28.2.25

TERRAS-RARAS



Por A. M. Galopim de Carvalho

Terras-raras é hoje um tema actualíssimo no discurso a circular nos media, sem que muitos dos que falam e escrevem e muitos mais dos que ouvem e lêem, tenham conhecimento do que são. Podia não ser assim, mas lamentável e tristemente é esta a nossa realidade. Há décadas que a nossa escola tem vindo a dar diplomas, nas não deu e continua a não dar cultura, seja humanística, seja a científica. É claro que há excepções, mas é da generalidade que estou a falar.

Acontece que, em finais do século XVIII, quer para os químicos como para os mineralogistas, os óxidos da maioria dos metais constituíam um grupo então designado por “terras”, “jorden”, para os suecos, “Erde”, para os alemães, “earth”, para os ingleses, e “terre”, para os franceses. Nós, os portugueses, continuávamos distraídos e já, nessa altura, éramos um povo atrasado, na cauda da Europa.

 

Face ao qualificativo “raras”, toda a gente será levada a pensar que se trada de substâncias que ocorrem em quantidades ínfimas, mas não é o caso. Por serem de difícil separação e por serem apenas conhecidos em minerais oriundos da Escandinávia, foram então (estamos a falar de finais do século XVIII, nos alvores da Química e da Mineralogia) considerados "raros", qualificação ainda hoje utilizada, apesar de alguns deles serem relativamente abundantes na crosta terreste. Todos eles são mais abundantes do que metais como a prata e o mercúrio, por exemplo.

 

Os metais destas “terras”, ou seja, destes óxidos, são, de acordo com o que a Química nos ensina, um grupo de 17 elementos da Tabela Periódica dos Elementos Químicos, dos quais, 15 pertencem ao grupo dos chamados lantanídeos, isto é, os que ali vão do lantânio ao lutécio, aos quais se juntam o escândio e o ítrio, todos eles elementos que ocorrem nos mesmos minérios e apresentam propriedades físico-químicas semelhantes. 

As principais fontes com interesse económico para serem exploradas são alguns minerais relativamente raros (cujos nomes, para quem quiser saber, se indicam no final do texto) e certas argilas ricas em óxido de ferro, qualificadas de lateríticas.

 

Apesar da sua abundância relativamente elevada, como se disse atrás, os minerais das terras-raras são mais difíceis de explorar do que os minerais de metais como o cobre, o chumbo, o zinco e muitos outros. Esta dificuldade torna os metais das terras-raras relativamente caros, pelo que o seu uso industrial foi limitado até serem desenvolvidas técnicas de separação de alto rendimento, tais como, cristalização fraccionada, troca iónica, em meados do século XX.

As terras-raras têm aplicação em grande variedade de modernas tecnologias de ponta, mais que evidente interesse económico, justificativo duma procura que ressalta nos noticiários de todos os dias.

Para os geólogos, as terras-raras ajudam a conhecer as fontes magmáticas de certas rochas, permitem datar alguns minerais, entre os quais, certas granadas, através da abundância relativa do par neodímio/samário. Mas o seu interesse científico não fica por aqui. Alarga-se a determinados campos da Biologia, da Medicina e outros.

Estima-se que grande parte das terras-raras esteja localizada na Ásia, com especial destaque para a China. 

Cientistas de finais do século XVIII, a que se refere o texto acima:

Karl Wilhelm Scheele, (1724-1786), químico sueco; 

e químico sueco;

Torbern Olof Bergman (1749-1817), químico e mineralogista sueco; 

John Lukas Woltersdorf (1721-1772), mineralogista alemão; 

Joseph Priestley (1733- 1804), químico inglês); 

Antoine Lavoisier (1743.1794,) químico francês.

 

Principais minerais com elementos da terras-raras:

monazitebastnasite, xenothyme e loparite. Se quiser saber o que são, procure facilmente na net,

O grupo das terras-raras inclui os seguintes elementos químicos: 

LantânioCério, Praseodímio, NeodímioPromécio

SamárioEurópio, GadolínioTérbioDisprósio, 

HólmioÉrbioTúlio, ItérbioLutécioEscândio e Ítrio.

 

Nota: A Tabela Periódica é uma disposição sistemática de pouco mais de uma centena de elementos químicos, iniciada pelo químico russo Dmitri Mendeleev, em 1869.

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27.2.25

CLIMAS E PAISAGENS (1)



Por A. M. Galopim de Carvalho

As diferentes paisagens da Terra, em qualquer momento da sua história, foram e são, em grande parte, reflexo das características meteorológicas aí prevalecentes. Esta afirmação é evidente para a generalidade dos cidadãos que, embora nunca tenham formulado esta conjectura, têm-na por adquirida. Sem saírem deste nosso rectângulo, no ocidente da Europa, todos relacionam os campos verdejantes do Minho com a maior pluviosidade anual ali verificada (2000 a 2400 mm) e as terras de sequeiro do sudeste alentejano com os menores valores dessa mesma precipitação atmosférica (<600 mm). 

À escala mundial, a televisão mostra-nos constantemente imagens dos múltiplos visuais do nosso planeta marcadas pelo clima, sejam, por exemplo, a floresta equatorial da Amazónia, os glaciares do sul da Argentina, a pradaria norte-americana ou a estepe siberiana, a tundra boreal ou as areias escaldantes do Saara.

Embora na explicação da paisagem, haja que ter em conta o enquadramento geológico regional, com destaque para a natureza das rochas (granito, xisto, calcário, etc.) que lhes servem de substrato e da respectiva estrutura (modo de ocorrência dos corpos rochosos: homogéneos, estratificados, dobrados falhados, etc.), a influência do clima é muito superior. Face a esta realidade desenvolveu-se um capítulo, comum à geologia e à geografia, conhecido por “geomorfologia climática”, com o estabelecimento de domínios ou regiões morfoclimáticas.

“Faça sol ou faça chuva” é uma expressão vulgar de alusão ao estado do tempo, informação que diariamente nos chega através dos boletins meteorológicos, transmitidos pela televisão, pela rádio e pelos jornais. O estado do tempo, num dado lugar, é uma manifestação de uma realidade mais vasta, própria e à escala do nosso planeta, a que chamamos clima. Em termos muito simples, entende-se por clima um conjunto de fenómenos próprios da atmosfera, na interactividade que estabelece com os oceanos (e os lagos de maiores extensões) e com as terras emersas, nas quais a latitude, a altitude, a interioridade e a cobertura vegetal têm papel mais visível. 

Temperatura, humidade do ar e pressão atmosférica são factores de clima assegurados pela energia radiante do Sol. Relacionados entre si, são os responsáveis pelas situações de tempo quente ou frio, de tempo chuvoso ou de neve ou, pelo contrário, de tempo seco. São ainda responsáveis pela existência de vento, não raras vezes catastrófico, tal a intensidade que chega a atingir. 

O clima condiciona a alteração superficial (meteorização) das rochas, a génese e evolução dos solos, a erosão e transporte (evacuação) dos materiais erodidos (os sedimentos que estão na génese de muitas rochas sedimentares), bem como a ocupação vegetal e animal, incluindo a humana. São as manifestações de clima que, conjugadas com a natureza geológica dos terrenos, determinam o tipo da paisagem que nos rodeia e todas as outras de todos os lugares da Terra.

Ao longo da sua história de milhares de milhões de anos, a mudança das paisagens foi uma constante. Praticamente imperceptível à dimensão temporal de uma vida humana, esta mudança tem pouca expressão no tempo histórico, sendo notável e bem testemunhada à escala do tempo geológico. A paisagem é um sistema dinâmico, só aparentemente estático. É como um simples fotograma de um filme, escreveu Don L. Eicher, em 1970. 

Processos geodinâmicos internos à escala global, com destaque para as translacções continentais e os enrugamentos orogénicos, ocasionaram mudanças de latitude e de altitude e subsequentes modificações climáticas que, por sua vez, determinaram mudanças

na paisagem.

Na Terra só há alteração das rochas, formação de solos e erosão, (três aspectos modificadores do relevo e, portanto, da paisagem), porque há energia solar e porque temos uma atmosfera e uma hidrosfera, duas entidades susceptíveis de captar essa energia e de a transformar no dinamismo necessário aos processos geológicos ocorrentes à superfície e, também, aos biológicos. 

As massas de ar diferentemente aquecidas pelo calor solar dão origem à circulação atmosférica, processo que se traduz na existência do vento. Nas baixas latitudes, nomeadamente nas regiões intertropicais, a incidência dos raios solares aproxima-se e atinge a perpendicular (o Sol está a pique, como vulgarmente se diz), aquecendo o ar mais do que nas latitudes das regiões polares. Nestas, a incidência desses raios é muito oblíqua e, até, rasante, pelo que a temperatura do ar é aí muito mais baixa. Esta diferença de aquecimento faz com que o ar quente suba e o ar frio desça, sendo essa uma das causas da circulação atmosférica (outra causa é da própria rotação do planeta). Por outro lado, a evaporação da água à superfície dos mares, rios e lagos e a resultante da transpiração da cobertura vegetal (uma realidade bem visível nas grandes florestas equatoriais, quentes e húmidas) fornece humidade suficiente para formar nuvens que o vento transporta e descarrega como chuva ou neve, consoante as temperaturas locais. 

É, sobretudo, a esfericidade do globo terrestre e a consequente variação da latitude que determinam a zonalidade climática de que toda a gente tem noção, ainda que sumária e empírica. Mas há outros factores que interferem nessa zonalidade, entre os quais a altitude, a proximidade ou afastamento (interioridade) face ao litoral, a existência ou não de barreiras montanhosas que impeçam a passagem de ventos húmidos e, ainda, a orientação dominante do vento nas fronteiras terra/mar.

Existe, pois, uma dialéctica constante entre o clima e a paisagem, dois aspectos que também ditam a génese e a natureza das rochas sedimentares formadas na sua dependência. As areias das praias portuguesas, à semelhança de outras das regiões de clima temperado a frio, são essencialmente constituídas por grãos de quartzo, mineral oriundo, sobretudo, da desagregação dos granitos e de outras rochas afins, características e abundantes na crosta continental. Parte significativa das areias das praias das latitudes intertropicais é essencialmente calcária, dado que resultam da trituração e acumulação de restos de conchas de moluscos e de outras partes esqueléticas de múltiplos organismos construtores de carbonato de cálcio (algas, corais, etc.) que pululam nessas regiões. São estas areias, excepcionalmente brancas, que fazem a alvura das praias das Caraíbas ou das Bahamas, entre outras, e os característicos tons de azul dos mares de coral. Foram areias deste tipo e vasas finas da mesma natureza que, uma vez litificadas, deram origem a muitos calcários, entre eles os do Jurássico das nossas Serras do Sicó, d’Aire e Candeeiros, bem como do barrocal algarvio, e testemunham o posicionamento tropical destas regiões nesses recuados tempos.

O nosso satélite, embora receba o mesmo tipo de energia, não dispõe destas duas entidades, pelo que não exibe qualquer actividade erosiva para além da resultante dos antiquíssimos impactes meteoríticos. Cessado o vulcanismo que aí existiu e diminuída a intensidade de quedas meteoríticas, as suas paisagens são praticamente as mesmas desde há mais de 3000 milhões de anos.

Nas imagens, o Minho verdejante e o Alentejo a caminho da desertificação.

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22.2.25

Grande Angular - Democracia e boa educação

Por António Barreto

O Chega não é bem-educado. Nem quer ser. A sua aparente má-criação é uma escolha e um instinto. Ser grosseiro e garoto, por vezes racista e intolerante, outras vezes presunçoso e sempre machista, fazem parte do estilo retórico e dos atributos dos deputados do Chega. Uns são-no naturalmente, outros vão-se forjando à medida em que desempenham as suas funções. Os deputados do Chega são, uns, polidos e bem-educados; outros, são simplesmente ordinários. Mas todos, ou quase, utilizam o modo áspero porque é essa a escolha do partido. Enquanto não fazem totalmente parte do sistema, têm de se comportar como “troublemakers” (agitadores ou desordeiros).

 

Apesar desta evidência, há, entre os democratas bem-comportados, alinhados e cinzentões, uma onda de revolta contra os modos do Chega. Já se fala em proibições, expulsões do hemiciclo, suspensão de mandato e pagamento de multas. Além disso, tudo leva a crer que está em formação uma comissão, ou qualquer coisa parecida, mandatada para definir regras e elaborar códigos. A aprovação de Códigos de Conduta e de elencos do que se deve ou não deve dizer, do que se pode ou não pode dizer, está no espírito de muitas almas aprumadas e reverentes.

 

É de arrepiar esta espécie de inocência bem-pensante. Depois de cinquenta anos de democracia e de liberdade de imprensa, após três ou quatro décadas de Internet e de redes sociais, passadas que são dezenas de anos de explosão das liberdades públicas, ainda há quem pense que é possível e aconselhável elaborar códigos de comportamento e normas de boa educação! “Como ser um cavalheiro no Parlamento”, “Como se comportar numa assembleia democrática” e “Como ser um político bem-educado” são títulos de livros que esperam por nós!

 

Com estas ideias, teríamos de rever uma parte importante da nossa literatura. Muito que se escreveu desde meados do século XIX, até à implantação da ditadura, seria hoje condenado por blasfémia e retórica antidemocrática. Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz e Rafael Bordalo Pinheiro, entre tantos outros, seriam censurados e banidos da imprensa pelo vigilantes das polícias ou das Cortes.

 

Que se aspire a que os nossos representantes, nacionais ou autárquicos, pensem bem, falem melhor, saibam exprimir-se sem recorrer a lugares comuns e fujam das banalidades cruas e boçais, é legítimo. Que se pense que tudo isso depende de um código e de normas, para já não dizer de multas e castigos, já é do domínio do infantil onírico. Ou do despotismo.

 

Qualquer proposta de elaboração do que quer que seja tem de começar por resolver os primeiros problemas. Quem define os palavrões permitidos e os proibidos? Quem estabelece a lista dos pensamentos pecaminosos traduzidos em expressões verbais públicas? Quem define os valores morais, culturais e estéticos que presidem à elaboração do código de conduta? Quem define o que é o discurso de ódio? Quem enumera as expressões e os pensamentos capazes de traduzir qualquer tipo de ódio a proibir, racista, religioso, de género, sexual ou social? Quem define e quem aprova? Quem traça as fronteiras do interdito e do legítimo? Quem são esses novos Sacerdotes ou Comissários da democracia que estabelecem as linhas morais?

 

Quem define os conteúdos, as formas e as fronteiras de três das mais frequentes realidades da vida e do debate público, a mentira, o insulto e a calúnia? Quem é capaz de traçar linhas de definição para estes casos na vida política e parlamentar, recheada, como está, de confronto adversário e de afrontamento radical, aos quais nunca faltam a energia crua e a imaginação, com os seus meios excessivos?

 

Seria bom que, antes de iniciarem cogitações sobre estes temas, partidos e deputados pensassem duas vezes nas dificuldades em encontrar quem seja capaz de elaborar essas regras de modo independente, equidistante de todas as políticas, isento de qualquer condicionante e livre de qualquer dependência. Convém não esquecer que os que definiriam, vigiariam e aplicariam tais regras podem ser muito diversos segundo as suas próprias convicções, crenças, valores, origens sociais e outras. O que é malcriado aqui, não o é ali. O que é ódio para uns, não é para outros. São muito diversas as concepções de grosseiro, ordinário e insulto próprias de um académico, de um militar, de um trabalhador, de um capitalista, de um analfabeto, de um rural e de um citadino.

 

O que querem exactamente os bem-intencionados da democracia? Querem mesmo cuidar da qualidade do debate democrático? Ou querem sobretudo calar o Chega? Aliás, o que se pretende realmente? Um código de conduta e um regimento de retórica que valem para o Parlamento ou também para todos os outros órgãos políticos? E o que assim valeria para o debate parlamentar, condicionaria também os comícios, as entrevistas aos jornais e os programas de televisão? Um deputado poderia insultar um governante ou outro deputado na rua, no jornal e na televisão? E por que não na Assembleia?

 

Com certeza que convém, na Constituição e nos Regimentos, consagrar princípios genéricos como a cortesia, a boa educação, a urbanidade, a civilidade e a polidez de cavalheiros. Assim como o rigor nas contas e a precisão na análise. E esperar que o presidente do parlamento, com a sua perspicácia e a sua experiência, saiba dirigir e manter o recato e os bons costumes. Advertir o deputado, cortar o microfone, interromper a sessão ou mandar sair da sala são meios e instrumentos eficazes, visíveis e compreensíveis, que têm capacidade para ajudar a resolver problemas. Mais do que isso, só espíritos particularmente inocentes ou mal-intencionados seriam capazes de esperar que um qualquer Código Moral teria real eficácia. Pior ainda: quem espera por regras morais e normas de conduta espera, na verdade, poder impor uma forma de moral aos outros, aos deputados e aos que o não são.

 

Há deputados e governantes mal-educados, incultos e grosseiros? Há. Sempre houve. Umas vezes mais visíveis, outras mais recatados. Há deputados e governantes mentirosos, caluniadores, capazes de faltar às leis, com cadáveres no armário e com currículo de uso dos meios do Estado em benefício próprio ou dos seus amigos? Há. Sempre houve. Umas vezes em quantidades abundantes, outras mais moderadas. Para os primeiros casos, as soluções são conhecidas: o exemplo, a opinião pública e uma imprensa livre. Para os segundos, as soluções são também conhecidas: as leis e os tribunais. Em todos os casos, a opinião pública ajuda.

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Público, 22.2.2025

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20.2.25

Chamemos-lhe empadão de frango. Mas pode ser de bacalhau


Por A. M. Galopim de Carvalho
No wok, amoleci, em azeite, cebolas cortadas em quartos de rodelas, alho fatiado e uma malagueta de piripiri. Juntei tomate (2 ou 3, conforme o tamanho) cortado em pedaços pequenos. Deixei apurar e juntei a carne de frango cozida e desfiada.

Entretanto, com o azeite no fundo do tacho, dei uma “fritadela” ao arroz, já com o tempero de sal e, logo a seguir, uma cenoura ripada e água a ferver (3 vezes o volume do arroz). Tapei o tacho e esperei uns 10 a 12 minutos.

Coloquei metade do arroz no fundo da assadeira, sobre ela o preparado descrito acima, sobre o qual espalhei o resto do arroz. Reguei com um pouco da água de cozer o frango, acalquei, para compactar, e decorei com rodelinhas (obtidas com o descaroçador) de pimento verde e vermelho. Pincelei com ovo batido e levei ao forno, a 190 ºC, por cerca de meia hora.

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18.2.25

DO LABORATÓRIO À COZINHA

Por A. M. Galopim de Carvalho

Vinte e quatro anos depois da jubilação, eis-me a publicar mais um livro em que se fala de açordas, migas e outros comeres, como diziam os rurais alentejanos no tempo em que, como adolescente, pude conviver com eles. Nos três anteriores, “Com Poejos e Outras Ervas”, “Açordas Migas e Conversas” e “Com Coentros e Conversas à Mistura”, além de receitas culinárias, fala-se “de tudo e mais alguma coisa”, da crónica à ficção, da mineralogia e geologia à história e à filosofia, das artes à sociologia. Neste, síntese dos anteriores, a que se acrescenta o que fui editando na minha página do Facebook apenas das muitas confecções aprendidas e criadas, todas elas da gastronomia alentejana ou nela inspirada.

Durante quarenta e quatro anos, primeiro como aluno, depois como docente e investigador nas Universidades de Lisboa e de Paris, no domínio das rochas sedimentares e dos seus minerais, o laboratório, com recursos à química e à física, foi uma constante na minha vida. Um laboratório foi, ainda, o que, respondendo a uma solicitação do saudoso professor Orlando Ribeiro, criei no Instituto de Geografia da Faculdade de Letras de Lisboa, onde a investigação em sedimentologia estava na base da geomorfologia.

Quando o limite de idade me arrumou, contra minha vontade, na “prateleira dos reformados e pensionistas”, toda a parafernália laboratorial que por amor à arte, por assim dizer, me entrara no coração, parece ter encontrado continuidade e conforto na da cozinha. Gobelets, provetas e erlenmeyers viraram tachos, panelas e frigideiras; cloretados, oxidados e sulfatados tomaram o lugar dos refogados, guisados e estufados; átomos e iões foram substituídos por bagos de ervilha e por feijões; a torneira com água fria e quente é a mesma, os queimadores de gás do fogão passaram a bicos de Bunsen e o forno fez as vezes da estufa.

Acontece que, em criança de 9,10 e 11 anos, era eu que, a mando de minha mãe, ia ao talho e ao mercado municipal, com o recado bem metido na cabeça, comprar o peixe, as hortaliças e a fruta. Ia também à mercearia, em busca do arroz e das massas, do feijão e do grão, do açúcar e da farinha, da manteiga e do azeite, nesse tempo, tudo a granel, aos quilos e meios-quilos, litros e meios-litros. Com essa experiência aprendi a relacionar os produtos que trazia para casa com as confecções que vinham à nossa mesa, numa família de pai, mãe, seis filhos e uma tia viúva, irmã da minha mãe, uns 18 anos mais velha do que ela. Acontece, ainda, que muito cedo ganhei interesse pela cozinha e que a minha mãe teve gosto e paciência para me ensinar os rudimentos que me permitiram caminhar “pelo meu pé”, descobrir o que fui descobrindo e criando o que o acaso fez surgir, sempre inspirado na cozinha tradicional alentejana.

Nos anos em que fui profissional a tempo inteiro, mais precisamente, entre 1961 e 2001, sempre gostei de, aos fins-de-semana, feriados e períodos de férias, me entreter na cozinha. Nos outros dias trabalhei naquilo em que me tornei profissional. E com que gosto! Com tanta a entrega e tanta a obsessão que costumava dizer estar sempre em férias, modo eufemístico de dizer que nunca me lembrava delas. Nos três anos que vivemos em Paris, no 5ème arrondissement, Rive Gauche, a Isabel e eu, alugámos um apartamento com uma pequena, mas funcional, kitchenette, íamos ao mercado na Rue Mouffetard, tal como os nossos vizinhos, e cozinhámos o tempo todo, ora um, ora outro.

Este outro livro, certamente o último que farei, encaro-o como um poema à gastronomia alentejana, como arte colectiva e ancestral de um povo que aprendeu a tirar das ervas, que a Natureza pôs à sua disposição, os aromas e os sabores que a caracterizam.

Importante atractor do já chamado turismo gastronómico, a gastronomia regional é um pilar da identidade da área territorial a que se refere e um património cultural que valoriza a relação entre a mesa e a sociedade locais. A gastronomia oferece ao viajante verdadeiras experiências muito pessoais e autênticas dos locais por onde passa, uma vez que, sentar-se à mesa para almoçar ou jantar, é uma necessidade de todos os dias. E a verdade é que quem viaja procura, cada vez mais, experiências que liguem os locais visitados ou a visitar às respectivas raízes culturais, e os “sabores” são uma parte importante dessas raízes. É por isso que, no dizer do colunista gastronómico espanhol Xavier Domingo (1929-1996), «Los libros de cocina son materia prima para historiadores, sociólogos, psicólogos, filósofos e incluso – termina com humor - para cocineros”. Sabemos que a gastronomia representa uma fatia importante do turismo cultural e também sabemos que este está intimamente ligado ao turismo rural, pela relação que tem com a agricultura e a pecuária que estão na base dessa mesma gastronomia.

Quem me conhece sabe que cozinhar tem sido para mim um hobby, à semelhança de outros, como a bricolage, a escultura, a pintura e, ultimamente, a escrita. Não sendo gastrónomo, gosto de ler sobre gastronomia, a «nona arte», como a distinguiu o conhecido gastrónomo, escritor e jornalista, Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949), além de que aprecio, e muito, os bons sabores e gosto de «pôr as mãos na massa», no dizer de José Quitério (1942-), o jornalista fundador da secção de gastronomia do semanário Expresso.

Revejo-me nas palavras de Alfredo Saramago (1938-2008) que escreveu, em 1994, «O homem que gosta de cozinhar é um ser social por excelência.» E é isso mesmo que eu sei que sou. Com efeito, é em confraternizações de amigos e familiares que mais gosto de cozinhar.

“Do Laboratório à Cozinha” é um apanhado de ideias e sugestões passadas a escrito, cujo objectivo é dar a conhecer confecções caseiras, muito simples, vindas de pais e avós, amigos e conhecidos, citadinos e rurais, quase sempre com a marca mais ou menos visível da grande província que é a minha. Não indica quantidades nem tempos, nem se preocupa com os modos de preparação. Neste propósito, destina-se a toda aquela ou todo aquele que conheça os rudimentos da cozinha, deixando a cada um a liberdade de fazer delas o que melhor entender.

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17.2.25

No "Correio de Lagos" de Janeiro de 2025

 

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No "Correio de Lagos" de Janeiro de 2025

 

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No "Correio de Lagos" de Dezembro de 2024

 

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15.2.25

Grande Angular - O debate está na praça pública

Por António Barreto

Bem ou mal, bem e mal, a questão da imigração está no centro dos debates políticos que vão dominar as próximas eleições, das autárquicas e legislativas, às europeias e presidenciais. Assim como ocupar discussões parlamentares e académicas. Não há por onde fugir e ainda bem. Vão aos poucos desaparecer os que insistem em que “não há problema”, que “é só racismo”, que não passa de uma “moda nacionalista”. Vão-se encolhendo os que garantem que as soluções são simples, tal como “fechar as portas aos imigrantes” ou “abrir as portas aos que querem para cá vir”. Nunca se calarão, mas falarão mais baixo, os que asseguram que os nacionais são virtuosos e os estrangeiros pulhas. Já se percebeu que não faz sentido garantir que os imigrantes sejam todos iguais, legais ou ilegais, estrangeiros ou naturalizados, de primeira ou segunda geração, respeitadores da lei ou criminosos, de cultura e tradição próximas ou absolutamente alheias e distantes das portuguesas. É bom que assim seja. Que se diga tudo. Que haja divergências e acordos. Que se consiga melhorar a legislação e a vida no espaço público. 

 

Se assim for, se a discussão pública tiver como efeito a moderação dos preconceitos e o melhoramento da legislação e se aumentar um pouco a racionalidade dos argumentos, vale a pena contribuir para o debate. A começar pela enumeração de princípios e valores, que poderá contribuir para a formação de opiniões.

 

As pessoas não têm o direito de imigrar para o país que lhes apeteça, de ter autorização legal para se estabelecer onde quer que seja e instalar-se ilegalmente onde quiserem. As pessoas têm o direito de solicitar residência, autorização, ajuda e apoio noutros países. Os países de acolhimento possível têm o dever de responder afirmativa ou negativamente a qualquer solicitação, com autoridade e humanismo, de acordo com as suas leis e com as suas capacidades.

 

Cada povo tem o direito de escolher quem prefere ou a quem oferece melhores condições de acolhimento. A inversa não é verdade: um povo não tem o direito de se instalar onde quiser, nas condições que prefere. As regras são feitas pelos povos dos Estados de acolhimento.

 

Os imigrantes não têm os mesmos direitos do que os nacionais (naturais ou naturalizados). A começar pelo direito de voto nas eleições, nomeadamente as que implicam a criação e a escolha dos órgãos de soberania, a revisão ou a aprovação da Constituição, a declaração de guerra e paz ou as decisões sobre o Estado de sítio.

 

Qualquer povo tem o direito de exigir reciprocidade de direitos com os países de proveniência dos imigrantes legais (com exclusão dos refugiados políticos). Não é obrigatório fazê-lo, mas pode fazê-lo.

 

Um Estado deve garantir a universalidade dos direitos fundamentais, por exemplo vida, justiça, liberdade de expressão, segurança social, saúde e educação, não distinguindo entre imigrantes ou nacionais. Mas os direitos políticos dos imigrantes, designadamente o direito de voto e de participação nas eleições, podem ser reduzidos, restritos e diferentes dos direitos dos cidadãos nacionais (ou naturalizados).

 

Um Estado tem o direito e o dever de proibir práticas e costumes que infrinjam directamente as suas leis vigentes, mas também práticas e costumes que, sem infringir directamente as leis, contrariem direitos fundamentais ou regras estabelecidas, como nos casos de incesto, de vestuário que contraria direitos de outrem (o uso da Burca, por exemplo), de violência paterna ou materna, de ameaças conjugais e de tratamento dos animais.

 

Um Estado tem o direito e o dever de proibir todas as práticas condenadas nas suas leis, mas permitidas nas leis dos países de origem dos povos imigrantes: poligamia, excisão, casamento forçado, casamento contratado, uso de véus que escondem a identidade, proibição de frequentar o espaço público, justiça pelas próprias mãos, todas as formas da “lei de Talião” e negação de direitos às mulheres e às crianças.

 

Um Estado tem o direito e o dever de facilitar a imigração e a legalização de quem se predisponha a aceitar medidas de integração, designadamente aprendizagem da língua. Um Estado tem o direito de proibir ou punir pessoas e comunidades imigradas que se recusem, por exemplo, a frequentar a escola obrigatória nacional.

 

Um Estado tem o direito (até talvez o dever…) de exigir que os imigrantes cumpram todos os deveres de legalidade, de inscrição e contribuição para os sistemas nacionais de impostos, segurança social e outros. Um Estado tem o direito de não conceder acesso aos serviços sociais e públicos a quem não se encontra devidamente legalizado e registado.

 

Um Estado tem o direito e o dever de garantir que o trabalho imigrante não contribua para a redução dos salários, nem para a exploração dos imigrantes nas suas condições de alojamento e de emprego.

 

Um Estado tem o direito de contemplar a recusa de autorização e a suspensão, a expulsão ou a deportação de estrangeiros imigrantes não naturalizados, em casos de crimes tipificados, incluindo as falsas declarações para obter autorizações de residência e trabalho, os crimes violentos e o tráfico de produtos proibidos e ilegais.

 

Um Estado tem o direito e o dever de aprovar uma política de população e de imigração, indispensável para o respeito pelos direitos dos cidadãos nacionais e dos imigrantes. A exploração de imigrantes, o abaixamento dos níveis de salários, a habitação em péssimas condições, o tráfico de trabalho, as redes internacionais de pessoas e de bens ilícitos e a desorganização dos serviços públicos resultam também da falta de políticas de migração. O descontrolo e a desatenção das autoridades relativamente às questões das migrações só agravam as vidas dos nacionais e dos imigrantes, incluindo o não reconhecimento dos seus direitos.

 

Do ponto de vista internacional e demográfico, Portugal tem uma situação muito interessante, pois é simultaneamente país de emigração e país de imigração. O facto traduz realidades menos felizes (há falta de oportunidades para os nacionais, ao mesmo tempo que há falta de trabalhadores para muitas actividades). O país perde população com aptidões e recebe população sem qualificações. Mas, ao mesmo tempo, permite ter uma visão mais completa dos problemas. Nesse sentido, Portugal tem o direito e o dever de exigir aos imigrantes o que outros países exigem aos emigrantes portugueses. Com uma certeza: são os países autoritários, as ditaduras, que proíbem as migrações.

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Público, 15.2.2025

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9.2.25

Grande Angular - Vencedores e derrotados

Por António Barreto

Parece haver consenso: vivemos tempos de mudança e de transição como não se via há décadas. É tão forte, profunda e rápida esta mudança, cujo princípio conhecemos e cujo fim nem sequer imaginamos, que não é arriscado afirmar que, dentro de vinte ou trinta anos, aos olhos de hoje, o mundo será irreconhecível.

 

Não é o conceito abstracto de mudança que suscita apreensão. Na verdade, sempre o mundo mudou. Devagar ou depressa. Pacífica ou tumultuosamente. Para melhor ou pior. Mas sempre mudou. “O mundo é feito de mudança”, como está escrito há séculos. O que inquieta muitos são a radicalidade e a velocidade da mudança.

 

A verificação de que estamos em grande, secular e histórica mudança é comum a muita gente, é visível todos os dias. As balanças de poderes económicos, sociais, políticos, financeiros, militares, culturais e religiosos, nem sempre coincidentes, são já hoje o que nem sequer se imaginava há quarenta anos. Não se sabe se esta mudança, esta transição global e profunda, ainda vai no princípio ou se vai a meio caminho. Só sabemos que não está no fim. Ao contrário da mudança quotidiana, permanente, feita de mais ou menos solavancos, de transformações e ajustamentos imperceptíveis, a transição de que aqui se fala é mais rápida e mais brutal, a ponto de se poder afirmar que, em poucos anos, o ponto de chegada se encontra a anos-luz do ponto de partida.

 

Em todas as mudanças, sempre houve vencedores e derrotados. E sempre foi perigoso lidar com uns e com outros. Os vencedores afirmam-se dominando, conquistando, explorando e comandando, à força ou com jeito. Os vencidos reagem sempre mal, com sabor amargo da derrota, deixando-se submeter ou procurando a vingança.

 

Na actual transição, é o mundo inteiro que está em causa. Ninguém escapa. E todos serão vencedores ou derrotados. Perdem a Europa e os Estados Unidos, cuja hegemonia cessou inexoravelmente. Perde o Ocidente liberal. Perde o Império Russo, czarista, soviético ou plutocrata. Ganha a China. Ganham os outros grandes países asiáticos (a começar pela Índia). Perde a África, em conjunto ou aos bocados. Ganham os países islâmicos, sobretudo os produtores de petróleo. Perde a América Latina, a do continente ou a dos países individuais.

 

O passado recente ajuda-nos a perceber. Basta olhar para a participação de cada conjunto geográfico e político no total. Ver o que cada parte representa no total do mundo do PNB, da riqueza disponível, da população, do emprego, da força militar, da produção industrial, das patentes registadas, das exportações e de outros temas e sectores com significado. Em cada um destes sectores ou temas, com raras excepções, a Europa está sempre a perder importância. Já representou, ainda há pouco tempo, um quarto ou um terço do total mundial do produto, está agora próxima dos 10% ou pouco mais.  Até os Estados Unidos, em vários destes temas, deixaram de ter posição dominante. Antigamente, os Estados Unidos ditavam. Hoje, tentam a guerra comercial.

 

Que vão fazer, nesta transição, nesta quase reviravolta, os derrotados? E os vencedores? Olhando com cautela para a Europa, a América, a Rússia e a Ucrânia, a China e Taiwan e quase toda a África, rapidamente se percebe que grandes acontecimentos e grandes dramas esperam por nós.

 

Mas há assuntos que nos afligem mais. Perder domínio político ou poder económico é duro e difícil. Mas, perder a liberdade e a democracia é um verdadeiro desastre. Ora, aquilo de que aqui se fala é provavelmente, desde meados do século XX, o maior perigo ou a maior ameaça contra a sociedade democrática ocidental e contra o regime de democracia liberal. Estamos a assistir ao recuo da democracia e das tentativas democráticas em todo o mundo desde finais do século XX. O mundo democrático tem hoje menos poder e menos importância do que há algumas décadas. E há cada vez menos povos e menos Estados que aspiram a uma qualquer forma de democracia.

 

Há, evidentemente, ameaças “internas “e “externas”. Entre as primeiras, a ascensão rápida da extrema direita e gradual da extrema-esquerda. Ou as fissuras abertas entre aliados, como sejam os Estados Unidos e a Europa. Assim como os erros sucessivos dos governos democráticos. Para já não falar do crescimento do populismo e dos plutocratas. Além, evidentemente, do êxito das ideias antidemocráticas favoráveis às “políticas correctas” do género, das minorias, das raças e do multiculturalismo acrítico.

 

Quanto às ameaças externas, estas encontram-se previsivelmente na concorrência internacional, na competição política e militar e na guerra comercial agora desencadeada. E nas ambições dos novos poderes.

 

Além da velha rivalidade entre continentes, países e Estados, vivemos agora um confronto entre democracia e não democracia. Entre liberalismo e autoritarismo. O Ocidente e a democracia já perderam muito. Os regimes não democráticos ganham, dia a dia, posições importantes. Na força militar, na economia, na produção industrial e no acesso a recursos naturais no mundo inteiro. Pior ainda do que este confronto é a ascensão permanente, dentro das democracias, das vozes, das populações, dos políticos e dos eleitores não democráticos. A este fenómeno deve-se grande parte do declínio da democracia, tanto quanto ao avanço da não democracia.

 

Talvez o recuo da democracia e da liberdade dos ocidentais seja inevitável. Mas o que é decisivo não é o renascimento imperial. É, isso sim, a preservação das liberdades internas e da democracia como valor inalienável. E insubstituível. Mas há dificuldades no caminho. A primeira reside no facto de a diminuição de força económica e militar poder acarretar a perda de força política e o declínio da segurança democrática. A segunda encontra-se claramente no facto de as convicções democráticas e a crença nas liberdades estarem enfraquecidas pela abdicação e pela descrença. A Europa, o Ocidente, a democracia e as liberdades não estão em perda apenas na competição internacional. Começam a ser derrotadas pelos próprios. Por nós.

Público, 8.2.2025

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5.2.25

Arroz de coelho

Por A. M. Galopim de Carvalho

O nosso arroz de coelho, preparado com a metade dianteira do animal, o “devant de lapin” no dizer dos franceses, nasceu em Paris, no início dos anos 60 do século que passou, no antigo Hotel Blanadet, 51, Rue Monge, no 5 ème arrondissement, em plena rive gauche, designação dada a esta zona na margem esquerda do Sena, então muito frequentada por artistas e intelectuais. Aí se situavam o Museum National d’Histoire Naturelle, o Collège de France, a École de Mines, a Sorbonne, a École Politechnique e outras instituições de ensino superior e de investigação científica onde estudavam e estagiavam uma dezena de portugueses, entre geólogos, físicos, biólogos e até um sociólogo, todos eles residentes no velho e simpático hotel. Concentrados no 6º andar, que um de nós baptizou de “Avenida das Tílias”, aí se viveu, por mais ou menos tempo, em apartamentos ou em quartos simples, consoante se tratasse de casal ou de pessoa só.

Muitas e muitas vezes, aos domingos, reuníamo-nos em longos e animados almoços, ora no nosso apartamento ora no dos Martinhos, os únicos com o espaço suficiente para sentar uma dezena de lusitanos, ávidos de falar a própria língua, ao fim de uma semana literal e, às vezes, penosamente francófona, saudosos de saborear qualquer coisa que nos trouxesse a casa e nos recompusesse para mais uma semana de Réstaurant Universitaire, de self-services ou de refeições comidas à pressa, à base baguettesjambonpatées ou queijo Brie. Foi neste contexto que, um certo domingo, servimos aos nossos conterrâneos, colegas e vizinhos o dito e saboroso arroz de coelho.

Nessa altura, em que o franco francês rondava os seis escudos (o preço de um litro de gasolina), comprava-se no talho um coelho médio por sete a oito francos, com a curiosa particularidade de a metade dianteira, o devant, quase sempre rejeitado por uma clientela de viver mais desafogado, ser vendido aos clientes de menores posses, como era o nosso caso, por apenas um franco, e o dérrière, pelos restantes seis ou sete.

Com as cabeças, mãos, costelas e fressuras de quatro ou cinco coelhos comia-se, no dizer de todos, o melhor arroz do dito, um pouco ao jeito do sabor da cabidela perfumada com cominhos.

– Este manjar, - dizia o Miguel Ramos, um dos lusitanos, a chupar à mão, uma a uma, as finas costelinhas, – devia ser comido acompanhado de louvores à Natureza e à arte de quem o confeccionou.

Tais almoços, bem regados por bons tintos du Rhône e outros bem escolhidos, e pela sempre fresca, saborosa, perfumada e estaladiça baguette, prolongavam-se tarde fora, de mistura com muita conversa e animação, que crescia na razão inversa do nível do líquido nas respectivas bouteilles.

– Abre aí outra – dizia o António Ribeiro – que esta já disse o que tinha a dizer.

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3.2.25

São raros os meus familiares...

Por A. M. Galopim de Carvalho

São raros os meus familiares, amigos e colegas de trabalho que continuam a resistir à gadanha do tempo. Já quase todos partiram e, sem dramatismo, isso diz-me aquilo que todos nós sabemos. O meu Bilhete de Identidade perpétuo (já não me foi passado o Cartão de Cidadão) diz que sou um velho de 94 anos. Isso é mais que evidente e, todas as manhãs, o espelho da casa de banho o confirma. Mas a minha alma não envelheceu e eu tenho plena consciência disso. Mantenho, a um tempo, a ingenuidade e a transparência da criança feliz que fui, a insatisfação, ousadia e aventureirismo da adolescência, a energia e positivismo da idade madura e a ponderação, tolerância, paciência e resignação dos velhos. Não perdi o sentido de humor e o amor à vida. O corpo e, em especial, as pernas é que não ajudam. Mas, aqui, sentado, frente ao monitor, a dedilhar no teclado as palavras ditadas pelo pensamento, não tenho idade nem as dores do corpo dos velhos. Continuo a trabalhar e tenho a felicidade de o poder cumprir no que me dá prazer. Faço-o ao limite das minhas capacidades físicas, tenho consciência de que o produto do meu trabalho continua a ter utilidade e isso encoraja-me a continuar.

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