo dela). A inauguração, nos primeiros anos do século XX, mereceu honras de reportagem da Ilustração Portuguesa. O seu autor foi o escultor Costa Motta. Também o Jardim da Burra tem outro nome, Jardim 5 de Outubro, mas ninguém quer saber: é da Burra e da Burra será.

 

Jardim da Estrela já foi “chique”, já foi burguês, já foi de jovens e de várias iniciações, de idosos a jogar às cartas e ao dominó, de mães a amamentar bebés, de grupos de adolescentes a estudar matemática… Tem, numa tão pequena área, uma variedade incrível de árvores de médio e grande porte, vindas de climas longínquos e das nossas zonas temperadas. Tem arbustos e flores. Tem bancos públicos, dos antigos, daqueles de madeira e de encostar. Tem um maravilhoso coreto feito de pedra, madeira e ferro forjado, que tinha vivido, no século XIX, no Passeio Público, lá para os Restauradores, e para aqui veio em 1936. É um dos mais bonitos de Lisboa e do país. Tem quiosque e café bar. Tem, raridade notável, um quiosque-livraria da biblioteca municipal onde se pode ler e requisitar livros e revistas. Tem estátuas, do “Cavador” à “Fonte da Vida” e de “Antero de Quental” a “João de Deus” e ao “Actor Taborda”. Tem, de vez em quando, “feira de velharias” e de “artesanato urbano”.  Já teve aulas de dança e exercícios de meditação ao ar livre e no coreto.

 

Sempre teve namorados. Tem uns fanáticos a ouvir relatos de futebol. Raras vezes se vêem zangas de amigos, familiares ou namorados. Tem jardim infantil. Tem casa de banho. Hoje, o Jardim da Estrela é isso tudo. Mas também é sinal de desleixo e de um processo de abandono que nunca se sabe se e quando vai acabar. Começou um dia a ter placas de identificação de cada árvore, mas os poderes devem ter-se arrependido, pois tal prática, doce e inteligente, desapareceu. Teve patos, cisnes e carpas nos lagos, hoje já não tem, vá lá saber-se porquê. Aliás, um dos dois lagos está seco. Já teve pavões, hoje já não tem. Há passarinhos exóticos e papagaios de passagem, mas pavões é que não. Nas últimas semanas, em vez das dezenas do passado, vi um pato magricelas e duas tartarugas pachorrentas.

 

Em numerosos lanços dos caminhos o pavimento está em vias de destruição, há alguns anos esburacado e em levantamento.  Os canteiros, meu Deus, os canteiros! Relva queimada e erva seca. Flores murchas e mortas. O coreto está entaipado, tapado, para obras, com anos de atraso, já tiveram mesmo de mudar os tapumes. O desmazelo e o desprezo tomam conta da Estrela. Ainda há partes do jardim em bom estado. Mas pressente-se o triste declínio.

 

Não tenho dúvidas! Voto em que trate do Jardim da Estrela. Em quem demonstre que está realmente interessado nos serviços municipais, no espaço público, na beleza das cidades, no conforto dos cidadãos, na paz e no sossego das pessoas, no descanso de quem trabalha, na alegria de viver em comunidade. Voto em quem prometa recuperar o Jardim da Estrela, deixá-lo viver, respeitá-lo e, sobretudo, respeitar os cidadãos.

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Público, 5.7.2025

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28.6.25

Grande Angular - Depressa e mal

Por António Barreto

Há políticos assim: consideram que o maior valor do governo é fazer, fazer depressa, decidir, decidir já, não se arrastar em discussões, estudos e preparação. “Nós fazemos”, “somos fazedores”, gostam de dizer. E comparam-se, não com quem prepara bem as decisões, mas com quem nada faz e se perde em conversas intermináveis. O que facilita, evidentemente. Comparar com quem faz pouco e mal tem o condão de encandear os pobres de espírito. Com esta tosca inspiração, o novo governo começou a fazer. Entre as primeiras decisões anunciadas, contam-se medidas relativas à defesa, à imigração e à nacionalidade ou naturalização. Preparadas a correr, mal elaboradas e preocupadas com a aparência. Destinadas a espantar a opinião, a incomodar o PS e a calar o Chega.

 

Para a defesa, são anunciados aumentos de despesa. Não se diz porquê, nem para quê, sobretudo agora que a guerra e a paz estão em causa. Diz-se simplesmente que se alcançarão os 3.5% do PIB daqui a pouco e 5% daqui a dez anos. Para já, são 2%, com um aumento de pouco mais de mil milhões de euros, promessa feita há anos e nunca cumprida. O destino é simples: “equipamento, recursos humanos e reforço de infra-estruturas”. Percebe-se imediatamente que nada estava preparado. E que estes grandes rótulos são deliberadamente vagos. E servem para tudo. Diz-se quanto se gasta, depois se verá em quê. Não se diz o que é prioritário. Nem o que é necessário para o país. Nem os sectores considerados estratégicos. Por exemplo, servem os aumentos para o mar (Armada, marinheiros, fuzileiros, submarinos, equipamento…), para a Força Aérea, para corpos especiais de intervenção multilateral ou para alargar o recrutamento? Destinam-se à componente nacional da defesa ou para o contributo internacional e atlântico? E mais dúvidas haverá.

 

Não será este o momento adequado a uma reflexão que actualize o Conceito estratégico nacional, assim como a obsoleta Lei de Programação Militar? A nova política americana, as fracturas dentro da NATO e da UE e as guerras no Próximo Oriente e na Ucrânia não são motivos suficientes para que os organismos e instituições dedicados à defesa nacional se empenhem em debater e redefinir, antes de fazer despesas? Parlamento (e seus principais partidos), Presidente da República, Conselho de Estado, Conselhos Superiores Militar e de Defesa, além de outras instituições, deveriam já estar mobilizados para debater, empenhados em chegar a conclusões sérias, que o tempo é curto, as necessidades grandes e a urgência muita. E as matérias politicamente sérias e complexas. Apesar de ser verdade, não basta dizer que é a NATO e os EUA que mandam.

 

O que se pretende gastar é tanto que justifica o tempo necessário para bem decidir. O orçamento é tão importante que exige convergência dos principais responsáveis e representantes. Portugal não tem dinheiro para tudo. Nem sequer tem muito dinheiro. Gastar um pouco em tudo significa que não tem prioridades nem conceito. Prometer gastar sem saber em quê é mostrar que não existe política nem objectivos. Prometer gastar na rotina, como dantes, equivale a ter a certeza de que não se quer aproveitar a oportunidade para rever o nosso esforço nacional. Por outras palavras, significa que o governo entende que as opções de defesa não são de política geral, não dizem respeito ao país, nem traduzem opções importantes para o nosso futuro. Parece que estas decisões têm um objectivo central: o novo governo quer agradar a alguns dos seus parceiros e à NATO, quer mostrar-se como bom aluno. Assim, transforma a defesa nacional num assunto de contabilidade e num negócio de esquina. A defesa nacional merece mais. O nosso país também.

 

Também a nacionalidade, a naturalização e a imigração foram objecto da iniciativa apressada do governo. Os motivos parecem evidentes: receio do Chega, previsão de comparações com Trump e a reunião da NATO. Também podemos pensar no reflexo pacóvio de tentar sensibilizar a população com temas “nacionais”, defesa e nacionalidade! Certo é que foram anunciadas regras novas para a legalização de imigrantes, a naturalização e o agrupamento de famílias. As propostas são muitas e variadas, umas conhecidas, outras inéditas. Umas sensatas, outras absurdas. Em certos casos, estão mesmo em causa a constitucionalidade, a justiça e a moral.

 

Uma nova regra em especial merece discussão: a perda de nacionalidade como castigo para certos crimes cometidos por naturalizados. Pensa-se no que Trump faz a muitos estrangeiros, designadamente Açorianos e Madeirenses. A questão merece discussão séria, juízo moral e jurídico, reflexão cultural e política. A nacionalidade não pode ser moeda de troca, não é aval de comércio ou licença de caça, não se pode dar e retirar conforme os comportamentos das pessoas. Admitem-se condições severas para a obtenção de autorização de residência e para a obtenção de nacionalidade. Usar a nacionalidade como castigo não é aceitável. 

 

Outros aspectos merecem reflexão. Usar critérios culturais para obtenção de autorizações de residência e nacionalidade é muito discutível. Uns, com licenciatura e doutoramento, currículo académico e científico e estrelato em futebol ou música, teriam aberta a via rápida, seriam desejados. Outros, simples trabalhadores, teriam a vida difícil, os prazos longos e as concessões incertas. Nesta área, teríamos ainda a novidade das provas de cultura, História de Portugal, democracia e cidadania. Seria exigido o conhecimento da língua, o que parece aceitável. Mas a cultura portuguesa? Provas de cultura e história? Podiam começar pelos portugueses. E também podiam perceber o que se faz aos portugueses, em iguais circunstâncias, no estrangeiro. Assim, o governo prepara-se para criar dois sistemas de legalização, de reagrupamento e de naturalização: um para as elites e outro para os indiferenciados. Isto é, dois sistemas de direitos. O que não é aceitável. Moral, jurídica e politicamente inaceitável.

 

Mas o pior deste procedimento é a pressa, a falta de preparação e a ausência de vontade de envolver uma boa parte da população, um grande número de instituições e vários partidos. A defesa e a nacionalidade são coisas sérias. Com elas não se brinca. Nem se faz política barata.

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Público, 28.6.2025

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24.6.25

Uma reflexão de última hora


Por A. M. Galopim de Carvalho

Tenho dias em que em que o espelho da casa de banho e, sobretudo, o corpo físico me dizem, sem rodeios, os anos que já vivi. Não tenho qualquer problema em falar sobre um fim se aproxima. Sinto-o, serenamente, todos os dias, como a areia a fugir por entre os dedos. Quero e procuro festejar a vida em felicidade e é neste sentimento que, antes que seja tarde, faço questão de deixar a todos os que amo, esta reflexão com o sabor de uma despedida natural, racional, tranquila e, direi mesmo, sorridente.

Poder trabalhar e conviver fazem parte da felicidade que vivo, realmente. Felizmente, nada me impede de trabalhar e trabalhar, no meu caso, é escrever. Bem sentado, frente ao monitor, como já escrevi tantas vezes, não tenho idade, escrevo horas a fio, todos os dias (os reformados não têm Domingos nem feriados, nem férias) em Blogues, jornais online e, em especial, no Facebok, para mais de 40 000 seguidores, na grande maioria, desconhecidos. Deles recebo centenas de comentários repletos de apreço, simpatia e afectos, que me enchem de felicidade e comedido orgulho, permitindo-me um conviver que, embora à distância e me encoraja a continuar. Comodamente instalado, aqui, frente ao monitor, vivo a despreocupação e a alegria de uma crónica de tempos idos, volto a ser o que fui nos anos de maior pujança da minha vida, mas mal me levanto da cadeira, os joelhos e as pernas trazem-me ao presente.

Entretanto, fui publicando livros, dois na Gradiva, quatro na extinta Editorial Notícias, vinte e seis na Âncora Editora, que tem, neste momento mais dois prestes a sair, “Os Homens não Tapam a Orelhas”, em 2ª edição, com prefácio do General Pedro Pezarat Correia, e “Por Caminhos de Pedra Solta”, com prefácio de Helena Roseta. 

Tenho plena consciência, sem que isso me incomode, que estou a descer os últimos degraus de uma vida cheia de trabalho e de afectos. Mas continuo a escrever, tendo sempre no pensamento o monte de projectos que sei não irei concluir e, isso, sim, já me incomoda. E esta é razão da minha pressa, estado de alma que marca o ritmo do meu trabalho. Quero ver publicados dois originais em fase de revisão: “A Professora”, uma história de vida de uma companheira e amiga de há mais de 80 anos, com quem “fundi” a minha, vai para 68, e “Do Laboratório à Cozinha”, que reúne mais de uma centena de experiências culinárias, muitas delas já publicadas na minha página no Facebook.

Durante quarenta e quatro anos, primeiro como aluno, depois como docente e investigador nas Universidades de Lisboa e de Paris, no domínio das rochas sedimentares e dos seus minerais, o laboratório, com recursos à química e à física, foi uma constante na minha vida. 

Quando o limite de idade me arrumou, contra minha vontade, na “prateleira dos reformados e pensionistas”, toda a parafernália laboratorial que, por amor à arte, me entrara no coração, parece ter encontrado continuidade e conforto no espaço da cozinha. Gobelets, provetas 

erlenmeyers viraram tachos, panelas e frigideiras; refogados, guisados e estufados tomaram o lugar de sulfatados, reduzidos e oxidados; átomos e iões foram substituídos por bagos de arroz, de ervilha e por feijões; a torneira com água fria e quente é a mesma, os queimadores de gás do fogão passaram a bicos de Bunsen e o forno fez as vezes da estufa. Quero com isto dizer que a cozinha é, por assim dizer, um outro percurso de prazer e, ao mesmo tempo, um escape.

Tenho em mãos o que se deverá intitular “Nós e as Pedras”, uma pesquisa no sentido de mostrar aos meus concidadãos que tudo, mas mesmo tudo, o que nos rodeia, incluindo nós próprios e toda a biodiversidade, tem origem nas pedras, no conceito antigo da palavra, que abrangia as rochas e os minerais. É, talvez, um sonho concluí-lo, mas o desejo de o dar como tal, dá sabor aos meus dias. Há ainda, no horizonte, dar cumprimento a uma incumbência, que consiste em passar a livro toada a documentação escrita e fotográfica existente e a esperança de a poder cumprir é uma das razões da pressa a que aludi atrás. Finalmente, mais do que um sonho, antes uma deliciosa utopia: “E, assim, o tempo se transformou em palavras”. Acontece que não me seria difícil encontrar situações e pensamentos para concretizar esta ideia, mas…

Todavia, sempre disse, escrevi o mostrei que assim era, que “a utopia é a força que transforma o sonho em realidade.

Lisboa, dia de São João de 2025

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21.6.25

Grande Angular - A liberdade tem geografia

 Por António Barreto

questão demográfica ameaça a Europa. E a América. E outros continentes. Até a China, parece. Já conhecemos alguns temas centrais. O envelhecimento da população enfraquece as economias, destrói o vigor das sociedades, sobrecarrega os serviços sociais e de saúde e acelera o declínio dos países. A redução drástica da natalidade agrava o envelhecimento, faz da população um recurso raro, entristece as sociedades e torna impossível a actividade económica. A crescente proporção de idosos diminui a criatividade, aumenta o conservadorismo e confirma uma espécie de passividade das populações. Sem jovens e com velhos, as sociedades estão condenadas à decadência.

 

É verdade que o aumento da esperança de vida é um triunfo da humanidade, da Europa e de Portugal. Quem nasceu em 1940 podia esperar viver 50 anos. Isso mesmo, 50 anos. Hoje, essa esperança é de 82. Qualquer que seja o juízo feito sobre a qualidade ou os problemas da sociedade actual, basta este facto para se ter uma noção do progresso. Para isso, contribuíram a medicina, a água potável, a urbanização, os serviços de saúde e educação, o progresso na alimentação e outros factores. Só a assistência materna é responsável por uma parte muito importante deste progresso. Tal como a água potável e as vacinas.

 

Não se imagina que o envelhecimento seja pior para as populações. Mas é verdade que as suas consequências podem ser gravosas para todos. É infeliz que muitas sociedades não saibam ou não possam organizar-se para viver com tantos idosos. Os quais, bem vistas as coisas, são tão gente quanto os mais novos. Todavia, a maior parte dos países não sabe ou não gosta de viver com idosos. O que muitos pensam deles, mas nem sempre dizem, é tremendo, de uma crueldade sem par: fazem pouco, dão muito trabalho, estão sempre doentes, é precioso cuidar deles, custam caro e são rabugentos. Já pouco dão e muito pedem.

 

Retomemos o raciocínio. Sociedades envelhecidas, sem vitalidade, sem jovens, pedem imigrantes. Em quaisquer condições. Legais ou não. A ganhar bem ou misérias. Com e sem contrato. Com e sem família. Com e sem acesso aos serviços de saúde e de educação. Uns são bem tratados, outros nem por isso. Uns são facilmente integrados, outros vivem sempre em guetos por eles próprios criados. Entre os que acolhem, uns querem imigrantes porque lhes dá jeito e lucro, outros porque acham que estão a fazer algo pela humanidade. Uns tratam os imigrantes como animais trabalhadores, outros como anjos intocáveis.

 

Há muita gente na esquerda que quer imigrantes, talvez tanta quanto a que não quer. Igualmente à direita: os que acolhem e integram os imigrantes são talvez tantos quantos os que os detestam e culpam de todas as malfeitorias. As realidades mais básicas apenas são aceites por poucos. Entre os imigrantes, a maioria é de pessoas como nós. Entre os residentes nacionais, a maior parte é de gente como eles. Mas há, infelizmente, entre grupos de direita e de esquerda, quem queira fazer da imigração terreno de batalha: quem exagere no racismo e na exploração, como há quem radicalize o anti-racismo e a luta de classes. A discussão e a luta são ferozes. Se há tema dado a preconceitos e à irracionalidade, é este. E é provável, é mesmo certo que, além de discussão, haja confrontos, turbulência e conflito. 

 

A crise na demografia, na natalidade e na economia é tal que os países desenvolvidos pouco podem fazer sem imigrantes. A crise da fome, da miséria, do atraso, da corrupção e da quase permanente ditadura é de tal modo inerente aos países não desenvolvidos e não democráticos que os que fogem para imigrar fazem-no de qualquer modo. Há total descontrolo nuns países e nos outros. Há crescente dificuldade de integração. Nos países de chegada, culpam-se os imigrantes de muitos males. Nos países de partida, empurram-se os imigrantes e trafica-se com o trabalho.

 

Nas ditaduras e nos países autoritários, estes problemas não existem: não há imigração. Nestes países, imigrantes são os candidatos a ir embora. Mas é este, de qualquer maneira, um dos temas mais difíceis para os próximos anos nos países mais desenvolvidos e sobretudo nos países democráticos. Já se percebeu que, sem controlo de legalidade e sem integração, o conflito veio para ficar. E para aumentar.

 

Uma das dificuldades deste tema reside no facto de estarmos perante uma contradição fundamental dos tempos actuais. Por um lado, a globalização. Por outro, a nacionalidade. Com a primeira, pensa-se em cidadãos do mundo, sem passado nem cultura própria, todos iguais, sem fidelidades nem identidades. Isto, em mundo aberto ao comércio, às viagens e à moradia indiferente localizada em qualquer sítio. Com a segunda, pensa-se nas identidades nacionais, nas fidelidades que permitem que culturas se construam. Nestas últimas, não é difícil pensar na independência nacional que só se faz com fronteiras. Na autonomia que só se garante com leis próprias. Na liberdade que exige quem a defenda e desenvolva. Na democracia, que tem uma geografia. A ponto de se acreditar em que não há liberdade, nem democracia, sem identidade, sem cultura própria e sem independência.

 

A ideia de que existe e deve ser favorecida a globalização política, humana e social é própria de quem aspira a governar o mundo sem limites e sem contraditório. Pensar que os homens e as mulheres de qualquer país são iguais a todos os outros em identidades, direitos, deveres, passados, memórias e aspirações ou é ingénuo ou é disfarce para aspiração autoritária. Os melhores limites e obstáculos ao totalitarismo são as identidades nacionais. As instituições civis. As independências nacionais. As fronteiras onde devem estar. As culturas e as memórias de cada um. As tradições e as crenças. A capacidade de conhecer em quem se vota e de entender quem nos representa.

 

As aventuras nacionalistas acabaram quase sempre em ditadura ou guerra. E será esse certamente o futuro, se houver novas tentativas desse género. Também a dissolução das identidades e das culturas é caminho feito para o totalitarismo. Só as sociedades capazes de defender as suas instituições e as suas liberdades são capazes de receber e integrar imigrantes. Mais ou menos controlo, mais ou menos pessoas a bater à porta não são as questões essenciais. O mais decisivo é a força da comunidade capaz de proteger as suas instituições. Difícil é o ponto de equilíbrio entre a globalização e a identidade. Uma sem outra é sempre contra a liberdade.

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Público, 21.6.2025

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17.6.25

ESFEROVITE


Por A. M. Galopim de Carvalho

Criado e produzido a partir de meados do século passado, o esferovite, nome comercial do poliestireno expandido, também conhecido por isopor (em outros países), é um tipo de plástico e um dos muitos derivados do petróleo e do gás natural. É um material espumado, muito leve, branco e eficaz isolante térmico e acústico. Durante a sua produção, o poliestireno é expandido com vapor d’água, formando esférulas brancas (daí o nome de esferovite), susceptíveis de serem aglomeradas e moldadas em blocos que podem ser cortados em placas, da espessura desejada, com o auxílio de um arame metálico quente. Pode ainda ser moldado em volumes, de modo a embalar peças ou aparelhos frágeis. A esferovite é um produto reciclável, que demora dezenas de anos decompor-se, o que gera preocupações ambientais. Tem grande capacidade de absorção de impacto, amolgando-se facilmente. É esponjoso, cheio de ar, muito leve e não absorve água facilmente, o que o torna útil em ambientes húmidos. É usada: na construção civil em isolamentos térmico e acústico, em paredes, telhados e lajes; em caixas térmicas, para transporte de alimentos, vacinas ou medicamentos e câmaras frigoríficas; em embalagens, na protecção de produtos frágeis, como eletrodomésticos, eletrónicos, louças e outros; como material para confecção de maquetes, cenários e peças decorativas.

 

Nota:

O poliestireno é um tipo de plástico abundante e frequente no nosso dia-a-dia, em múltiplas aplicações. É um polímero sintético, derivado do estireno (um produto derivado do petróleo) que, que ao ser submetido a polimerização, forma este produto. O poliestireno expandido (ou Isopor) é muitíssimo leve, com estrutura espumada (cheia de ar), usado para isolamento térmico, embalagens de proteção e na construção civil. É fácil de moldar, muito bom isolador térmico, é inflamável, não biodegradável e inimigo do ambiente se não for reciclado.

Por polimerização entende-se um processo químico que consiste na união de pequenas moléculas pequenas, (monómeros), para formar moléculas maiores (polímeros). Os polímeros podem ser naturais ou sintéticos e estão na base de plásticos, borrachas e fibras sintéticas.

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14.6.25

Grande Angular - Servir o povo

 Por António Barreto

A expressão em título tem vida longa e significado variado. De Mao Tsé-Tung a Mário Soares, de partidos marxistas latino-americanos, asiáticos e escandinavos a radicais italianos, muitos foram os que utilizaram esta expressão como lema e bandeira, identidade e profissão de fé. Por vezes, por timidez semântica, a expressão é adaptada e transformada em Servir os portugueses ou Servir Portugal. Ou Servir o País, na versão mais laica. E pode bem dizer-se que, apesar do lirismo ingénuo e mau grado o cinismo provável, a verdade é que é uma bela expressão. Servir o Povo! É difícil encontrar desígnio mais nobre. Por isso, tantos políticos, militares, sacerdotes e intelectuais recorrem a este lema.

 

Modernamente, uma das melhores maneiras de realizar esse desígnio, será certamente a de organizar e manter vivos os serviços públicos. Estes são de toda a espécie, da saúde à educação, dos transportes à energia, da água corrente às telecomunicações, da assistência jurídica à informação e a tantas outras áreas de actividade. Organizar serviços públicos e mantê-los em funcionamento, eis a obrigação das entidades públicas. Ter direito é uma coisa. Faz parte do catálogo constitucional. Formalmente, entre nós, o direito está generosamente definido. Pior é a sua concretização. O acesso à saúde, por exemplo, está contrariado pela mediocridade dos serviços. O acesso à educação também está condicionado pela falta de qualidade dos serviços de instrução e formação. O direito à informação está tantas vezes limitado pela ausência de transparência. O direito a uma velhice digna também pode estar em causa por serviços medíocres. Em poucas palavras, os serviços públicos, a sua qualidade, a sua eficiência e a sua humanidade são condição para respeitar os direitos dos cidadãos. São meio essencial para servir o povo.

 

É neste domínio que o Estado português tem faltado e a situação se agrava dia após dia. É aqui que a política tem falhado. É no domínio dos serviços que a democracia mais tem desapontado os cidadãos. É por causa deste défice crescente que estes mais descrêem da democracia e dos democratas. É nestas condições que a abstenção política e o desinteresse são enormes. Todos os dias, a democracia se perde nas filas de espera, nos quilómetros de maus transportes, nos casos de justiça adiados, nos doentes desacompanhados, nos idosos desprotegidos, nos telefonemas sem resposta, nos meses e anos à espera de cirurgia, consulta ou exame.

 

Nos transportes públicos, dos autocarros aos eléctricos e dos comboios aos metropolitanos, os atrasos, a insuficiência, a miséria, os encontrões, as enchentes, o desconforto, a falta de higiene, a chuva, o calor e a insegurança são crescentes. Quem dirige e quem ordena não sabe o que é o drama quotidiano de milhões de pessoas às horas de ponta, nos longos percursos para o trabalho e para casa e nas idas às escolas com as crianças. As duas a três horas de transporte público por dia deveriam obrigar qualquer autarca ou político a ir ver e a parar para pensar. 

 

Nos serviços do Estado, nas escolas, na segurança social, nos hospitais e nos centros de saúde, as horas de espera em fila, o incómodo e o desconforto de quem tem de esperar são dos factos mais opressivos da nossa sociedade. Em vários serviços, é necessário sofrer longas esperas, desde as primeiras horas da madrugada, não para ser atendido, não para tratar, mas sim para obter uma senha que dará, ou não, direito a ser recebido umas horas ou uns dias depois. Ou tirar um “ticket” que pode negociar.

 

Os serviços de imigração são belos retratos do modo como tratamos dos outros e de nós próprios. As filas de desespero e opressão, as noites de frio e de desconforto, a violência de tantas dessas situações, o aproveitamento da pobreza e da necessidade dos outros, fazem parte do nosso pior retrato.

 

Os chamados “serviços públicos” (como se os outros também não fossem…) de água, electricidade, gás, telefone e esgoto, além de vagarosos e de tão fraca qualidade em tantos locais do país, nos centros como nas periferias, comportam-se diante dos cidadãos da maneira mais déspota que se imagina. Mudam os preços sem aviso. Multiplicam-se em documentos incompreensíveis a fim de se poder defender em tribunal. Exploram os consumidores, sobretudo os mais fracos e sem meios de defesa, com desplante e soberba. 

 

Na segurança social e nos serviços sociais de toda a espécie, sobretudo os que se ocupam dos doentes e dos idosos, as filas de espera, o silêncio, os telefones mudos, os “sites” paralisados e as tenebrosas respostas gravadas com que milhões, sem esperança, são atendidos, resultam da falta de humanidade de serviços que dela deveriam fazer a sua marca principal. Parece só não haver maus tratos e má resposta nos serviços inexistentes de apoio aos idosos, aos doentes terminais, aos inválidos, aos deficientes e aos doentes crónicos.

 

Na justiça, que também pode ser considerada serviço público, são proverbiais os adiamentos, as deslocações inúteis, as esperas e as prescrições por falta de despacho. É um dos sectores da vida social onde pior se trata o cidadão, com destempero e soberba, com distância e secura, sem desculpa nem justificação. 

 

A vida política e a administração pública têm seguido uma evolução desastrada. Contentam-se com a formulação de ideais e de leis generosas, com a elaboração de planos e estratégias, com o recrutamento de funcionários, com o aumento dos orçamentos, com a capacidade eleitoral e demagógica de tais realizações, mas não prestam atenção à qualidade dos serviços, à vida de pessoas e famílias, às necessidades especiais de tanta gente e aos mais desfavorecidos. 

 

Que se passou, que se tem passado, entre nós, nas últimas décadas? Criaram-se serviços de toda a espécie. Contratou-se pessoal. Compraram-se edifícios, computadores e equipamento. Fizeram-se leis e regulamentos. Mas foram vários os governos, várias as administrações, vários os partidos (sobretudo o PS e o PSD) que descuidaram, que se revelaram desleixados, que não se importaram, que se satisfizeram com a existência formal e burocrática das leis e das instituições. Mas a verdade é que os serviços de saúde, de educação, de idosos, de transporte, de segurança social, de protecção e segurança, todos esses serviços públicos estão em dificuldade e em declínio. Os governos não souberam manter a atenção, prever a demografia, cuidar das consequências do turismo e da imigração, prevenir a emigração, orientar o crescimento urbano e cuidar dos transportes. Quem assim trata os serviços públicos não serve o povo.

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Público, 14.6.2025

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12.6.25

DIA MUNDIAL DOS OCEANOS

Por A. M. Galopim de Carvalho

No DIA MUNDIAL DOS OCEANOS cabe recordar e homenagear a memória de José Mariano Gago (1948-2015), o “cientista que pôs a ciência na agenda política”, como escreveu Teresa Firmino, no Público. Professor do Instituto Superior Técnico e investigador em Física no Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), distinguiu-se como político, onde realizou obra que perpetuará o seu nome como Ministro da Ciência.

Ciência Viva, uma prestigiada realidade, fruto do seu empenhamento na divulgação e na experimentação das ciências, já lhe prestou significativa homenagem pela atribuição, do topónimo Largo José Mariano Gago, no Parque das Nações.

Como físico de prestígio, outros mais habilitados do que eu, já falaram. É dele, como grande impulsionador da investigação científica e paladino da cultura científica, que posso falar com conhecimento de causa.

Ao lembrar José Mariano Gago, recordo que nos conhecemos há um bom par de anos, na livraria Buchholz, em Lisboa, numa sessão/debate sobre o estado da ciência em Portugal, em que investigação e divulgação eram temas da sua preocupação. E ficámos amigos e irmanados no mesmo ideal.

Lidei com ele também de muito perto nos anos em que participei no programa inovador em Geologia Marinha, iniciado em 1988, era ele Presidente da então Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (hoje Fundação para a Ciência e a Tecnologia), e não me surpreendeu quando, em 1996, na qualidade de Ministro da Ciência e Tecnologia, por um seu Despacho de 1 de Julho, criou o programa Ciência Viva. 

Dois anos depois, em 17 de Julho de 1998, “Ciência Viva”, hoje uma grande e laboriosa família, sob a dinâmica eficaz direcção de Rosalia Vargas, era uma feliz realidade com o objectivo de divulgar, através de campanhas, a cultura científica e tecnológica entre os portugueses, promover o ensino experimental das ciências no ensino básico e secundário e criar uma Rede Nacional de Centros Ciência Viva, a funcionarem como museus interactivos de Ciência, de Norte a Sul do Continente e nas Ilhas.

Em 1987 a então Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT), hoje Fundação para a Ciência e a Tecnologia, de que era presidente, lançou o “Programa Mobilizador de Ciência e Tecnologia”, no qual tinha cabimento uma componente dinamizadora das Geociências do Mar, apresentada publicamente pelo Prof. Mário Ruivo, surgiu em Portugal o primeiro grupo de investigação em Geologia Marinha e Oceanografia Geológica, com ligações internacionais, conhecido por DISEPLA, acrónimo de Dinâmica Sedimentar da Plataforma.

Nascido e desenvolvido no Museu Nacional de História Natural, da Universidade de Lisboa, sob a minha direcção, com a coordenação científica do Doutor João Alveirinho Dias, do Prof. António Ribeiro e minha, e o indispensável e sempre disponível apoio do Instituto Hidrográfico, ao tempo do Director–Geral, Vice-Almirante José Almeida Costa e dos Comandantes Vidal de Abreu (Chefe da Divisão de Marés e Correntes) e Torres Sobral (Director-Técnico), o Grupo DISEPLA deixou descendentes, ou seja, fez escola que continuou a dar frutos. 

Com uma primeira geração de investigadores que, de juniores passaram a seniores, vimos partir estes “filhos”, independentes e a trilharem os seus próprios caminhos, o que nos enche de satisfação e orgulho. Actualmente há “netos” que já nem conhecem os “avós”, mas que só existem porque nós tivemos a ousadia de iniciar esta viagem e de segurar o leme deste navio, nas primeiras milhas desta gratificante navegação que conduziu à introdução das geociências do mar nas nossas universidades, designadamente, nas do Algarve, de Aveiro e de Lisboa, onde os mestrados e os doutoramentos se sucedem.

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10.6.25

DIA MUNDIAL DOS OCEANOS, M. Ruivo.

Por A. M. Galopim de Carvalho

No DIA MUNDIAL DOS OCEANOS cabe recordar e homenagear a memória de Mário João de Oliveira Ruivo (1927-2017), figura central na ciência e na política ambiental em Portugal e no mundo, reconhecido como um dos principais pioneiros na defesa dos oceanos e na promoção da governação sustentável dos mares. 

Terminado o Liceu, em 1946, onde o conheci como colega mais velho, este campomaiorense que a profissão do pai trouxe para Évora, veio para Lisboa onde cursou e se licenciou em Ciências Biológicas pela Faculdade de Ciências, em 1950. Especializou-se, a seguir, em Oceanografia Biológica e Gestão de Recursos Vivos, na Universidade de Paris. 

 

Mais do que um investigador científico de laboratório, possuidor de uma imensa e notável carteira de contactos internacionais, Mário Ruivo tornou-se figura pública como promotor e organizador de ciência e como político. Reconhecido pioneiro na defesa dos oceanos e embaixador de Portugal neste domínio e no das pescas, foi ainda participante interessado e activo na defesa do ambiente em Portugal. 

Juntamente comigo e com o Prof. David Ferreira, da Faculdade de Medicina e vice-reitor da Universidade de Lisboa, Mário Ruivo fundou a Federação Portuguesa das Associações e Sociedades Científicas (FEPASC), organização não governamental visando dotar a comunidade científica portuguesa de um instrumento representativo, alargado aos vários domínios do conhecimento, com capacidade de intervenção ao mais alto nível.

 

Interventor activo, desde muito novo, na vida social e política do país, foi dirigente do Movimento de Unidade Democrática (MUD) Juvenil, iniciado em 1945 e ilegalizado por Salazar, três anos depois. Nos governos provisórios que se seguiram à Revolução dos Cravos, foi Secretário de Estado das Pescas e Ministro dos Negócios Estrangeiros.

Ao longo da sua carreira, desempenhou cargos de topo em organizações internacionais, incluindo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e a Comissão Oceanográfica Intergovernamental da UNESCO (COI/UNESCO), onde foi Secretário Executivo de 1980 a 1989 

Foi figura chave na realização da Expo’98, em Lisboa, e na atracção de agências europeias e internacionais para Portugal na área do mar. Foi também membro da Comissão Mundial Independente para os Oceanos e desempenhou um papel crucial na criação da Agência Europeia de Segurança Marítima (EMSA) em Lisboa. Além disso, foi fundador e presidente do European Centre for Information on Marine Science and Technology (EurOcean) e presidiu ao Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, à Comissão Oceanográfica Intersectorial e ao Comité Português para a COI/UNESCO 

  • Movendo-se, a um tempo, nos planos científico, político e diplomático, incansavelmente, até ao fim dos seus dias, aos 90 anos, Mário Ruivo foi diretor e presidente de diversas instituições nacionais e internacionais ligadas aos oceanos e às pescas, à investigação científica, em geral, e ao ambiente e desenvolvimento sustentado, em particular. Personalidade conhecida e respeitada internacionalmente, sendo numerosos os prémios, as medalhas e as condecorações nacionais e estrangeiras com que foi agraciado, com destaque para: Prémio D. Carlos I (1951); Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago de Espada; Cavaleiro da Legião de Honra (França); Doutoramentos Honoris Causa pela Universidade dos Açores (2010) e pela Universidade do Algarve (2016); Prémio Cidadão Europeu (2015).

O seu legado permanece vivo através do trabalho de cientistas, que continuam a promover a sustentabilidade dos oceanos, inspirados pela sua visão e dedicação.

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7.6.25

Grande Angular - O Albergue espanhol

Por António Barreto

É uma antiga expressão, uma fábula, uma lenda e um mito: o “Albergue espanhol” é o local para onde se leva o que se quer e onde só se come o que se traz. O significado actual é moderadamente crítico ou pejorativo: qualquer coisa ou sítio onde há de tudo, pessoas, comidas, ideias e políticas, pode ser tratado de albergue espanhol. Com a sensação de que não há escolha nem critério, está tudo misturado, cada um leva o que tem e quer. Diz-se com frequência dos programas eleitorais ou de governo: está lá tudo! A propósito da “Reforma do Estado”, pérola prioritária da tomada de posse do governo, a invocação deste albergue pode justificar-se, é o que veremos nos próximos dias. Ou já há muito trabalho feito ou corremos o risco de estarmos diante de uma miragem. É o que saberemos em breve. É o que deveríamos ver nos próximos debates parlamentares sobre o programa de governo.

 

É também uma velha ideia, um ideal antigo e uma promessa segura: a reforma administrativa, a reforma do Estado e reforma da Administração Pública são três designações conhecidas e correntes. Desde Marcelo Caetano que a expressão ganhou foros de política e de utilização formal. Desde o século XIX, aliás, que a ideia está no ar. Mouzinho da Silveira, Passos Manuel, Costa Cabral e outros deixaram os seus nomes ligados ao tema. Depois do 25 de Abril, foram poucos os governos que não incluíram a Reforma do Estado e da Administração Pública como prioridade, sinal distintivo, garantia de renovação e de mudança. Por vezes, tratava-se só da Administração e dos serviços, outras vezes era a descentralização. Frequentemente, era de Regionalização que se falava.

 

O último governo adoptou a tradição. A reforma do Estado é uma prioridade. A prioridade. Segundo as suas palavras, é sobretudo de burocracia que se trata. Mas rapidamente se lêem alusões aos direitos do cidadão, às liberdades públicas e ao progresso económico. Tudo leva a crer que seja, no seu espírito, mais do que eficácia e prontidão. Mais do que “simplex”, talvez. Mas não é claro.

 

Esta “reforma do Estado” destina-se, o que já não seria pouco, a alterar os procedimentos quotidianos dos serviços, a transparência, a eficácia, a clarificação de competências e o esclarecimento de funções? Ou pretende-se realmente alterar os poderes e os direitos dos cidadãos perante o Estado? Será que se deseja mudar o essencial das competências das freguesias e dos municípios? Ou procura-se mesmo realizar finalmente ou afastar definitivamente o programa de regionalização que continua a encantar ou ensombrar tantos portugueses?

 

O Serviço Nacional de Saúde faz parte da reforma do Estado? E o sistema público de Educação? A segurança social? A Justiça? A polícia? A segurança e a defesa? Esta breve enumeração já basta para mostrar os equívocos criados. Os poderes das autarquias, o número de municípios e de freguesias e as famosas e famigeradas regiões fazem parte do que este governo entende por reforma do Estado? E a Administração Pública, que evidentemente é peça central da reforma do Estado, a que título será olhada: o da reorganização dos serviços, das direcções gerais, dos institutos e das empresas públicas ou municipais? Ou da relação de tudo isso com os cidadãos, os direitos destes, as suas capacidades de auto-organização? De que estamos a falar, de uma “Reforma da Administração” ou de uma “Reforma do Estado”?

 

Uma reforma do Estado, qualquer que seja a sua versão, desde a mudança da burocracia até à alteração das estruturas e dos fundamentos do Estado moderno, exige estudo prévio, uma espécie de “Livro branco”, capaz de aliar o pensamento ao conhecimento e a informação ao envolvimento dos interessados. Um esforço desta dimensão, qualquer que seja o modelo adoptado e o fim explícito, pede participação e colaboração de quem sabe e a quem se destina. Um conselho político, social, científico ou consultivo teria papel decisivo. A participação de associações e instituições, sejam as universidades e as associações profissionais, sejam as empresas e os sindicatos, é indispensável. A personalidade e a competência dos novos ministros mais interessados neste tema (Maria Lúcia Amaral e Gonçalo Matias) são garantias da seriedade de propósitos. Mas o tema é mais vasto do que a personalidade de dois ministros.

 

Será que todo o governo está realmente empenhado nesta reforma? Incluindo e a começar pelo Primeiro ministro? Será que o partido de governo está sinceramente envolvido? O Presidente da República foi devidamente informado? Já existe algo que se pareça com um plano, um projecto, um roteiro ou um programa com objectivos e datas? Está previsto o estímulo a um grande debate público?

 

Podemos supor que se trata de uma reforma do Estado de grande amplitude. Não total, mas de grande extensão. Ocorrerá a alguém que é possível fazer o que quer que seja sem maioria parlamentar? Ou até mesmo com uma maioria que envolva algum consenso com outras forças de oposição? Alguém pensará que é possível tocar nos poderes das autarquias locais e das regiões administrativas sem uma folgada maioria política? Ou tratar-se-á de grande ilusão e de grandiloquente plano destinado a demonstrar a impossibilidade de governar por causa do mau comportamento da oposição? Alguém pensou seriamente em que um governo minoritário pode levar a cabo uma “Reforma do Estado”? Ou tão só uma reforma da Administração Pública? 

 

O facto de o governo afirmar que pretende realizar tão importante e tão decisiva reforma, sabendo que é um governo minoritário, sugere as piores reacções de incredulidade e de desconfiança. Nenhum dos grandes partidos de oposição, Chega ou PS, estará disponível para um tal esforço e para uma tarefa desta dimensão, sabendo que o espírito, a ideia, os objectivos e os louros serão todos do governo minoritário. Anunciar que pretende fazer o que já sabe ser impossível em condições de clara minoria é de mau agoiro. A fazer-nos pensar que o governo já cometeu o seu primeiro erro: o de pensar que os cidadãos são estúpidos.

 

Há outras hipóteses de explicação para este gesto. Primeira: a crença de que, à força de ser derrubado, o partido acabará por ter a tão ambicionada maioria parlamentar. Segunda: a convicção de que o Partido Socialista está tão fraco que fará tudo o que se lhe pede, incluindo o suicídio. Terceira: a possibilidade de o governo justificar com a “reforma do Estado” a sua enorme dificuldade em tratar da saúde e da Justiça. Em qualquer caso, é fraca a ambição.

Público, 7.6.2025

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1.6.25

No "Correio de Lagos" de Maio de 2025

 

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No "Correio de Lagos" de Maio de 2025

 

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31.5.25

Grande Angular - Temos governo

Por António Barreto

Até quando? Há vários governos possíveis. Basta fazer as contas. PSD com Chega. PSD com Chega e IL; PSD com PS; PSD com PS e IL. Estes são os maioritários possíveis. Não necessariamente prováveis. Depois, há os impossíveis, também maioritários: dos três grandes partidos, à maneira de “governo nacional”, aos enfeitados com acrescentos de esquerda ou direita. Mas há ainda o minoritário, o mais provável, nas actuais circunstâncias, do PSD. O governo minoritário é erro de palmatória. Mas vai ser muito difícil evitá-lo.

 

O destino de um governo minoritário é sempre o mesmo: fazer coisas boas para crescer o mais possível até chegarem as eleições antecipadas, inevitáveis como as estações do ano. Nesse sentido, a formação deste governo, agora anunciada com a indigitação do Primeiro-ministro, terá como missão exactamente essa: distribuir, agradar e, dentro de um ano ou pouco mais, chamar novas eleições. A não ser que um dos partidos de oposição entenda manter-se assim durante vários anos e deixar governar a minoria. Isto faz com que o governo minoritário, qualquer que ele seja, será sempre provisório, à espera da primeira oportunidade para recomeçar a dança eleitoral. É possível que haja governos minoritários “bons”, isto é, que façam obra e que acudam ao mais urgente. É possível. Já aconteceu. Mas têm o destino marcado. Vivem sob pressão e chantagem. Acabam cedo ou mal. Caem ou são derrubados. Têm como principal missão a de serem reeleitos e aumentarem a votação. Raramente conseguem tal desejo. Mas quase nunca governam de modo a deixar marcas e projectos.

 

Que diabo aconteceu em Portugal, que bicho mordeu aos portugueses, que têm uma fatal inclinação para governos minoritários? É uma doença infantil da democracia, que faz da política um jogo complexo das mentes brilhantes. Ou um puzzle lúdico próprio de iluminados. O jogo político é mais importante do que governar bem, ser eficiente e estar atento. Merece mais esforço do que lutar contra as desigualdades, combater a injustiça e diminuir a ignorância. Exige mais acção do que gerir bons serviços públicos, criar riqueza e promover a ciência. É uma arte complexa, com pós-graduação em minas e armadilhas, doutoramento em coreografia e mestrado em moeda falsa.

 

“Ganhar eleições” é uma expressão simples, mas traiçoeira. Entre nós, quer simplesmente dizer “ter mais votos”. “Vir em primeiro lugar” é outra maneira de o dizer. Por outras palavras, governa quem ganha eleições. É o princípio de base da democracia. O problema é que essa compreensão é perversa. Ganhar eleições pode não querer dizer governar ou formar governo, dado que este tem, depois, de ter a maioria no parlamento. Já tivemos disso. Pode até acontecer que o segundo partido consiga, no Parlamento, ter mais votos, seja para chumbar o primeiro, seja para formar governo com aliados. Também já tivemos disso. Na verdade, é esta a noção mais interessante: ganha eleições quem tem mais votos ou suficientes para formar governo e aprovar leis. Sozinho ou acompanhado.

 

Ainda não estavam contados, nas últimas eleições, todos os votos e já os analistas e activistas faziam contas, sempre com objectivos em mente: como garantir um governo minoritário? Como fazer tropeçar os outros partidos? Como enganar os rivais? A ideia abstrusa de governo minoritário está tão profundamente enraizada que já faz parte da gíria garantir que um governo maioritário é negativo, que uma maioria parlamentar é condenável e que essas são soluções que promovem o autoritarismo.

 

Evidentemente, um dirigente partidário quer a maioria para si e para o seu partido. Desde que seja só sua. Condena a dos outros, festeja a sua. Mas tem de ser sozinha. Isto é, nem pensar em alianças pré-eleitorais (a não ser para criar ilusões, como a AD ou a CDU), nem em coligações parlamentares pós-eleitorais. O partido mais votado que pretende uma coligação de governo dá um sinal de fraqueza. Os partidos menos votados que sugerem coligações dão “parte de fracos”.

 

Que pretende o governo minoritário do PSD? Salvar Portugal, desenvolver o país, melhorar a igualdade, dar oportunidades a todos e aos jovens em especial e realizar grandes projectos de futuro. Isto é o que diz. Banalidade no estado puro. Mas não perde tempo a preparar os instrumentos, as alianças, os acordos e as maiorias parlamentares necessárias. Vencidas umas eleições, o partido que as ganhou (com minoria parlamentar) nem pensa dois segundos na necessidade de ser maioritário, de ter apoio parlamentar durável e coerente e de efectuar uma aliança que lhe dê os meios necessários para realizar os seus maravilhosos planos. Não. O que é preciso é tomar posse, nomear, gastar e distribuir. 

 

Tudo o que precede alimenta a lenda do governo minoritário. Mais a obsessão em não associar outros partidos ao governo. Mas hoje, há também outros argumentos que se pretendem sofisticados. Fazer alianças ou coligações e construir maiorias parlamentares duráveis são actos negativos e prejudiciais. Nem se percebe muito bem porquê, mas é a realidade. Hoje, ganhar as eleições é sinónimo de ter mais votos. Mas deveria ser formar governo aceite pelo Parlamento. A não necessidade de aprovar o governo é uma das maiores perversões do sistema e da cultura política nacional.

 

Nos dias que correm, há ameaças no ar. As eleições não deram indiscutível vencedor. Não forjaram maioria. As presidenciais que se avizinham já provocam medo. As crises internacionais também. Por isso há fantasmas. Receio da fragmentação política e partidária? Medo da instabilidade? Pavor de novas eleições? Temor do crescimento do Chega e de outros movimentos radicais? Tudo isso se combate de várias maneiras, mas uma é, em todo o caso, indispensável: o governo de maioria parlamentar. A acção persistente que cria emprego. A estabilidade que permite o trabalho continuado. A serenidade indispensável para as mais ousadas reformas, como a da justiça. E outras virtudes que só se conseguem com maioria parlamentar, com tempo e com a “força tranquila”.

 

Os governos minoritários, tão do agrado dos portugueses, são as condições da ineficácia e da impotência. Proponha o PSD uma coligação ao PS e verá o valor dessa pedagogia. Aceite o PS um convite do PSD para formar governo e verá o serviço prestado ao país. Deixem o PSD e o PS continuar a vegetar nos pântanos da minoria e ver-se-á o mal que fazem ao país. Verão também o impulso que darão ao Chega para continuar a sua marcha triunfal.

 

Temos governo. A sério?

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Público, 31.5.2025

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