16.9.24

RACIONALISMO, HUMANISMO, ILUMINISMO E DESPOTISMO ILUMINADO,

Em poucas palavras, para gente com pressa.

Por A. M. Galopim de Carvalho

Os avanços da ciência, levados a cabo, no Renascimento, por Da Vinci (1452-1519) e Galileu (1564-1542), em Itália, mais tarde, por Nicolau Steno (1638-1686), na Dinamarca, e Isaac Newton (1643-1722), em Inglaterra, na chamada Revolução Científica do século XVII, e o espírito de abertura ao conhecimento fomentado pela exploração do mundo desconhecido pelos navegadores portugueses e espanhóis, foram importantes para a eclosão e consolidação do Racionalismo entendido como uma atitude mental, ou linha de pensamento que aponta o raciocínio lógico, ou seja, a razão (tida como a principal fonte de autoridade e legitimidade) como o caminho para se alcançar a verdade. Por sua vez, o Racionalismo foi “caldo de cultura” para o surgimento de uma outra, que marcou o chamado “Século das Luzes”, designada por Iluminismo. Esta outra atitude mental, descrita como um movimento intelectual e filosófico centrado na razão, advogava a liberdade, o progresso, a tolerância, a fraternidade, o governo legitimado pelo povo, o questionamento dos dogmas religiosos e, ainda, o Reducionismo apontado como a via segundo a qual, um sistema composto deve ser dividido nas suas partes que, uma vez estudadas cientificamente, permitem conhecê-lo, no seu todo.

Entre os mais destacados racionalistas sobressaem o francês René Descartes (1596-1650), o alemão Gottfried Leibniz (1632-1677), o holandês de origem portuguesa Bento Spinoza (1632-1677) e os ingleses Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704), estes dois últimos focalizados no pensamento social e político. 

A par do Racionalismo desenvolveu-se uma atitude ética, vinda de trás e se afirmou no Renascimento, conhecida por Humanismo. Emergia assim, de séculos do obscurantismo religioso que caracterizou a Idade Média, uma nova era iluminada pela razão. Ao Teocentrismo, que colocou Deus no centro do das preocupações e dos temores do ser humano, opusera-se o Antropocentrismo que o libertou dessa servidão e o colocou no centro dessas mesmas preocupações.

A História mostrou que a independência dos Estados Unidos, em 1776, e a Revolução Francesa, cerca de um quarto de século depois, em 1789, tiveram por fundamentos as ideias saídas do Racionalismo, do Humanismo e do Iluminismo que teve seu ponto alto com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, publicada em Paris, a 26 de Agosto de 1789.

Os racionalistas tinham grande fé no poder da razão, defendendo que, mediante o uso desta nossa superior capacidade, seria possível um progresso sem limites. O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), afirmava que era fundamental "ousar conhecer". Surgiu assim, o interesse em reexaminar e pôr em questão as ideias ancestrais, entre as quais as da doutrina da Igreja (a partir de então duramente questionada), cujo declínio foi favorável ao crescimento do Secularismo, entendido como o sistema que defende a separação entre o poder político e as instituições religiosas.

Foram muitos os elementos das elites intelectuais francesas que dilataram e divulgaram o Iluminismo, com destaque para Voltaire (1694-1778), Charles de Montesquieu (1689-1755), Denis Diderot (1713-1784) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1788). David Hume (1711-1776), na Escócia, Cesare Beccaria (1738-1794), na Itália, Benjamin Franklin (1706-1790) e Thomas Jefferson (1743-1826), na América do Norte, fizeram outro tanto. Foram as suas ideias que serviram de fundamento ao liberalismo, o político, e, mais tarde, o económico. 

O liberalismo acabou por invadir os círculos do poder, estando na base do Despotismo Esclarecido ou Iluminado, entendido como uma modalidade de governo que partilhava a exaltação de Estado e o poder absoluto do rei com as ideias de progresso e de filantropia defendidas no Iluminismo. Alguns monarcas de então, receosos de perder o poder ou, mesmo, a cabeça, aceitaram respeitar algumas destas ideias (não foi o caso de Luis XVI, que acabou por perdê-la em 1793). Entre eles, destacam-se Frederico II (1712-1786) da Prússia, Catarina II (1729-1796) a Grande, da Rússia, José II (1741-1790), da Áustria e Carlos III (1716-1788), de Espanha. 

Em Portugal esta modalidade foi seguida por D. José I ou, melhor dizendo, pelo Marquês de Pombal. O Despotismo Iluminado chegou aqui através dos portugueses letrados que viajavam pela Europa, os chamados estrangeirados, com destaque para o padre Luís António Verney (1713-1792), filósofo, teólogo, professor e escritor, e para Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal (1699-1782) que, antes de ter sido o 1º ministro de D. José I, foi embaixador em Inglaterra e na Áustria, onde recebeu forte influência das concepções culturais e filosóficas próprias do Iluminismo.

Foi sob esta modalidade de governo que, entre nós, teve lugar a reforma do ensino, a expulsão dos Jesuítas, o apoio às ciências e às artes, com o convite a professores e artistas estrangeiros para ensinarem e trabalharem em Portugal e a criação da Academia Real das Ciências em 1779.

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14.9.24

Grande Angular - Valores mais altos do que telemóveis

Por António Barreto

Há mais de cinquenta anos, um estranho acontecimento ocupou as primeiras páginas dos jornais de todo o país. Em Lamego, no Liceu, um aluno tinha sido apanhado a copiar, num exame, de maneira especialmente original e moderna. Não propriamente a copiar, mas sim a burlar com métodos criativos. Aparentava sinais de ferimentos na cabeça, por cima dos quais uma ligadura dava o toque realista. Na verdade, o truque escondia um minúsculo receptor de rádio que recebi indicações para resolver as questões do exame. Em casa, seu irmão, pequeno génio de tecnologia, tinha desenvolvido um transmissor artesanal de grande eficácia. Cinco minutos depois de começada a prova, dirigia-se ao Liceu, pedia uma cópia do enunciado, corria para casa e ditava ou inspirava as respostas. Um comerciante vizinho, no seu rádio, ouviu vozes que identificou como respostas a um exame. Foi ao Liceu e denunciou a marosca. Os professores foram ver e rapidamente detectaram a aldrabice. O aluno chumbou, mas foi reabilitado no ano seguinte. O irmão foi rapidamente recrutado por uma empresa especialista naquelas técnicas. Toda a gente compreendeu o castigo do burlão, mas o país inteiro simpatizou com os irmãos e seu feito. A tal ponto que, nessa noite, a loja do denunciante foi apedrejada e vandalizada. Nunca mais reabriu.

 

Esta pequena história serve, entre outros usos, para perceber o imenso abismo tecnológico, pedagógico e moral que nos separa daqueles dias. Os telemóveis de hoje, ou antes, os smartphones são poderosas armas ao alcance de toda a gente, que servem para todos os fins imagináveis: burla, jogo, invenção, cultura e lazer. Investigação, cálculo, informação, espionagem e roubo. Meditação, namoro, organização, controlo e gestão. Banditismo, terrorismo, filantropia e solidariedade. Os smartphones são portas abertas de cada um para o mundo e deste para cada um.

 

A discussão actual sobre o uso dos telemóveis nas escolas não é mais do que a repetição, actualizada, da mesma questão debatida há vinte anos. Pode ou deve proibir-se ou admitir os smartphones nas escolas? A sua proibição não vai atentar contra direitos fundamentais, a liberdade de expressão e o direito à informação? A sua admissão, pelo contrário, não vai liquidar o espírito da escola, a autoridade dos professores, o esforço de aprendizagem e o recato necessário para pensar e estudar? Convém notar que, há trinta anos, estes aparelhos pouco mais eram do que telefones e canais de mensagens escritas. Hoje, são tudo o que se sabe e ainda se não conhece.

 

O dilema não se limita à alternativa habitual, sim ou não. Na verdade, o problema é muito mais complexo. Todas as questões particulares são pertinentes. Quem deve ou pode ter a autoridade para tomar esta decisão? O Parlamento, o Governo, o Ministério, a Escola ou o professor?

 

A que se deve circunscrever a decisão? À escola no seu todo? Às salas de aula? Aos recreios e cantinas? Às salas de estudo e convívio?

 

As decisões sobre os smartphones são equiparáveis às que dizem respeito às tabletes, aos computadores e outros dispositivos? Que fazer com as necessidades evidentes de utilização destes para mil e uma funções educativas? Mesmo admitindo que a qualidade e a beleza das aulas magistrais são insubstituíveis, é evidente que há muitas outras formas de aprendizagem que não se limitam às aulas.

 

Além de troca de correspondência e de comunicação verbal, o smartphone também pode servir de dicionário, vocabulário, máquina de calcular, biblioteca, máquina de fotografia e cinema, reprodução musical, arquivo, compra e venda do que se quiser, actividade bancária e bolsista, aposta e vidência. Sem falar nas redes sociais e em todas as funções (saúde, estacionamento, informações, turismo, horários, mercado, etc.) essenciais para a vida quotidiana. É possível proibir umas funções e admitir outras?

 

Nada se passa sem que atravesse também os smartphones. Tudo o que é importante e tudo o que não é importante começa, acaba ou passa pelos smartphones. É o mais esplendoroso instrumento de liberdade, de morte, de conhecimento e de destruição. Faz algum sentido tomar uma qualquer decisão sobre o uso destes aparelhos nas escolas?

 

Faz todo o sentido. O uso intensivo e permanente do smartphone é absolutamente destruidor do que de melhor se pode passar na escola. O ensino, o diálogo e o debate são incompatíveis com o smartphone. O recato, o silêncio e a reflexão são destruídos pelo smartphone. A imaginação, a criatividade e o esforço pessoal são substituídos por todos os recursos “fast” que os smartphones proporcionam. O processo educativo inclui dimensões, qualidades e métodos não substituíveis por ciência esquemática, ensino plastificado e cultura empacotada.

 

Sei bem que a liberdade de expressão e o direito à informação, as duas flores mais frágeis da democracia, também estão ligadas ou podem beneficiar dos smartphones. Como sei que os ataques contra as redes sociais e o uso doloso das mesmas são ameaças contra as liberdades. Mas também sei que, tal como tantos outros instrumentos, aparelhos e funções, também estes podem e devem ser regulados. Guiar automóveis, usar armas, pilotar barcos e aviões, beber álcool ou consumir certas substâncias medicinais ou recreativas, exigem autorização, têm regras, só estão acessíveis em certas condições, segundo os locais e as idades. Regular o uso dos smartphones nas escolas, eventualmente também noutros locais de carácter reservado ou privado, é aceitável do ponto de vista da liberdade, desde que não seja instrumento de opressão de qualquer espécie (por exemplo, proibir uns e permitir outros). Nas escolas, muito especialmente nas salas de aula, os smartphones são instrumentos de perturbação e de destruição de valor superior, naquele momento e naquela ocasião, o da aula. A sua proibição nas salas de aula, com ressalvas excepcionais, justifica-se do ponto de vista da liberdade individual, do pensamento e do conhecimento.

Permitir ou proibir crianças de dez anos ou adolescentes de quinze de usar smartphones onde quiserem e quando quiserem são prerrogativas e deveres dos pais e dos familiares. Mas, nas salas de aulas, não são eles que têm autoridade para tanto. Nenhuma máquina desempenha com vantagem as funções da aula e do ensino. Nenhuma cópia é superior ao diálogo e ao estudo. Nada substitui o carácter humano do processo educativo.

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Público, 14.9.2024

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13.9.24

No "Correio de Lagos" de Julho de 2024

 

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12.9.24

AOS PROFESSORES DE GEOLOGIA


Por A. M. Galopim de Carvalho

Nota importante:

Os conhecimentos mais recentes relativos à Teoria da Tectónica de Placas, rejeitam o essencial da explicação da movimentação das placas por efeito das correntes de convecção. Aceita-se hoje (e aqui está o essencial da nova visão da teoria) que:

A PARTIR DO MOMENTO EM QUE GEOFÍSICOS E GEÓLOGOS GANHARAM CONSCIÊNCIA QUE A LITOSFERA ESTAVA FRAGMENTADA EM PLACAS, DEDUZIRAM QUE PODERIA SER O PRÓPRIO AFUNDAR DAS PLACAS NAS ZONAS DE SUBDUCÇÃO (COINCIDENTES COM A FOSSAS ABISSAIS) A CAUSAR O SEU MOVIMENTO. ISTO ACONTECE PORQUE, COM O PASSAR DOS MUITOS MILHÕES DE ANOS, AS PLACAS OCEÂNICAS VÃO FICANDO CADA VEZ MAIS FRIAS E, PORTANTO, MAIS DENSAS DO QUE O MANTO QUE ESTÁ POR BAIXO.

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JANGADAS DE PEDRA

(Do meu livro “Como Bola Colorida”. 2ª edição actualizada, Âncora, 2023)

De há muito que a quase justaposição dos contornos das costas atlânticas da África e da América do Sul despertou a atenção de alguns investigadores. Encarados como partes de um todo, estes dois continentes ter-se-iam separado e afastado entre si. Surgia, assim, a hipótese da deriva dos continentes, posteriormente formulada, em 1912, pelo alemão Alfred Wegener, na Teoria das Translações Continentais. Esta nova visão global do planeta contradizia as ideias fixistas da época, além de que não apresentava explicação satisfatória relativamente às forças responsáveis pela movimentação dos continentes. Essencialmente mobilista, esta inovadora teoria, sem motor conhecido a suportá-la, foi abandonada por cerca de meio século, mantendo, contudo, o mérito de constituir uma antecipação à tectónica de placas, tal como hoje a concebemos. Deve-se a este meteorologista, com uma sólida formação geológica, a concepção da Pangea, como único supercontinente, rodeado pelo também único oceano, a que se dá o nome de Pantalassa. Para o autor, este supercontinente começou a fragmentar-se a partir do final do Paleozóico, tendo os blocos resultantes dessa rotura, ou seja, os actuais continentes, migrado para as posições que ocupam.

Para além da quase justaposição dos contornos das costas ocidental de África e oriental da América do Sul, a Teoria das Translações Continentais era sustentada por outros argumentos, sendo de destacar as grandes semelhanças geológicas e paleontológicas entre os continentes do hemisfério sul (América do Sul, África, Austrália, Antárctica) e entre estes e a Índia, o que testemunha evoluções geológica e biológica comuns durante o Paleozóico. Nos tempos que se seguiram ao final desta era, tais semelhanças deixaram de existir, o que indica evoluções geológica e biológica separadas em cada um deles, isolados a partir de então.

A mobilidade dos continentes foi acumulando provas sobre provas. São muitas as ocorrências geológicas separadas pelos actuais oceanos, mas que ficam em continuidade geográfica, sempre que os seus contornos se ajustam, como as peças de um puzzle. No Paleozóico conhecem-se testemunhos da existência de vastas florestas de tipo equatorial, hoje localizadas no hemisfério Norte, desde as latitudes da Península Ibérica à do Spitzbergue (a 85ºN). Tais testemunhos são as conhecidas bacias carboníferas do Carbónico e do Pérmico, nas quais se acumulam as maiores reservas mundiais de carvão fóssil. Na mesma época, os actuais continentes total ou parcialmente localizados no hemisfério sul, assim como a Índia, tiveram uma posição mais próxima do Pólo Sul e parte das suas regiões estiveram sob intenso regime glaciário. Todos estes factos apontavam, quase sem contestação, a existência de uma deriva dos continentes, em movimentos simultâneos de afastamento longitudinal entre si, e de deslocamento para norte, com excepção da Antárctida, que permaneceu praticamente no mesmo local. A estes argumentos, embora correctos, faltou o apoio de uma explicação aceitável para o dinamismo essencial às referidas translações, pelo que houve que esperar por novos e sucessivos avanços nas ciências geológicas, até se chegar à visão tectónica global de que hoje dispomos.

Em 1931, o geólogo inglês A. Holmes, avançava com uma explicação dinâmica, igualmente vanguardista, muito próxima do modelo actualmente aceite. Segundo ele, o manto terrestre seria percorrido por correntes de convecção térmica, que podemos exemplificar com um líquido contido num vaso colocado sobre uma fonte de calor. O líquido aquecido no fundo do vaso sobe, arrefece e torna a descer, para voltar a aquecer e a subir. Segundo o autor, estas correntes de convecção teriam sido as causadoras da rotura da Pangea, bem como da separação e deriva (translação) dos continentes assim formados. A hipótese de Holmes não foi, porém, suficiente para reanimar a teoria de Wegener, que teria de aguardar mais duas décadas para se impor como precursora da actual concepção da dinâmica global da litosfera

Nos anos que se seguiram à 2ª Guerra Mundial, as investigações levadas a efeito nos fundos marinhos, puseram em evidência um acidente na topografia, que passou a ser designado por crista média oceânica ou dorsal oceânica. Prolongada através de todos os oceanos, é sulcada em toda a sua extensão (70 000km) por uma depressão estreita e profunda, podendo atingir os 7 000m de profundidade, limitada por falhas, a que se convencionou dar o nome de rifte (do inglês rift, “fenda”).

Constatou-se, depois, que o fluxo térmico, ou seja, o calor emanado do interior era relativamente elevado ao longo desta dorsal, excedendo em cerca de uma dezena de vezes o valor médio referente à totalidade dos fundos oceânicos. Verificou-se, ainda, que, nas zonas das fossas abissais, este fluxo descia muito abaixo do referido valor médio. Com base nestes conhecimentos, H. Hess (1960) sugeriu que as dorsais poderiam corresponder a zonas ou faixas de emersão de correntes de convecção no seu troço ascendente, ao contrário das fossas que corresponderiam às zonas de mergulho das mesmas correntes, depois de um percurso que, diríamos, superficial. Nascia, assim, a hipótese da expansão dos oceanos. Segundo este geólogo, a crosta oceânica é material magmático, oriundo do manto, ascendente ao longo do rifte, que aí solidifica e se acrescenta a um e outro lado deste acidente, à medida que o processo se continua. É este mecanismo que não só conduz à expansão da crosta oceânica e, portanto, dos fundos oceânicos, mas também promove a deriva dos continentes, afastando-os entre si, para um e outro lado da dorsal. Com este avanço nos conhecimentos, as atenções dos geólogos voltaram-se, de novo, para as ideias de Wegener. As translações continentais renasciam, mas num quadro dinâmico, diferente do existente à época. Segundo Hess, os fundos oceânicos ter-se-ão expandido no decurso dos tempos que se seguiram à referida rotura, isto é, no Mesozóico e no Cenozóico, a velocidades na ordem de escassos centímetros por ano, para cada lado do rifte, um valor compatível com as dimensões das actuais bacias oceânicas.

A partir do momento em que geofísicos e geólogos ganharam consciência que a litosfera estava fragmentada em placas, deduziram que poderia ser o próprio afundar das placas nas zonas de subducção (coincidentes com a fossas abissais) a causar o seu movimento. Isto acontece porque, com o passar dos muitos milhões de anos, as placas oceânicas vão ficando cada vez mais frias e, portanto, mais densas do que o manto que está por baixo.

Data de há meio século o conhecimento de que os minerais com algum ferro (olivina, piroxenas, anfíbolas) característicos e abundantes nas rochas da crosta oceânica (basaltos e rochas afins) se magnetizam por efeito do campo magnético terrestre, aquando da sua solidificação por arrefecimento do respectivo magma. A magnetização adquirida por esses minerais regista a polaridade do referido campo magnético no momento da sua passagem ao estado sólido, ou seja, da sua cristalização. Nestes termos, as rochas magmáticas da crosta oceânica, encerram um registo da direcção e intensidade do campo geomagnético contemporâneo da sua formação, susceptível de revelar não só as suas posição e orientação relativamente aos pólos da Terra, como também as inversões de polaridade ocorridas ao longo deste período da história do planeta. Trata-se, pois, de um magnetismo fóssil (paleomagnetismo), remanescente ou residual.

Devido a causas relacionadas com a actividade do núcleo terrestre, no decurso dos tempos geológicos, os pólos magnéticos, norte e sul, coincidiram e alternaram com os pólos norte e sul geográficos. Dito de outra maneira, o pólo norte magnético que, actualmente, coincide com o norte geográfico, esteve, no passado, alternadamente virado a norte e a sul.

O aperfeiçoamento de aparelhos – magnetómetros – susceptíveis de medir esses parâmetros, permite leituras de grande precisão. Este tipo de leituras por magnetómetros rebocados por navios oceanográficos, ao longo de direcções perpendiculares às dorsais, revelou, nas rochas dos fundos investigados, a existência de anomalias geomagnéticas, dispostas com assinalável regularidade, segundo faixas paralelas e simétricas em relação aos riftes, ou seja, de um e outro lado destes acidentes. Tais anomalias manifestam-se por variações bruscas na intensidade do campo geomagnético, com valores ora superiores, ora inferiores, relativamente ao valor regional previsível. São positivas as anomalias correspondentes a valores da intensidade superiores ao valor regional e resultam do valor da intensidade do campo actual, nesse sítio, adicionado do do magnetismo remanescente com o mesmo sentido, conservado na rocha. São negativas as anomalias correspondentes a valores inferiores ao valor regional e resultam do valor da intensidade no local, subtraído do do magnetismo remanescente de um campo reverso, isto é, com sentido inverso.

Aceitando a hipótese de Hess e as inversões de polaridade geomagnética ao longo dos tempos mesocenozóicos, F. J. Vine e D. H. Mathews (1963) deduziram que as faixas do fundo oceânico com anomalias, alternadamente positivas e negativas, correspondem a porções de crosta oceânica formadas em sucessivos períodos de polaridade do campo geomagnético, respectivamente, normal e reversa. A hipótese do alastramento dos fundos oceânicos de Hess ganhava consistência e, em conjunto com a de Vine e Mathews, tornaram-se o suporte fundamental da Teoria da Tectónica de Placas, em rápida e segura ascensão. Os estudos das anomalias magnéticas estenderam-se à generalidade dos oceanos, contando-se por cerca de duas centenas o número de inversões de polaridade registado desde o início da deriva.

As determinações de idade isotópica (determinada com base no decaimento de certos isótopos radioactivos, expressa, no geral, em milhões de anos) de rochas basálticas, colhidas no substrato oceânico, ao longo de direcções perpendiculares aos riftes, confirmam a existência de faixas simétricas (em relação a este acidente maior), no que se refere às respectivas idades, sendo as rochas tanto mais antigas quanto mais afastadas se encontrem do rifte, o que confirmou as hipóteses de Hess e de Vine e Mathews, contribuindo com mais uma achega na consolidação desta visão global da geologia. 

Pode deduzir-se a velocidade de alastramento dos fundos oceânicos achando o cociente entre a distância ao rifte de uma dada amostra e a idade isotópica da respectiva rocha. Os valores obtidos neste tipo de determinações apontam para velocidades compreendidas entre 1 a 9 cm/ano, correspondendo os valores menores ao Oceano Atlântico e os maiores ao Pacífico. O elevado número de determinações de idades isotópicas, na generalidade dos fundos oceânicos, revela que a maior parte do seu substrato basáltico tem menos de 80 Ma, havendo, contudo, locais onde essa idade atinge os 160 Ma. Tais valores referentes à crosta oceânica são ínfimos quando comparados com os conhecidos nas rochas da crosta continental, que podem recuar aos 4000 Ma.

O alastramento dos fundos oceânicos, tal como é aceite pela comunidade de geólogos, nas suas mais diversas áreas (Geofísica, Paleontologia, Estratigrafia, Tectónica, etc.), afastou o principal obstáculo à Teoria das Translações Continentais, de Wegener, uma vez que não considera os continentes a deslizarem sobre um suporte rígido, mas, sim, com ele. O referido obstáculo consistia na difícil, se não impossível aceitação de forças capazes de vencer o atrito que se oporia a um tal deslizamento. Na tectónica de placas, os continentes são considerados unidades isoladas de crosta continental, constituindo a parte mais superficial de porções maiores de litosfera, às quais foi dado o nome de placas, elas, sim, deslizantes sobre a astenosfera, plástica. À semelhança de um corpo sobre uma jangada à deriva, os continentes afastam-se e aproximam-se entre si, animados pela convecção do calor no interior da Terra.

A justaposição dos contornos dos continentes de que se fala na teoria de Wegener, não sendo perfeita, foi, contudo, suficiente para servir de inspiração e ser usada como argumento a seu favor. Os progressos no conhecimento da topografia submarina permitiram a E. C. Bullard e colaboradores (1965) mostrar que a justaposição, quase perfeita, tem lugar, não face ao desenho do litoral em confronto, mas, sim, ao da batimétrica de 1 000m, onde a plataforma continental faz a transição para a bacia oceânica. Esta contribuição dos investigadores da Universidade de Cambridge deu ainda mais consistência à visão tectónica global, que marca a moderna Geologia.

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10.9.24

CAMPONESES


Por A. M. Galopim de Carvalho

Era assim que se dizia - camponeses. Conheci-os bem, na minha adolescência, como campista selvagem que fiz nesses anos por entre as herdades do Alentejo. Digo por entre as herdades porque todo o território que conheci nesta condição de rapaz com mais dois ou três companheiros, “por esses campos fora” era pertença deste ou daquele grande proprietário que, nesses anos eram conhecidos por lavradores ou terratenentes. Conheci-os também no Quartel, em Artilharia 3, em Évora, como oficial subalterno (fui aspirante, alferes e tenente miliciano) nas duas ou três recrutas que ministrei.

Inicialmente amedrontados e tímidos, eram jovens fortes de braços e pernas, mas, no geral, com pouca agilidade. As suas mãos, queimadas pelo sol, contrastavam com os seus corpos demasiado brancos, fruto de uma vida inteira quase sem verem a luz do dia. Calejadas, gretadas e de unhas grossas e duras, estas mãos eram o reflexo da rudeza dos trabalhos agrícolas. Mãos sem os movimentos finos, que a escola e a escrita desenvolvem, só funcionavam em bloco, como um todo de braços e corpo. A sua caneta era a enxada, como alguns diziam, a brincarem com a sua própria condição.

Com o advento da liberdade, mau grado as muitas dificuldades sentidas por uma franja muito significativa dos nossos concidadãos, Portugal mudou, como se diz, da noite para o dia, em muitos aspectos da nossa vida. E um desses aspectos pode ser exemplificado com base no que escrevi acima. Deixou de haver camponeses como estes meus recrutas. Não sei praticamente nada sobre o actual mundo rural que também mudou radicalmente, mas sei que já não há, entre os portugueses, mãos grossas sem os movimentos finos, que a escola e a escrita desenvolvem.

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9.9.24

MELANCOLIA


Por A. M. Galopim de Carvalho

Melancolia é o nome desta extraordinária escultura do romeno Albert György (nascido em 1949), que vi ontem, na página de Luís Osório. Eu diria que esta obra me esmagou e me atirou para trás, na cadeira onde, todos os dias, me sento aqui, frente ao monitor e revivi o estado de alma que a medicina diagnostica como depressão. Senti o terror (sim, terror é a palavra certa) de que ela pudesse um dia voltar. Recuei quarenta anos. Era então um homem na pujança física da vida e, de um dia para o outro,

Grande melancolia, eu gosto mais de dizer amargura. Incapacidade de sentir alegria e prazer. sem saber porquê. Apatia e desinteresse por tudo ou quase tudo. Por tudo e, por nada, vontade de chorar. Incapacidade de estar onde quer que esteja. Falta de ânimo Ter de sair sem saber para onde. Incapacidade de conviver, de ler, de ver televisão e de ouvir música. Incapacidade de ser, no sentido de estar consigo próprio, Incapacidade de estar acordado, de estar vivo.

Não sou médico, mas sei o que é esta penosa e angustiante enfermidade. Sendo do foro psíquico, nas suas manifestações, penso que tem causas em distúrbios nos equilíbrios químicos que regem o comportamento cerebral. Não há psicologia ou psicanálise que lhe valha. O tratamento ou, melhor, as tentativas de tratamento fazem-se com químicos, isto é, com fármacos. Aí, pelo que me foi dado vivenciar, o psiquiatra que, julgo não tem maneira de saber quais são os químicos em desequilíbrio, actua por aproximações. Começa por ensaiar, no doente, um lote de dois ou três fármacos e aguarda o resultado. Grande sorte seria acetar à primeira tentativa. Mas não, os ensaios repetem-se, por assim dizer, ao sabor do acaso, até que um dia, eureka! Os últimos fármacos experimentados tinham reposto o equilíbrio químico até então perturbado. E, aí, de um dia para o outro, foi-se a tristeza, o desânimo, a apatia e o pessimismo. Voltou o ânimo, a alegria e o prazer esfuziante de conviver, de estar vivo. 

Foi um tempo difícil de viver. Nunca deixei de trabalhar. Do mal o menos, estar ocupado por obrigação desviava-me da incapacidade de estar a sós comigo próprio. Cerca de um ano depois da primeira consulta, concluídas muitas experiências com doses de psicofármacos, todos eles nunca gastos até ao fim, ia eu ao volante, na estrada, a caminho de Sesimbra, senti prazer ao olhar aqueles grandes e frondosos pinheiros mansos que aqui e ali ladeiam a estrada. Dei por mim dentro do meu corpo e sorri, creio que pela primeira vez, nesse doloroso período. Dei por mim a gostar de ver o imenso mar que se nos depara na Ponta de Argéis.

 

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7.9.24

Grande Angular - Uma questão de confiança

Por António Barreto

É certamente um dos maiores mistérios da vida política: a confiança! Não se trata de subserviência, nem de seguidismo. Muito menos dependência ou receio. Nem instinto ou consciência de classe. A confiança implica o contrário: é uma decisão racional, com base na informação. É também um sentimento difuso, mas sólido, com fundamento no reconhecimento de normas e tradições na vida pública. É uma compreensão aguda dos mecanismos de comportamento social, ora imperfeitos, ora límpidos, mas aceites. É uma sensação de respeito pelas regras de vida em comum, com origem na certeza que temos de que os nossos concidadãos têm uma atitude de apreço pelas normas que nos regem. É o reconhecimento no valor das instituições, estejam elas comandadas pelos amigos ou por adversários políticos. É a certeza de que as organizações públicas, lideradas por sócios ou por concorrentes, são orientadas por princípios de democracia ou de legitimação aceite. É a convicção de que, mesmo com os defeitos conhecidos da acção política, mesmo com erros na governação, as organizações da sociedade têm funções que tentam cumprir todos os dias. E ainda a certeza de que as pessoas que desempenham essas funções não são todas egoístas, trapaceiras e corruptas. Ou finalmente a sensação de que nas sociedades existem, fora da política, princípios de justiça, ideias de castigo e recompensa, sentimentos de compaixão e reflexos de solidariedade.

 

Estas são algumas das bases da confiança. Muitas vezes, quando a política falha, porque é uma actividade imperfeita, é na confiança que depositamos esperança para viver em paz. É triste afirmar, mas hoje, em Portugal, a confiança está a ser derrotada pela acção política. O que é perigoso para a sociedade. E para a democracia.

 

Por exemplo, ninguém confia em quem tem feito grandes negócios de Estado. Ninguém confia em quem se ocupou da TAP nos últimos anos. Ninguém acredita nos que geriram, nacionalizaram, privatizaram e se preparam para reprivatizar. Todo este assunto é recheado de labirintos, curvas e contracurvas. Não creio que haja uma dúzia de pessoas que julguem que o essencial foi feito com honestidade, sem clientes, sem correligionários, sem grandes interesses e sem salteadores profissionais. Ninguém acredita que não tenha havido cupidez e ganância em doses descomunais. Tal como ninguém confia em quem estudou, planeou e decidiu sobre os projectos do aeroporto de Lisboa, das suas sucessivas localizações, da sua vocação e da sua construção. Não parece possível confiar no rigor dos principais partidos após a “saga” do aeroporto de Lisboa. As mesmas pessoas, os mesmos governantes, pessoas diferentes dos mesmos partidos, com a ajuda das mesmas empresas de e engenharia, com o apoio das mesmas empresas de advogados, tomaram, ao longo do tempo, decisões sucessivas radicalmente diferentes. Há políticos, engenheiros e empresas que subscreveram projectos contraditórios e alternativos! As histórias da TAP e do aeroporto de Lisboa são verdadeiros epitáfios para a honestidade pública em Portugal.

 

É prejudicial à saúde mental acreditar nos ministros dos dois principais partidos, nos respectivos secretários de Estado, nos seus directores e presidentes, assim como nos gestores, que ao longo dos anos presidiram à metódica destruição da rede de caminho-de-ferro e do seu equipamento e organizaram o fecho de linhas, sempre sob o desígnio público de modernizar, reorganizar e desenvolver o transporte ferroviário no nosso país. A história do caminho-de-ferro em Portugal é um episódio de crime de lesa pátria.

 

Quem pode confiar em quem gere o SNS e tem a tutela do SNS durante os últimos anos? Quem não planeou a procura, não previu as reformas, não contou com o envelhecimento, não se preparou para renovar o pessoal médico e de enfermagem, não percebeu que qualquer país europeu paga muito melhor os médicos e os enfermeiros, quem assim agiu e se demitiu dos seus deveres, não será nunca capaz de refundar o SNS, de garantir uma saúde pública decente e de eliminar os conflitos viciosos entre saúde pública e saúde privada. Quem assim se comportou não merece qualquer confiança dos portugueses para gerir e renovar o SNS. Não é possível confiar num Serviço de Saúde que, aos fins de semana, nas televisões, anuncia, como se fosse um boletim meteorológico, as urgências e as maternidades encerradas!

 

Como é possível confiar no julgamento e na avaliação que os partidos, sobretudo os da oposição, ontem e hoje, fazem dos projectos de orçamento? Ainda não há orçamento, nem texto, nem contas, mas os partidos já sabem de ciência certa como votam, sim ou não. Ainda não houve negociação séria e fundamentada, ainda não foram feitas as principais opções do governo, e já os outros partidos, grandes e pequenos, sabem exactamente o que fazer e como votar, ficando apenas na penumbra a táctica, isto é, a maneira de tornar pública a sua opção a fim de parecer que é séria.

 

Quem pode confiar num sistema de justiça, que inclui o legislador, os magistrados judiciais e os do ministério público, os advogados e os oficiais, sem falar nos ministros e nos secretários de Estado que deixam prescrever, que deixam correr recursos, que deixam desfiar as fugas de informação, que permitem e incentivam as escutas telefónicas legais e ilegais? Como confiar nas instituições, nos partidos, nos ministros, nos juízes de instrução e nos procuradores que têm deixado correr os processos, os prazos, os recursos e os indícios dos crimes económicos e financeiros dos grandes negócios, da grande banca e dos grandes políticos e governantes?

 

Há muitos anos que não se consegue criar um ambiente político e uma situação pública capazes de criar confiança nas instituições. Confiança moral, técnica, científica e política. Em boa democracia, é possível ter opiniões firmes, defender um partido e opor-se a outro, desencadear lutas partidárias e ideológicas, participar nas lutas pluripartidárias ao mesmo tempo que se confia nas instituições, na sociedade e nas famílias. É possível a luta de partido contra partido, sem lutar contra instituições. É possível defender firmemente opiniões políticas que dividem, mas acreditar em acções institucionais que unem. É muito raro em Portugal acontecer o que precede. Daí os saneamentos políticos, as enxurradas de nomeações e as substituições intempestivas de funcionários e dirigentes. 

 

            Nenhuma democracia resiste sem um módico de confiança por parte dos cidadãos.

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Público, 7.9.2024

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6.9.24

AS PEDRAS E AS PALAVRAS

Por A. M. Galopim de Carvalho

As pedras e as palavras foram dois mares em que naveguei por longos períodos da minha vida. É o título de um livro que publiquei vai para uma dezena de anos, onde inseri o texto que agora reescrevi num tom e num ritmo como se de um poema às pedras se tratasse. Pedras e rochas são duas maneiras de dizer a mesma coisa. Só que, via de regra, são usadas em discursos diferentes. Apanhamos uma pedra do chão, mas, quando estudamos, falamos quase sempre de rochas.

As pedras acompanharam o Homem desde os seus mais remotos e primitivos ancestrais e a sua importância pode ser avaliada pelo sem-número de palavras que criou e usou para expressar esta idéia, ao longo de uma história de muitos milhares de anos.

Pedra é uma entidade natural, rígida e coesa, que se apanha do chão e faz mossa onde quer que bata. 

 

No âmbito das Ciências da Terra, 

pedrado grego pétra, tem pouco uso. 

Persistiu, porém, em casos pontuais, como:

pedra-pomes,

pedra-sabão,

pedra-hume,

pedra-de-fogo 

pedra de Eirol

Persistiu, ainda, no discurso gemológico, em:

pedra-da-Lua,

pedra-zebra,

pedra de Eilat, 

pedra-paisagem e 

pedra-de-sangue.

 

Pelos jardins deste nosso país, 

são muitos os reformados que consomem o tempo 

mexendo em pedras, no jogo das damas ou no do dominó, 

enquanto em suas casas, as mulheres, 

trabalhadoras que nunca tiveram férias 

nem nunca se reformam, 

de pedras, só conhecem a pedra de sabão,

sempre em uso no tanque da roupa 

e a pedra do chão e dos degraus das escadas

que varrem e lavam todos os dias. 

Sopa da pedra é o nome da conhecida confecção

de que se faz e se come em Almeirim,

inspirada na tradicional lenda do frade.

Em sentido figurado, pedra assente

é uma decisão tomada e

com pedra sobre pedra

se edifica uma obra material ou do intelecto.

Pôr uma pedra sobre um assunto é esquecê-lo e 

dar uma pedrada no charco é denunciar 

uma situação menos correcta. 

Chamam-nos à pedra 

sempre que fazemos algo de mal feito e

parte-se pedra naquelas reuniões

em que muito se fala e pouco se avança. 

Ser firme ou insensível como uma pedra

é mau ou bom segundo as situações.

Pedra de tropeço é o obstáculo 

que nos dificulta ou impede a concretização 

de um projecto ou de uma obra.

Tem pedra no sapato aquele que tem um incómodo 

ou um problema por resolver. 

Dorme como uma pedra o justo 

e tem sete pedras na mão

aquele que fala com agressividade. 

Quem nunca pecou, disse Jesus, que atire a primeira pedra. 

 

Pedra, do grego pétraé entre nós, como se disse atrás, palavra antiga, 

bem enraizada e corrente no dia-a-dia das nossas vidas. 

Pedro vem de pedra e é nome de gente.

- Tu és Pedro e sobre ti edificarei a minha Igreja,

- disse Jesus a Simão, o apóstolo.

Por ser antiga, pedra está na raiz de um grande número de palavras 

do léxico popular português,

de que aqui se deixa uma muito pequena parte.

Pedreira é o local de onde se extraem pedras e 

pedreiro, o operário que as trabalha.

Com o mesmo étimo, lembremos

pedroso, empedrar, pedrada, pedregal

pedrisco, pedrês e pedregoso.

Despedrega é retirar as pedras do solo, 

a fim de o preparar para o cultivo, e

Pedrulha é sinónimo de cascalho

e topónimo em Coimbra. 

Pedrão ou padrão é o marco que deixamos

 na rota dos descobrimentos e 

pedregulho é matacão no Brasil.

 

São muitos os topónimos relacionados com a ideia de pedra. 

Pedralva, pedra branca ou pedra alva,

é o nome de uma aldeia algarvia, 

de uma freguesia do concelho de Braga.

Pedras-Talhas, para os naturais dos Almendres, 

no concelho de Évora, é o cromeleque,

aportuguesamento do galês cromlech,

que significa grande pedra arredondada.

Lembremos, ainda,

Pedrela ou Padrela, uma das serras transmontanas, 

Pedroso, em Vila Nova de Gaia, e Padroso, em Montalegre,

Pedrouços, em Lisboa, Pedregal, em Barcelos, Pedrogão, na Vidigueira,

Padrela e Tazem, em Valpaços, Pedrancha, em Trouxemil, Coimbra, e

Pedras Salgadas, no município de Vila Pouca de Aguiar.

 

Na forma peder, criámos 

empedernido, para dizer coração de pedra, e

pederneira ou pedernal, dois nomes que demos ao sílex,

pedra-de-fogo usada nos bacamartes. 

 

O étimo grego, pétra, usado directamente,

foi o preferido no português, dito culto.

Petróleo é o óleo saído do chão, 

de dentro das pedras, 

petrogénese, alude à sua origem, e 

petroquímica é a indústria que o tem por matéria-prima.

Petrologia e petrografia são disciplinas que estudam as pedras e

petrólogos e petrógrafos, os seus cultores. 

Como substantivo, petrificado, maneira antiga de dizer fóssil, 

resulta de um processo natural, dito petrificação, mas 

como adjectivo, diz-se de alguém

imobilizado por uma notícia que lhe “gela” o sangue.

São Petersburgo é a antiga Petrogrado,

assim chamada, em homenagem a Pedro, 

não o Santo, mas o Grande, de todas as Rússias,

Petrópolis, a cidade imperial brasileira

que evoca o Magnânimo D. Pedro II, 

que lhe deu nascimento, e 

Petra é a cidade da Jordânia,

rica de monumentos escavados na pedra. 

 

Pero é o nome arcaico de Pedro e

Peres, os seus descendentes. 

Pero Vaz de Caminha e Pero da Covilhã

são nomes conhecidos da nossa história e

Pero Botelho é o Diabo que não pára de rugir 

na caldeira que tem o seu nome, 

no sítio das Furnas, em S. Miguel. 

 

Pera é forma arcaica de dizer pedra e 

está na base de vários topónimos.

Em Castanheira de Pera, o segundo nome diz pedra, não o fruto.

Pera, em Silves,

Pereira, em Montemor-o-Velho, e

Peralta, ou pedra alta, na Lourinhã,

são também apelido de gente.

Pereiro, em Mação,

Peraboa e Pera Longa, na Covilhã, 

Pera Velha, em Moimenta da Beira, e

Peroliva ou pedra verde (de oliva), 

em Reguengos de Monsarás.

Peramanca e Perafita, na região de Évora, 

evocam grandes marcos de pedra.

Estas pedras ou estavam “mancas”, isto é, tombadas, 

ou ainda se mantêm “fitas” ou erguidas, na postura fálica, 

a que chamamos menhires

do bretão, men hir ou pedra comprida.

 

Do castelhano peña, criámos penha, o cume rochoso,

e, a partir daí, Penhasco e Penhascoso, no concelho de Mação,

demos nome a Penha Garcia, em Idanha-a-Nova, e a

Penhas Douradas e Penhas da Saúde, na serra da Estrela. 

 

Penado latim vulgar penna (variante de pinna)

é outra forma de dizer pedra e é, também, apelido de gente.

Castelo da Pena embeleza o alto

de uma penedia, na Serra de Sintra,

Penalva do Castelo, deve o nome 

à alvura da penha que lhe serviu de base,

Penela, ou penha pequena,

é localidade do distrito de Coimbra, 

Penedono é município de Viseu, 

Penedo, localidade na Serra de Sintra e

Peneda, a serra entre o Minho e Trás-os-Montes.

 

Pina, do latim pinna, é outra forma de dizer pedra,

é apelido de gente e é raiz de 

pináculo, um cimo rochoso e pontiagudo 

ou o ponto mais alto de uma construção.

 

Canto, do pré-romano, canthus,

é pedra na língua de Cervantes.

Cantaria é pedra talhada em blocos, 

canteiro tanto designa o profissional desta arte,

como o quinchoso, no jardim ou na horta, e

canteira, a versão menos comum de pedreira. 

O mesmo canthus deu cantil

a ferramenta do escultor, e 

alcantil, o escarpado ou cume rochoso, alcantilado.

Cântaros são aos cumes rochosos da Serra da Estrela e

Cantaril, o vento que lá se faz sentir.

 

Para os romanos, lapis era pedra

e era de pedra o lápis feito de ardósia, 

da nossa infância.

Deste étimo nasceram

lapiseira, lápide ou lápida

lapídeo, que significa petrificado e insensível. 

Lapidoso é o mesmo que pedregoso,

Lapidificação é outra maneira de dizer petrificação e

lapidação foi uma forma cruel

e desumana de execução, 

entre judeus, cristãos e islâmicos primitivos

e ainda é entre os fundamentalistas islâmicos, 

apedrejando os condenados até à morte. 

Lapidar é talhar a pedra, 

quer a ornamental, em cantaria, 

quer a preciosa, no âmbito da gemologia,

e como adjectivo, significa basilar. 

Lapidários são os manuscritos da Idade Média, 

que falam das pedras e das suas propriedades medicinais e mágicas. 

Lapidadas são e as pedras preciosas,

usadas em joalharia, 

lapis-lazuli é o nome de uma pedra semipreciosa,

lapidicidas são os moluscos que perfuram as pedras, 

para aí se alojarem, 

lapidículas, as aves que fazem ninhos entre pedras e

lapilli, o termo italiano dos produtos piroclásticos, 

para os quais dispomos do termo açoriano, bagacina.

 

Com raiz no grego lithós, que significa pedra,

criamos um conjunto de vocábulos

maioritariamente do léxico geológico.

Litosfera é a capa rochosa da Terra, 

litologia, a disciplina que estuda as pedras, e

lítico, o adjetivo referente a pedra.

Litogénese ou petrogénese alude às suas origens e

litografia e litogravura são termos ligados à arte gráfica.

Paleolítico, mesolítico, neolítico, calcolítico e megalítico

referem períodos da chamada Idade da Pedra.

Pirólito, batólito, facólito, fonólito, 

riólito protólito, micrólito e siderólito

são termos correntes no jargão geológico, 

mas que dizem muito pouco ao cidadão comum.

Litificação é petrificação e

litoclasto, um fragmento de pedra.

Litófagos são os bivalves que perfuram aa pedras, 

para nela se alojarem, e

litíase, o termo do jargão médico

que fala da existência de cálculos 

no rim ou na vesícula biliar.

 

Cálculo, do latim calculu, significa pedrinha,

em que o sufixo ulu é um diminutivo.

Com cálculos ou pedrinhas se calculava

ou faziam contas, na Antiguidade. 

Hoje calculamos nas modernas calculadoras.

 

Sílex, do latim silex, é mais outra forma de dizer pedra.

É a pedra-de-fogo ou pederneira

O mesmo étimo deu

Silício, o elemento químico e os seus derivados 

Sílica, silicito silicioso, 

silicato, silicatado silicon,

 

Com origem no latim saxus

que tanto quer dizer pedra como seixo,

temos seixal, ou terra de muitos seixos, 

que deu nome a uma cidade a sul do estuário do Tejo, 

e a uma freguesia na ilha da Madeira. 

Ainda na toponímia, temos:

Seixinho, na Guarda, 

Seixal, em Viseu, e 

Seixoso, no Porto. 

Seixeira é a escavação de onde se extraem seixos, 

seixosos, os respectivos locais, 

seixebrega, a planta usada em tisanas,

como mezinha, para dissolver as pedras dos rins, e

seixo-bravo, o quartzo de filão sem minério. 

Por via culta, introduzimos as palavras 

sáxeo e saxoso, duas maneiras de dizer pedregoso, 

saxátil, o que vive entre as pedras, 

saxícola, que tanto é o que habita as penedias 

como o que presta culto aos deuses de pedra, e

saxífragas, as plantas cujas raízes 

alargam as fissuras das pedras.

 

Fraga, do latim hispânico, fragum,

é o mesmo que penha ou penhasco, e

fragueiros, os que vivem nas montanhas, 

entre fragas.

Fragoso é o mesmo que pedregoso ou penhascoso, 

fragais fragarias são penedias e 

fraguedos ou penedos são fragaredos,

como se diz em Trás-os-Montes. 

 

Com raiz no latim calxcalces,

cal designa a pedra branca que,

uma vez regada com água, dá a calda

com que ainda se caiam ou branqueiam casas

que distinguem o Alentejo e o Algarve

 das restantes regiões do país.

No Alentejo, caieira ou caleira é forno de cal, 

Mas caleira é também um rego, inicialmente empedrado.

Caieiro ou caleiro é o homem que fabrica e/ou vende a cal, 

caiador, o que se serve delal para caiar, e

caios são as ilhas rasas, feitas de areia calcária, 

dos mares recifais das Caraíbas.

Cal designa, ainda, a argamassa 

que se usava antes da descoberta do cimento e

Calcário ou pedra de cal é a rocha sedimentar com que se faz a cal. 

Calçada é o caminho revestido com pedras, e 

calceteiro, o artista que celebrizou a calçada portuguesa. 

Cal deu cálcio, o elemento químico, e 

calcite um dos seus minerais.

Veicula, também, a ideia de pedra 

e com pedras, a servirem de lastro, 

se calavam os barcos quando, 

sem carga, se faziam ao mar. 

Calado é a profundidade a que se encontra 

o ponto mais baixo do casco de uma embarcação, 

em relação à superfície da água onde está mergulhada. 

Calçar é meter uma pedra sob o que se quer firme e 

Calcar o chão é dar-lhe compactação.

 

Calhau, do francês caillou

tanto refere a pedra tosca que se apanha no chão 

como o seixo rolado do rio ou da praia. 

Calle é a rua ou a calçada dos vizinhos espanhóis, 

com correspondência para português, 

em calheta que, nas ilhas, 

significa pequena enseada na costa rochosa, e,

no continente, é o atalho por onde passam os rebanhos 

 

Lapa, vinda do pré-céltico, 

é uma pedra que forma um abrigo natural, 

lapão, o respectivo aumentativo é

lapedo, um sítio de muitas lapas.

 

Respectivamente, corresponde-lhes, do pré-romano,

laje, lajão e lajedo.

 

Cascalho e cascalheira vêm do latim quassicare,

que significa fragmentar. 

São substantivos colectivos,

que designam acumulações de calhaus ou seixos, 

Com a mesma origem, casca é o invólucro quebradiço do ovo, 

é o nome que se dava às conchas de bivalves 

dispersas nas praias, 

razão de ser do nome da vila de Cascais.

 

De uso regional, conhos, do latim cuneus,

São os calhaus rolados, 

no geral, de quartzo e de quartzito, 

próprios das aluviões do Tejo, do Zêzere

e de outros rios do centro do país. 

Conheiras são extensos amontoados de conhos, 

deixados pela lavra do ouro, levada a efeito, nos citados rios,

ao tempo da ocupação romana.

Barroco chegou-nos do pré-romano e

tanto significa pedra como barranco. 

É, ainda, o estilo artístico, que se opôs ao classicismo da Renascença. 

Barrocal é a paisagem pedregosa do Jurássico calcário algarvio e

barroqueiro, a pedra que se apanha do chão e se arremessa. 

A mesma a que o alentejano e o algarvio chamam bajoulo.

 

Do latim, rupe, alusivo a pedra, dispomos de dois adjectivos: 

Rupícula, que refere os animais ou as plantas 

que vivem entre ou sobre pedras e 

Rupestre, que qualifica o que cresce sobre pedras e as gravuras e pinturas 

também nelas deixadas pelos nossos antepassados pré-históricos.

 

Gema, do latim gemma, é o mesmo que pedra preciosa, 

Sal-gema é rocha sedimentar formada por halite, o mineral, 

em que o elemento gema, o distingue do cloreto de sódio, extraído das salinas. 

Gemologia é a disciplina que estuda as gemas e

gemólogos, os seus cultores.

 

Reminiscência da Grécia antiga, 

em que as contagens dos votos era feita com psephos ou seixos,

psefógrafo é o aparelho destinado à contagem de votos,

em assembleias eleitorais, 

psefologia, a disciplina que estuda os resultados desses actos, 

psefólogo, o estudioso desta matéria, e 

psefito, o mesmo que seixo e o nome de uma classe de rochas sedimentares 

essencialmente constituídas por seixos.

Com o mesmo significado, temos, ainda, 

rudito, vindo do latim rudus.

 

Burgau é o nome de uma praia algarvia, 

assim chamada em virtude da presença significativa 

de calhaus, seixos, burgos ou burgaus.

 

De origem obscura, dispomos de rebo e gobo

e os seus equivalentes minhotos, gode e godo,

que significam calhau rolado,

e o transmontano gogo, o grande seixo liso, 

no geral de quartzito, em que o sapateiro batia a sola. 

 

A palavra pedra já era muito velha, 

quando nos chegou, vinda do francês, roche,

de onde a nossa palavra rocha.

Temo-la no vocabulário popular e científico:

Rocha da Pena

Rocha dos Namorados

Praia da Rocha,

rochedo, o grande afloramento de rocha,

rochoso, o adjectivo sinónimo de pedregoso,

rochaz, o que vive entre rochas e 

rochedense, o qualificativo referente a rocha.

A palavra rocha substituiu e quase fez esquecer a velha palavra roca,

vinda do pré-romano e que persistiu 

nas palavras enrocamento e derrocada,

no topónimo Cabo da Roca

ou “Focinho da Roca”, com dizem os homens do mar, 

e em Rocaille, um estilo artístico, nascido em França, em finais do século XVII.

 

No Brasil, o étimo ita, do tupi-guarani, 

traduz a ideia de pedra 

e figura na composição dos topónimos em Mina Gerais,

Itabira Itacolumi,

e de duas rochas, muito especiais, 

itabirito, um arenito flexível, 

itacolumito, um importante minério de ferro.

 

Divergente de ita, segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, o sufixo culto ite, do grego ités, é usado, entre franceses e ingleses, na formação de nomes quer de minerais quer de rochas. 

Entre nós, este sufixo é apenas utilizado nos nomes de minerais (pirite, calcite, dolomite, grafite, etc.) Para as rochas, os petrógrafos portugueses da segunda metade do século XX adoptaram a terminação ito (granito, quartzito, dolomito, antracito, etc.)”.

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