28.11.25

Grande Angular - Aos Sobrinhos e Netos

Por António Barreto

Sei que alguns de vocês votam agora pela primeira vez. Também sei que outros, desde que chegaram à idade adequada, votaram sempre. Uns, desde então, continuaram a votar nos mesmos, enquanto outros foram mudando. Também sei que alguns só votaram de vez em quando, enquanto outros nunca o fizeram. A todos saúdo e aos que nunca votaram digo com especial empenho, “pensa duas vezes, não perdes nada e, de qualquer maneira, a decisão é tua: se votares, não perdes liberdade, antes pelo contrário”.

 

A longa campanha eleitoral para a Presidência da República segue o seu caminho, está quase no fim. Depois das legislativas e das autárquicas, alguns de vocês perguntam-se sobre a utilidade destas eleições. O Presidente não tem poder. Os candidatos, este ano, não são grande coisa. Parece mesmo que há candidatos perigosos, seja porque, com a cumplicidade de partidos políticos, querem deixar tudo na mesma, seja porque, mesmo sem poderes para isso, querem mudar tudo e varrer o que for possível porta fora.

 

É provável que estas eleições e seus resultados não sejam muito importantes. Mas também pode acontecer que delas dependa a paz que se deve seguir. Ou que delas resulte grande desordem. Logo se verá o resultado. Mas, sem votares, nunca poderás dizer que contribuíste. É mesmo provável que, se as coisas não correrem bem, te arrependas de não ter dito, em seu tempo, o que querias e o que não desejavas.

 

Pensas que o essencial da vida que te agrada em nada depende da política e das eleições. O teu emprego, a tua casa, a família que estás a começar, a carreira que queres prosseguir, os locais que queres visitar e tudo em que queres empregar o teu tempo, das artes à profissão, tudo isso depende de ti e das oportunidades, nada depende da política e das eleições. Por isso, dizes tantas vezes que a política não interfere na tua vida.

 

Sei ainda que estás desconsolado ou decepcionada com a política e as eleições. Não suportas a mentira e a demagogia, cultivas a sinceridade e a honestidade. Gostas de jogo limpo, detestas a trafulhice. Estás farto ou farta de ver que os políticos não fazem o que dizem, nem dizem o que vão fazer. Abominas a ideia de que outras pessoas, em particular os políticos, em vez de te deixar escolher e decidir, te digam o que deves fazer.

 

Detestas a corrupção, os políticos que roubam, que nomeiam os seus amigos ou os correligionários do seu partido, que concedem licenças de construção a quem lhes interessa, que decidem conforme lhes dão “luvas”, presentes ou favores. Odeias os governantes, deputados, autarcas e altos funcionários que favorecem empresas e grupos, que dão vantagens a amigos ou a quem lhes paga, que permitem negócios estranhos e que vendem barato o património de todos ou do Estado.  Repudias os que deixam, porque lhes interessa, que se desenvolvam certas actividades clandestinas e ilegais, no comércio externo, na criação de empresas, no desenvolvimento de negócios escuros, nas actividades obscuras com certos produtos e com trabalhadores ilegais. E principalmente sentes repulsa pelas cunhas, quaisquer que sejam os autores e os beneficiados. E acima de tudo, vocês ficam furiosos com o facto de a justiça, tantas vezes, não ser capaz de reparar, punir ou prevenir.

 

Também sei que há dias em que quase desesperas ao ver povos assassinados, casas destruídas, cidades bombardeadas e fábricas incendiadas. Não percebes a mortandade da Ucrânia, não compreendes os massacres de Gaza. Estranhas as guerras civis no Sudão, no Iémen, na Síria, na Etiópia, na Nigéria, no Burquina Faso, em Moçambique e no Mali. Mas o que mais estranhas, o que realmente não percebes é que os países europeus, os países da NATO, os aliados do nosso país e as Nações Unidas não sejam capazes de evitar e contrariar estas guerras e estes massacres.

 

Fazes um juízo muito crítico sobre a evolução da sociedade portuguesa nas últimas décadas. Para quê envolver-se na política e para quê votar, se tudo fica na mesma, se nada muda, se ganham e perdem sempre os mesmos, se a pobreza continua tão evidente, se a desigualdade não diminui e se os portugueses, sem perspectivas nem oportunidades decentes, são obrigados a emigrar?

 

Não vos quero convencer de nada. O que mais respeito é a vossa liberdade de escolha e de pensar. Mas quero desmentir um facto ou uma opinião. Não é verdade que, nestes cinquenta anos, não houve mudança nem progressos. Nos anos 1960, quando eu era um jovem como vocês, mais de metade dos portugueses e das suas famílias não tinha em casa água corrente, nem electricidade, telefone, aquecimento ou sanitários. Mais de um terço não sabia ler e escrever, nunca tinha lido uma carta de amor, nunca tinha escrito um bilhete postal nem assinado um documento. Mais de um terço dos portugueses viviam no campo, trabalhavam na agricultura, nas florestas e nas minas e tinham verdadeiros salários de miséria. E a grande maioria dos cidadãos não podia dizer o que pensava, não tinha o direito de se exprimir ou de se associar, não podia ler os jornais nem ver os filmes que quisesse. As mulheres não tinham o direito de escolher algumas profissões, não podiam abrir contas bancárias, não conseguiam alugar uma casa ou iniciar um comércio, nem sequer ter um passaporte sem a autorização do marido. Muito longe dos outros europeus, os portugueses tinham a mais alta mortalidade infantil e a mais baixa esperança de vida. Eram tempos de pobreza. Eram tempos sem liberdades. Tudo isto, muito disto mudou. Hoje, o nosso país é incomparavelmente melhor do que há cinquenta anos.

 

É verdade que, passados todos estes anos, parece que a sociedade portuguesa começou a estagnar, a mudar pouco, a não melhorar. Tem-se a impressão de que o país está mal dirigido. Que os políticos não se dedicam a melhorar a vida dos outros, a vida de todos. Que os melhores entre os portugueses se dedicam às suas vidas, a si próprios e às suas famílias, esquecendo os outros. Que os políticos não se preocupam com os mais pobres, com os serviços públicos, com os hospitais, com as escolas e com as filas de espera. Que a corrupção e as cunhas continuam a ser moeda corrente. É possível que muito disto persista e mesmo que novas falhas surjam. Mas de nada vale ficar em casa. Esquecer. Fechar os olhos. Ignorar. De um modo ou de outro, estar presente é a melhor maneira de cuidar dos outros e de nos respeitarmos a nós próprios.

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Público, 2.11.2025

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22.11.25

Grande Angular - E a Justiça, senhores candidatos, a Justiça?

Por António Barreto

Justiça, isto é, os Tribunais e restantes órgãos e instituições judiciais fazem parte do poder político, são soberanos e independentes. A Constituição, suprema convenção da República, confere-lhes especial capítulo e dignidade. Como autónomos e soberanos que são, não estão submetidos a nenhuma instituição, a nenhum poder. O seu principal limite é o da lei. Que têm de cumprir e fazer cumprir. Independentes como são, ninguém pode interferir, dar ordens ou comandar. Mas, como todas as instituições humanas, entram em declínio periódico, perdem vitalidade, necessitam de mudança e renovação. Numa palavra, reforma. Ora, no nosso país, os tribunais e restantes instituições como a Procuradoria Geral da República, o Ministério Público, os Conselhos Superiores e outros Tribunais superiores, além dos numerosos tribunais civis, vivem há anos, talvez mesmo décadas, em crise crescente. O que nos faz pensar logo em mudança e modernização. E esperar pelas renovações necessárias. Todavia, o problema hoje é que a Justiça e as suas instituições perderam a capacidade de se auto-reformar. Depois de décadas a aumentar a sua força e a consolidar a independência, a Justiça encontra-se em beco sem saída, incapaz de realizar todas as suas funções com eficácia, prontidão, clareza e… justiça. No universo das instituições públicas portuguesas, a Justiça é talvez a mais criticada e mais mal vista pela opinião.

 

Depois de ter escapado ao 25 de Abril e à democracia, de ter passado ao lado da consagração dos direitos humanos, de ter evitado as implicações do mercado e da iniciativa privada e de ter ignorado, tanto quanto possível, a integração europeia e o respectivo direito, a justiça portuguesa parece estar ao abrigo de qualquer actualização necessária. Quase todos os indicadores disponíveis mostram uma justiça parada no tempo, com perdas ou estagnação de eficácia e com dificuldade em reparar quem merece ou castigar quem deve. Pior ainda do que de eficácia, a Justiça portuguesa parece estar a viver momento muito especial de crise de confiança, crédito e mérito.

 

Os magistrados judiciais e do ministério público aumentaram muito durante décadas (quatro vezes mais em outras tantas décadas), depois estagnaram e estão agora há anos em perda de número. Verdade seja dita que a produtividade e a eficácia, com mais ou menos recursos humanos, parecem nunca ter melhorado. Os sintomas são conhecidos e aparecem na imprensa todos os dias. Processos que se arrastam durante anos e décadas, sobretudo os que envolvem poderosos da política, das famílias e do dinheiro. Processos vistosos que esperam por resolução anos e anos. Uma opinião pública descrente que parece ter perdido a confiança. A permanente sensação de que há envolvimentos políticos graves, de que existem influências partidárias e de que as magistraturas estão divididas e se combatem entre si. A certeza de que são as classes médias, os trabalhadores, os destituídos, as mulheres e as crianças que mais sofrem com a má justiça.

 

De contornos mal desenhados, pouco nítidos, sempre susceptíveis de insuficiente compreensão, há ainda, o sentimento e a crença de que existem intenções políticas e partidárias na acção e na inacção de procuradores e magistrados relativamente a casos que possam envolver políticos. É, aliás, digno de nota, talvez inédito na Europa contemporânea, o facto de haver tantos primeiros-ministros, ministros, secretários de Estado e líderes de partidos a contas com a justiça, sejam ou não verdadeiras as causas, as suspeições ou os boatos. Contam-se por muitos os processos, as ameaças de processo, os julgamentos, as condenações, os arguidos, os suspeitos e as detenções de políticos e governantes. Somam-se as ameaças, os inquéritos abertos ou sugeridos, as escutas telefónicas durante anos, a vigilância discreta, os processos secretos que não podem ser consultados pelos suspeitos ou pelas vítimas e os relatos de supostas ou reais escutas telefónicas. Contam-se por muitos os processos iniciados e nunca acabados, as vigilâncias não concluídas, as ameaças de inquéritos injustificados, as fugas de informação e de matéria processual, o boato selectivo e a intriga dirigida. Será que as classes políticas portuguesas são particularmente corruptas, ilegais e libertinas? Ou será que as magistraturas portuguesas são particularmente velhacas, sedentas de poder e antidemocráticas?

 

Os actuais candidatos a Presidente da República têm-se revelado muito activos. As características especiais desta eleição fazem com que as campanhas sejam particularmente intensas. Os candidatos mostram-se muito intervenientes, com ideias para a acção política, opinião sobre quase tudo o que existe no espaço público, sugestões para a economia, a saúde, a educação, a segurança social… quem sabe que mais. Em quase tudo são excessivos. No entanto, relativamente à Justiça, o silêncio é absoluto. Nem crítica ou comentário, nem reforma ou planos. Ora, a verdade é que a crise da justiça é talvez a mais antiga e a mais grave da democracia portuguesa. E os candidatos dizem… nada! Ou tão pouco!

 

O que não destoa do silêncio estranho das instituições, incluindo deputados e autarcas, relativamente à Justiça e aos Magistrados e Procuradores. Dir-se-ia que não sabem. Ou não querem. Pior ainda: que têm receio.

 

Na ausência de auto-reforma, que seria o ideal, a reforma e o melhoramento da justiça só podem vir de fora. Do governo? Do parlamento? Do presidente? Por causa da independência dos tribunais, do governo só devem vir os meios. Do parlamento, a legislação. Do Presidente da República é que pode vir algo mais: a influência, a inspiração, a energia e a preocupação.

 

Não esqueçamos que o Presidente tem o poder de nomear o Procurador Geral da República, o presidente do Tribunal de Contas e dois vogais para o Conselho Superior da Magistratura. Parece pouco, mas não é. É um enorme poder. Mas poderá ainda influenciar partidos, corpos profissionais, instituições e opinião pública. Como poderá inspirar deputados e eleitos. E persuadir magistrados. Tudo isto, sem pisar os pés da independência e da autonomia. E mesmo sem esperar pela revisão da Constituição.

 

Ajudava, por parte dos candidatos, mais empenho e mais sentido da responsabilidade. Mas não. Atá à data, à Justiça disseram nada!

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Público, 22.11.2025

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15.11.25

Grande Angular - Quanto vale ser Português?

Por António Barreto

Os Socialistas decidiram solicitar ao Tribunal Constitucional o exame da lei sobre a nacionalidade aprovada pelo governo e pelo parlamento. Ainda bem que o fizeram. A questão não é só política (social e cultural), é também constitucional. Na verdade, prever a perda da nacionalidade a portugueses naturalizados e culpados de crimes implica admitir que haverá duas qualidades de cidadãos: uns que se podem expulsar e desnaturalizar; e outros para quem os castigos da justiça bastam. Eis uma disposição moralmente inaceitável. Mas é também de uma inconstitucionalidade flagrante. Entre os governantes e os deputados que aprovaram tal lei, há pessoas com pergaminhos intelectuais e jurídicos, há gente sensata e profissionais competentes. Não se percebe como a miopia ou a falta de segurança, para já não dizer a arrogância, conseguem sobrepor-se àquelas qualidades a fim de aprovar esta ignominia.

 

O governo e o parlamento são livres de aprovar as leis em que acreditam. Mais ou menos sociedade civil, mais ou menos igualdade, mais ou menos Estado: cada um entende à sua maneira. Mais ou menos segurança, mais ou menos riqueza, mais ou menos solidariedade: governantes e deputados têm o direito de aprovar o que defendem. Muito da democracia e do Estado de direito é composto de convenções e de acordos passageiros. A questão dos prazos de residência dos candidatos é relevante, mas apenas traduz opções administrativas, eventualmente culturais, sobre as quais poderá haver pluralidade de opiniões. Desolador é ver que os governantes e os deputados que aprovaram esta lei o fizeram porque acreditam ou porque lhes dá jeito. Na ocorrência, os dois motivos são válidos. Em qualquer dos casos, é lamentável ver a mediocridade em plena acção.

 

O dispositivo da perda de nacionalidade é significativo. Os seus responsáveis consideram-se capazes de avaliar comportamentos e de decidir discricionariamente sobre o que vale e quem merece ou não ser português. Pensam-se à altura de decidir contra a Constituição para tentar aproveitar a maré. Entendem que os portugueses naturalizados têm mais obrigações do que os residentes nacionais. Pensam que os nacionais têm desculpa, enquanto os naturalizados não têm. Este é o pior aspecto da lei, aquele para o qual esperamos a demolição pura e simples pelo Tribunal Constitucional e pelo Presidente da República.

 

Mas há também aspectos risíveis e presunçosos. Os que estabelecem as condições culturais para que alguém possa obter a nacionalidade. Se o domínio da língua portuguesa faz algum sentido, já o conhecimento da cultura deixa a desejar. Qual o grau de conhecimento? Não se está a criar uma exigência que nem a maioria dos portugueses seria capaz de satisfazer? Também se exige que os candidatos conheçam suficientemente a história de Portugal e os símbolos nacionais, assim como os direitos e deveres fundamentais inerentes à nacionalidade portuguesa e a organização política do Estado, além da declaração solene de adesão aos princípios do Estado de Direito Democrático. Eis matérias de muito difícil tratamento, cujos graus de adesão são impossíveis de medir. Mais uma vez, exigências tais que talvez a maioria dos portugueses, incluindo governantes e deputados, não consegue cumprir. Também aqui, além de intenções estranhas, do domínio do espírito totalitário, se pode detectar um reflexo segregador a exigir dos naturalizados cultura, profissão de fé, respeito democrático, conhecimentos de história e acatamento dos princípios constitucionais que não são exigidos aos portugueses originários.

 

Houve um ministro, geralmente comedido, que perdeu a cabeça e proclamou: a partir de agora “Portugal é mais Portugal”. É demagogia tão barata! Tão inútil! Tão falsa nos seus fundamentos! Donde virá a responsabilidade por tal desatino? Terá sido do CDS? Do Chega provavelmente? Talvez do PSD? Quem sabe se do governo. Da inteligência não foi certamente. Nem da democracia. Nem da liberdade. O slogan não resiste a uma tentativa de compreensão. Portugal fica mais Portugal simplesmente porque endurece as condições de aquisição da nacionalidade? Não se percebe. A não ser que se aceite a demagogia como critério da portugalidade.

 

Apertaram-se as condições e as convenções. Aumentaram-se as exigências, de acordo com estimativas. Mais tempo em Portugal, mais casado, com pais a viver há mais tempo… Tudo isso é possível. Mas denota medo e falta de confiança. Traduz um desvio de intenção. Na verdade, os visados desta lei são os imigrantes. Mas, para aproveitar a maré ideológica e comover espíritos inquietos, aproveita-se a discussão sobre a imigração, para poder brilhar com o nacionalismo. É tão pacóvio tudo isso!

 

O controlo da imigração, indispensável e necessário, não se faz com condições mais difíceis na aquisição da nacionalidade, dependendo dos anos de residência e de trabalho. O controlo da imigração tem outras vias, outros objectivos e outras exigências. Por exemplo, obrigar à legalidade da entrada no país e da residência. Ou exigir a legalidade do trabalho e do emprego. Ou ainda impor a inscrição na Segurança Social e o cumprimento dos deveres fiscais. E finalmente demonstrar legalmente a identidade e as relações familiares legais: eis requisitos úteis para controlar a imigração. Assim como é necessário distinguir entre refúgio, asilo e imigração. Tudo isto é essencial, para construir uma sociedade justa e democrática. Nada disto tem qualquer relação com a naturalização e a nacionalidade.

 

O descontrolo da imigração significa o apoio à ilegalidade, à clandestinidade e ao tráfico de mão-de-obra. Assim como o favorecimento do mercado da droga, da exploração ilimitada dos trabalhadores, do abaixamento de salários dos residentes e da baixa produtividade. O descontrolo da imigração é uma abdicação do Estado de direito, um convite ao subterfúgio ilegal, à residência fictícia, ao mercado de endereços falsos, à prostituição de mulheres, homens e menores, à associação criminosa em geral. Nada disto tem a ver com a nacionalidade ou a naturalização. Tudo isto tem a ver com a legalidade e a política de imigração. Só a demagogia muito soez entende que a naturalização tem efeitos na criminalidade ou no descontrolo da imigração. Em poucas palavras: os criminosos castigam-se com a justiça, não com a nacionalidade.

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Público, 15.11.2025

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8.11.25

Grande Angular - Missão em Belém

Por António Barreto

Talvez seja cedo. Mas os programas políticos dos candidatos à Presidência da República ainda não são conhecidos. Isto é, não foram anunciados e publicados os programas formais de candidatura. As páginas da Internet, mesmo as oficiais, são pouco esclarecedoras. No entanto, após umas semanas de entrevistas, reuniões, sessões de esclarecimento e outros ágapes, já é possível delinear algumas orientações mestras, algumas prioridades. E sobretudo algumas faltas.

 

Nenhum candidato se comprometeu ainda com linhas programáticas claras. O tom geral, o clima e a música são já detectáveis, não os compromissos reais nem as intenções. O amor a Portugal e à democracia, o empenho pela liberdade e a garantia de estabilidade tocam a todos, não há diferenças nem novidades. Também a luta contra a corrupção, a preocupação com o bem-estar dos portugueses, a certeza da saúde e da educação, a ternura pelos pobres e pelos idosos e a criação de riqueza são de todos. Uns são mais atentos aos pobres, outros à Pátria. É difícil, com generalidades destas, encontrar diferenças e sinais distintos.

 

Mas o desenho exacto das funções presidenciais desejadas e prometidas está fora de campo de visão e de compromisso. Todos querem fazer bem ao país, mas ninguém diz como quer tratar o governo, o parlamento e as instituições. Ora, os grandes problemas, a exigir compromissos, são os da natureza das funções presidenciais. Como se sabe, a Constituição é essencial, mas não chega. O estilo próprio é indispensável para clarificar. A relação com o governo e o parlamento é a pedra de toque. A natureza da função presidenciais depende muito de várias condicionantes. Como a personalidade e o carácter do próprio e do chefe do governo. Ou a força da maioria parlamentar. Ou ainda a noção dos dispositivos constitucionais. A Constituição é importante, mas a interpretação que dela se faz é decisiva.

 

Terá o Presidente uma função liderante das instituições e dos órgãos de soberania? Ou apenas de cooperação com o governo e o Parlamento e equiparada à destes? Ou ainda uma função mista de, por um lado, Supremo Comandante e máximo representante da nação e do Estado e, por outro, ao apoio do governo e ao parlamento? É esta última, a mais difícil e complexa, que parece ser a mais útil para o país e a mais conforme com as necessidades e o espírito confuso da Constituição. Na verdade, ao Presidente compete apoiar o governo e o parlamento, não liderar nem orientar. Muito menos fiscalizar ou avaliar. É verdade que a Constituição, lida de certa maneira, pode sugerir uma liderança. Mas tal interpretação parece claramente a pior fonte de perturbação e confusão. Houve presidentes que, durante parte dos seus mandatos, entenderam que o apoio à acção do governo e do parlamento era o seu principal objectivo, a sua principal missão. Foram alguns dos melhores momentos da nossa vida constitucional. Também houve casos em que os presidentes entenderam que o seu papel era o de responsável, de liderança ou de empenho na acção política. Foram alguns dos piores momentos da nossa vida constitucional.

 

Olhando para o actual momento político, quando já só faltam dois meses para as eleições, é evidente a ausência de compromissos dos candidatos. Pior ainda, é clara a tendência, manifestada por todos os candidatos, para uma interpretação maximalista ou excessiva das suas funções. Todos pretendem assumir um papel liderante. Todos desejam desempenhar funções quase executivas, com foco na saúde, na educação, na criação de riqueza e na regulação das migrações, para já não falar na defesa nacional e nas relações externas. Na verdade, todos os candidatos actuais, mesmo sem a força e a clareza dos compromissos formais e dos programas de candidatura, dão claros sinais de pretenderem exagerar o seu papel, de se sobrepor aos governos, de com eles cooperar sem apoiar, ou até possivelmente dirigir. Parece mesmo que todos os candidatos se preparam para ultrapassar os limites da Constituição. Nestas coisas, o mimetismo funciona: se um exagera, logo os restantes seguem a mesma via.

 

É verdade que o papel do Presidente pode variar conforme as personalidades e as circunstâncias políticas. Feliz ou infelizmente, não existe uma dogmática para a sua interpretação. Mas uma coisa parece certa: a rivalidade de legitimidades, a competição de poderes e a sobreposição de competências são negativas para o país e o sistema democrático. Em contraste, o papel de apoio presidencial ao governo não cria problemas novos, não é fonte de conflitos desnecessários, nem perturba o funcionamento das instituições.

 

Se vivêssemos tempos pacíficos de equilíbrio político e de estabilidade institucional, seria talvez o momento adequado para pensar a tão adiada revisão constitucional. Uma das mudanças mais interessantes seria mesmo a de repensar o modo de eleição do presidente. Esta última, feita directamente pelo povo, poderia ser substituída pela eleição indirecta, provavelmente fonte superior de equilíbrio e estabilidade. Mas não parece ser possível. Por causa de Salazar e de Delgado: o primeiro deu má fama à eleição indirecta, o segundo deu bom nome à eleição directa. Depois, porque nada ajuda a que se faça, serenamente, nos tempos que correm, uma revisão constitucional.

 

De toda a maneira, quem quer que seja o presidente eleito e qualquer que seja o entendimento dos seus poderes, a acção presidencial pode incluir dimensões excepcionais de acção. Pode o Presidente ter papel relevante, mormente em apadrinhar ou estimular o funcionamento e a reforma de sectores importantes da vida pública, nomeadamente os de cariz mais nacional do que político. Por exemplo, o Presidente, como Supremo Comandante, pode perfeitamente, talvez deva mesmo, estimular a organização e a reforma da defesa nacional. Como pode, com grande proveito para todos os cidadãos, activar e até inspirar a reforma da justiça.

 

Esta última é particularmente necessária. Os tribunais, como órgãos de soberania, necessitam de inspiração, de energia e de liderança institucional, que não pode ser dada pelos governos nem pelos parlamentos, sob pena de perda de independência. Por outro lado, as divisões entre corpos da justiça fazem com que esta não seja capaz, sem impulso externo e sem legitimidade superior, de se reformar. Até hoje, os parlamentos, os governos e os magistrados revelaram-se impotentes ou simplesmente sem vontade para reformar a justiça. Talvez um Presidente da República consiga. 

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Público, 8.11.2025

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1.11.25

Grande Angular - Ventura, Salazar e os Ciganos

Por António Barreto

Saber se Ventura é ou não fascista é questão relativamente pouco interessante. Nem ele o saberá, talvez. Há hoje, à face da terra, em Portugal e no mundo, outras variedades de simpatias políticas, umas mais interessantes, outras mais perigosas. Saber se ele é racista, colonialista, adepto da supremacia branca, populista, machista, paternalista, integrista ou integralista, eis questões também pouco importantes, mas às quais já se pode prestar alguma atenção, a fim de compreender a pessoa.

 

Os cartazes de Ventura, tanto o dos Ciganos, como o do Bangladesh, são de enorme mau gosto, são tolices irremediáveis, mas de enorme eficácia: tinham como objectivo o de acicatar os piores sentimentos de parte da população e o de provocar oposição e ameaças de censura. Objectivos alcançados, pelo menos em parte. Esperemos por mais até às próximas eleições. E saibamos resistir ao impulso de algumas pessoas que consiste em censurar e proibir.

 

Uma das expressões favoritas de Ventura, “pôr isto em ordem”, é de uma absoluta infantilidade, é destituída de cultura e pensamento, trata-se de um mero desabafo próprio de quem procura o reflexo condicionado, não a razão nem sequer o sentimento. Deixemo-lo prosseguir nessa via, até cair no ridículo ou até revelar a vacuidade dessa palermice inqualificável. A expressão constitui lugar comum ou cliché conhecido, tem muitas décadas de existência, não quer dizer nada e quer dizer tudo. Cada pessoa que a ouve percebe-a como quer, dá-lhe o conteúdo que deseja. É uma palavra de ordem que nada implica de conteúdo, nem de política, nem de objectivos, mas apenas alude à entrega do poder a um aventureiro. É retórica usada por todos os candidatos a líderes, verdadeiros ou maquilhados, que apenas pretendem que lhes seja dada confiança sem limites. Trata-se de expressão com equivalentes, igualmente destituídos de conteúdo, tais como “limpeza” e “vassourada”. Que se vêm acrescentar a outra de uso corrente e preferida por Ventura, sem qualquer conteúdo nem sentido, mas de forte capacidade de excitação, que é a “vergonha” que ele exprime e a “falta de vergonha” dos outros. A liberdade de expressão também inclui estes lugares comuns e estes disparates. 

 

Recentemente, Ventura fez nova aquisição teórica e política, para não dizer cultural: a expressão “é preciso um Salazar” ou mesmo “nem três Salazares chegavam”. A tolice é tanta que nem sequer tem graça. É apenas confrangedor, mas tem um mérito: revela as inclinações de Ventura. Veremos como os eleitores lhe pagarão esta confissão.

 

Estas expressões de Ventura, estas provocações de pequeno porte e reduzida inteligência, têm o condão de excitar os seus seguidores: é bom para eles, é alimento para as almas. Mas também têm o efeito de suscitar, junto dos seus adversários, as piores reacções imagináveis, da censura à proibição, passando pelo processo judicial. Punir Ventura porque é racista? Porque diz parvoíces? Proibir Ventura de dizer disparates? Não faz qualquer sentido. Ventura é assim. Pensa e diz coisas estranhas. Não sabemos se pensa, mas pelo menos diz.

 

Proibir e castigar fazem sentido quando se trata de actos, de factos, não de pensamentos ou palavras. Proibir intervenções ou cartazes por serem a tradução de “discurso de ódio” é acto tão condenável quanto o da utilização desse mesmo discurso. O “discurso de ódio” é uma das grandes invenções do tempo presente. Uma das grandes idiotias. O que é exactamente ninguém sabe. Ou antes: cada pessoa sabe, porque cada pessoa define o seu próprio ódio, cada um define os limites que prefere. Daí a encontrar definições gerais e abstractas, limites reais e palpáveis, é uma impossibilidade. Desabafar, criticar ou fazer ironia à custa de um povo ou de uma nacionalidade é “discurso de ódio” conforme quem denuncia e quem pratica: a avaliação do ódio será diferente conforme se trate de americano ou russo, judeu ou palestiniano, africano ou chinês. Não se trata, como é evidente, de terreno sólido para legislar.

 

Os gestos, os actos, os factos e as acções são uma coisa. As vozes, a palavra, a expressão pública de qualquer crença, o desejo, a vontade, o desprezo ou o insulto são outras coisas. Enquanto não houver acções racistas e violentas, incitamento e organização da violência, agressão a pessoas e vandalização de bens, os desabafos de Ventura e outros não passarão disso mesmo, palavras. Desde que não violem ou atentem realmente, não apenas verbalmente, contra os direitos e a integridade de imigrantes, ou seja de quem for, as palermices de Ventura e outros serão desabafos, desejos de arruaceiros e demagogia barata. Querer “correr” com os estrangeiros e os imigrantes é tão inteligente quanto “correr” com capitalistas, sindicalistas, padres ou militares. 

 

Todos têm o direito de não gostar de ciganos, bengalis, árabes, negros, russos, americanos e até portugueses. Todos têm o direito ao preconceito e a considerar inferiores, estúpidos, perigosos e ameaçadores os outros povos. Mais difícil ainda: todos têm o direito a exprimir publicamente os seus pensamentos, as suas crendices e os seus preconceitos. Tentar censurar, proibir ou controlar a expressão verbal dos seus pensamentos é tão grave quanto cometer actos de agressão ou de violência.

 

Há ainda a questão do insulto. Muitas pessoas pensam que o insulto deve ser controlado, censurado, eventualmente castigado. É uma velha questão. Sem pretender inovar ou ser exaustivo, o importante é distinguir entre insulto e calúnia. A segunda é em geral motivo de processo e condenação. Não se pode acusar alguém de ter praticado ou cometido actos que comprometem a honra, a reputação, a carreira ou a vida privada. Já o insulto é livre. Até ao ponto de prejudicar outrem. Sem isso, o insulto faz parte da liberdade de pensamento e de expressão. 

 

As intenções de Ventura e de outros são ou parecem claras: quer ser perseguido, pretende ser proibido de falar, gostaria de ser ilegalizado, espera que alguém o acuse em tribunal, deseja que a polícia o procure e pensa mesmo que alguém, privado ou público, o poderia ameaçar. Anseia ter razões de queixa, com a esperança de ser uma vítima dos que são contra a liberdade de expressão. Ficará encantado se o acusarem de discurso de ódio. Será para ele glorioso o dia em que será acusado e processado por uso da liberdade.

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Público, 1.11.2025

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