8.12.25

O ESTADO NOVO DE SALAZAR, NA MEMÓRIA DE QUEM O VIVEU

Por A. M. Galopim de Carvalho

Só os portugueses e as portuguesas com mais ou menos 15 anos no dia 25 de Abril de 1974, hoje a rondarem os 65, podem ter memória crítica de algumas particularidades dos últimos estertores do Estado Novo, que viram cair. Rapazes e raparigas com menos idade, ou seja, as crianças desse tempo, talvez se lembrem de um pormenor ou outro. Só a chamada terceira idade, viveu ou sofreu um regime que nos privou de todas as formas de liberdade, torturou muitos de nós, durante quase meio século. Só os mais velhos, com 70, 80 ou mais anos, como é o meu caso, que, no 5 de Abril, somava 43 anos de vida, quase tantos, quantos os da ditadura, viveram e conheceram, em pormenor, a censura e a repressão. Só a “peste grisalha”, na deselegante expressão do deputado Carlos Peixoto do PSD, a quem o Estado garantiu uma pensão, mas, arrumou na prateleira dos esquecidos (leia-se reformados ou pensionistas), conheceu toda essa indignidade, esse sufoco.

Assim sendo, torna-se evidente que a grande maioria dos nossos adultos no activo pouco ou nada sabem de um regime que nos privou de todas as formas de liberdade, torturou muitos de nós, durante quase meio século e que caiu de podre no dia em que os cravos floresceram nas espingardas dos soldados.

É evidente que há excepções. Basta pensar no grande número de livros, dissertações, escritos diversos e outros trabalhos, da autoria de historiadores e outros estudiosos. Mas, também é evidente que o número destes portugueses, representa “uma gota de água” num universo de milhões, a quem a escola, do pós-25 de Abril, deu diplomas, mas não deu cultura.

Nos anos de 1930 e 1940, os das duas primeiras décadas de consolidação do Estado Novo, Portugal viveu em situação de ditadura, distinguindo apoiantes do novo regime e oposicionistas, de entre os quais se evidenciaram, por serem publicamente conhecidos, os que “se metiam na política”, localmente referidos como sendo “os do reviralho”. Eram os da chamada oposição democrática, consentida por Salazar, com destaque para os do Movimento de Unidade Democrática (MUD). Criado em 1945, foi extinto três anos depois, em virtude do grande apoio popular que registou, agrupando muitos opositores até então isolados, entre os quais muitos intelectuais e profissionais liberais. 

Outros opositores, que quase ninguém conhecia, militando na clandestinidade pelo Partido Comunista, eram activamente perseguidos, primeiro pela PVDE (Política de Vigilância e Defesa do Estado), entre 1933 e 1945, e, depois, pela sua substituta PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). A estes opositores, os “pides” deitavam-lhes a mão, levavam-nos para Lisboa, onde os interrogavam, brutalizavam, guardando-os depois, pelo tempo que entendessem, e, em alguns casos, assassinavam. Para os localizarem e denunciarem havia os informadores, também referidos por “bufos”, uns conhecidos, outros, não, pelo que se dizia que as mesas dos Cafés, os bancos do jardim, as paredes de todo o lado e até as pedras da caçada tinham olhos e ouvidos.

Para além das restrições à liberdade e da censura, fez-se sentir, também aqui, o decreto 27 003, de 14 de Setembro de 1936, que determinava: «Para admissão a concurso nomeação efectiva ou interina, assalariamento, recondução, promoção ou acesso, comissão de serviço, concessão de diuturnidades e transferência voluntária, em relação aos lugares do estado e serviços autónomos, bem como dos corpos e corporações administrativos, é exigido o seguinte documento com assinatura reconhecida: «Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas». E, mais adiante: «Os directores e chefes dos serviços serão demitidos, reformados ou aposentados compulsivamente sempre que algum dos respectivos funcionários ou empregados professe doutrinas subversivas, e se verifique que não usaram da sua autoridade ou não informaram superiormente».

Embora na letra da Constituição de 1933, figurasse o princípio da igualdade entre cidadãos perante a lei, o Estado Novo considerava a mulher como mãe, dona-de-casa e, em quase tudo, submissa ao marido. A lei portuguesa de então, designava o marido como chefe de família, sendo reservado à mulher o governo da casa, o que se traduzia pela imposição dos trabalhos domésticos como obrigação, não tendo os mesmos direitos na educação dos filhos. Não tinha direito de voto, não podia ascender a determinadas chefias nem exercer cargos na magistratura, na diplomacia e na política. Sendo casadas, as nossas mulheres perdiam o direito a intervir nas suas propriedades, não podiam viajar para fora do país sem autorização dos maridos e não podiam trabalhar sem autorização destes. O marido podia dirigir-se ao empregador declarar não autorizar a mulher a trabalhar, o que implicava o seu imediato despedimento.

Em muitos hospitais as enfermeiras podiam ser impedidas de casar. Se casassem, podiam ser obrigadas a abandonar a profissão. As professoras tinham de pedir autorização para casar, o que só era permitido se o noivo satisfizesse determinadas condições, autorização publicada e em Diário da República O divórcio era proibido, devido ao acordo estabelecido com a Concordata de 1940, numa submissão do Estado à Igreja Católica. Assim, todas as crianças nascidas de uma nova relação, posterior casamento, eram consideradas ilegítimas, não podendo ter o nome do pai, ou seja, o do companheiro.

Na orientação ideológica antiliberal e de cariz católica do ditador, a existência da mulher confundia-se com a da família, estando-lhe reservado o espaço doméstico. A Obra das Mães pela Educação Nacional, organização feminina do Estado Novo, criada em 1936, tinha por objetivo “estimular a acção educativa da família e assegurar a cooperação entre esta e a escola nos termos da Constituição” de 1933. 

Nascida em 1912, como suplemento feminino do jornal “O Século” a revista semanal “Mulher – Modas & Bordados” dirigida nos primeiros tempos a uma pretensa elite feminina, fornecia-lhe conselhos nos domínios da moda, da culinária, das boas-maneiras e da beleza. Mostrou, porém, alguma preocupação de valorização da mulher, testemunhada pela publicação regular de sonetos da grande poetisa alentejana, Florbela Espanca (1894-1930), uma das primeiras mulheres a frequentar o Liceu Masculino André de Gouveia, onde permaneceu até 1912. Foi, porém, com Maria Lamas (1893-1983), opositora ao regime e feminista, na direcção desta revista que a luta contra a secundarização da mulher se fez sentir, não só em Évora, onde tinha ligações familiares, como no país. 

Depois de duas décadas de confronto com o liberalismo e o republicanismo, a chamada pax salazarista proporcionou à Igreja (grandemente afectada durante a Primeira República) um terreno propício à sua reimplantação e reestruturação interna. Nestes propósitos, assumiu papel fundamental o então Patriarca de Lisboa, Dom Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977), dirigindo a Igreja Católica Portuguesa durante o Estado Novo. Elevado ao cardinalato, em 1929, pelo Papa Pio XI, foi amigo íntimo e companheiro de Salazar (militante católico nos tempos da Primeira República), no Centro Académico da Democracia Cristã, em Coimbra. 

Com a subida de Salazar ao poder, o cardeal Cerejeira pôde garantir, à Igreja, potecção, respeito e liberdade de acção. Estava na sua mente recuperar e salvaguardar os privilégios do catolicismo, como Igreja do Estado, afastados pela Primeira República, tendo tido papel fundamental na assinatura da Concordata com a Santa Sé, em 1940, na criação da Acção Católica Portuguesa, visando a “recristianização” da sociedade, na obrigatoriedade do ensino religioso, na abertura de novos seminários e casas religiosas, bem como no desenvolvimento da imprensa católica.

Em 1936, com Carneiro Pacheco no Ministério da Educação Nacional (anteriormente chamava-se da Instrução Pública), reforçara-se o papel da escola no controlo ideológico e orientação política dos alunos, na prevalência do livro único, no culto das virtudes nacionalistas e no elogio da vida modesta e rural. O fervor patriótico e o cunho religioso enquadrados na ideologia oficial do Estado Novo estavam diluídos nas matérias curriculares, nomeadamente, na Leitura, na História e na Geografia, no propósito de, a partir dos bancos da escola, então com início aos sete anos de idade, estimular estas virtudes nos homens e mulheres do futuro.

Nestes anos, o ensino obrigatório ainda terminava com o exame da 3ª classe (3º ano, como agora se diz), certificado pelo diploma do “Primeiro Grau”, exigível, por exemplo, para ingresso nos lugares mais humildes da função pública, no comércio, como caixeiro, nos correios, como carteiro ou boletineiro e, até, para ser eleitor. Ler, escrever e contar era tudo o que, o cidadão comum necessitava para fugir à vida do campo, ao aprendizado artesanal ou oficinal e a outros trabalhos que apenas fizessem uso da força braçal. Esta habilitação mínima vigorou até 1956. A partir de então, a escolaridade aumentou para 4 anos, apenas para os rapazes. Só quatro anos depois, esta obrigatoriedade foi decretada para as raparigas.

Na Escola Primária, a pedagogia estava na ponta da régua, versão escolar da tradicional palmatória ou menina de cinco olhos. Com algumas professoras, as reguadas estalavam nas mãos das crianças “por dá cá aquela palha”, quer por motivos de disciplina, quer por erros nos ditados, nas contas e em quaisquer outras matérias. 

À margem da Escola Primária havia as chamadas “Escolas Incompletas”, criadas em 1930, mais tarde designadas “postos escolares”, com o propósito de combater o analfabetismo no seio de populações sem escola nem condições mínimas de fixar professores. Aqui o ensino era ministrado por “regentes escolares”. Na imensamente maioria mulheres, ganhavam metade do ordenado de um professor, bastava que possuíssem a 4ª, que demonstrarem ter bom comportamento moral e adesão ao regime e eram, de preferência, oriundas dos próprios locais.

A análise histórica da documentação permite verificar que, nesses anos, os professores, diplomados pelas Escolas Normais, foram sendo substituídos pelos regentes escolares, em especial nas aldeias e na periferia das cidades. A escolaridade obrigatória, como se disse, baixara para a 3.ª classe e as crianças estavam preparadas para trabalhar e ouvir o sermão do senhor padre aos Domingos.

Salazar procurou promover uma sociedade ruralista, dando relevo à família patriarcal e católica. No discurso de Salazar, proferido em 12 de maio de 1935, na sede da Liga 28 de Maio, em Lisboa, Salazar disse: «Oiço muitas vezes dizer aos homens da minha aldeia, «Gostava que os pequenos soubessem ler para os tirar da enxada». E eu gostaria bem mais que eles dissessem: «Gostaria que os pequenos soubessem ler, para poderem tirar melhor rendimento da enxada»

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6.12.25

Grande Angular - A escuta em vez de justiça

Por António Barreto

A divulgação, pela imprensa, das escutas telefónicas efectuadas durante anos a várias pessoas, incluindo ministros, empresários e funcionários, e aos seus correspondentes (entre os quais o Primeiro-ministro) deixou, mais uma vez, uma parte da opinião pública estupefacta. Por que razão se fizeram aquelas escutas, em que condições de legalidade e por que se guardaram tanto tempo? Todas parecem triviais, sem ilegalidade e crimes aparentes, mas todas deixam transparecer um teor de conversas hediondo, ridículo e trivial. Era seguramente isso que desejava quem efectuou a “fuga” de informação: “aquela gente”, que fala assim sobre estes assuntos, não é de confiança!

 

O problema é que, cada vez mais, quem facilita as “fugas” ainda merece menos confiança e seu comportamento começa a parecer-se com crime puro e simples. Não é a sua publicação que está em causa: desde que as informações chegam, por meios legítimos, às mãos dos jornalistas, estes têm a obrigação de as publicar. O problema está em quem as entrega ou deixa correr. Esse é o responsável e o seu comportamento merece censura e castigo.

 

As escutas telefónicas continuam, assim, a dar que falar. E a retomar sempre a ideia de que o mais simples e mais seguro será simplesmente a sua condenação e a sua interdição. Ninguém está seguro, nem os próprios agentes de Justiça, de que as escutas acatam os requisitos processuais. Quem escuta quem? Porquê? Quando? Durante quanto tempo? Em que condições? O que é que se escuta? Ninguém está seguro de que quem escuta esteja pessoalmente certificado para tal. Ninguém está seguro de que determinadas escutas não vão servir para processos ilegítimos.

 

Mesmo quando são legais, o que nem sempre será o caso, os processos de escuta são cada vez mais ilegítimos e mais orientados contra pessoas e organizações. A sua utilização é evidentemente discricionária e ilegítima. Não há escuta cuja revelação ou divulgação seja legítima. Ora, não há divulgação que não seja obra de juízes, oficiais ou procuradores. Ou por sua iniciativa. Ou por sua responsabilidade, isto é, deveria ter sido mantida em segredo e alguém, ilegitimamente, a desviou: disso, juiz ou procurador são responsáveis, sejam ou não autores.

 

A escuta telefónica, sua obtenção e sua utilização transformaram-se num sucedâneo para a Justiça, ou antes, para a investigação e o processo judicial. Até já terá havido um caso em que o Primeiro-ministro se demitiu, forçado pela denúncia de prováveis escutas. Ainda hoje não se esclareceu este caso. 

 

Não tenhamos dúvidas: as escutas telefónicas são o recurso de facilidade, a sarjeta, a arma do ignóbil e o veneno da Justiça. Há quem considere a escuta telefónica (e sua circunstância que ultrapassa, muitas vezes, em legalidade e odioso, a estrita prescrição judicial) como instrumento de investigação absolutamente legítimo. Não se perdoa, e muito bem, a tortura, os “bofetões”, os “safanões, a vigilância indevida ou o interrogatório fora de horas. Mas aceita-se a escuta. E assim se fere um dos princípios mais importantes da democracia: o respeito pelos cidadãos e pelos seus direitos.

 

Procure-se nos Evangelhos ou nos gregos, em Adam Smith ou Jefferson, em 

Albert Camus ou John Rawls: a Justiça em primeiro lugar! Para George Washington, é mesmo o mais firme pilar da democracia. É tão simples quanto isso: não há democracia sem Justiça. E não há Justiça sem respeito pela lei, pela moral e pelos cidadãos.

 

Os defeitos e a incompetência da Justiça, quando existem, podem ferir a democracia. Podem transformar-se em faltas de defesa dos direitos dos cidadãos, em ausência de protecção das liberdades. Mas tudo fica muito pior, quando a Justiça, ou quem quer que seja em seu nome, abusa dos seus poderes para procurar visar certas pessoas com intenções estranhas à Justiça e às suas obrigações. Com a Justiça orientada e selectiva, tudo é possível. Ameaças políticas, privadas ou comerciais. Chantagem pessoal, extorsão, armadilha política e posse de “segredos” a fim de condicionar o comportamento de outrem. Aproveitamento político e partidário das informações e dos segredos assim recolhidos. Lucros e negócios pessoais. Tudo o que deveria ser estranho à Justiça.

 

Quais são as grandes ameaças contra a democracia? A desigualdade? A pobreza? O nacionalismo? Parece cada vez mais ser a falta de justiça. A ausência de justiça como base do bom governo. As deficiências da justiça como alicerce da liberdade. A Justiça em Portugal não é o pilar de democracia, o chão das liberdades, nem a garantia dos direitos individuais. Já não é o instrumento de lisura dos processos políticos e democráticos. Já não é um código de honra dos seus agentes para defender as liberdades e a democracia com isenção. 

 

É verdade que a Justiça portuguesa, terá à sua conta, com honra e merecimento, investigações fulcrais de factos, pessoas e organizações. Mas também é certo que, noutros casos, os atrasos, as falhas processuais, as incompetências e o enviesamento deliberado se transformaram em serviços prestados a pessoas e organizações.

 

A luta, o confronto e a rivalidade entre grandes corpos de Justiça, magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público, oficiais de Justiça e agentes das polícias judiciárias, são tais que se sentem e presentem no espaço público: razão para mais uma falta de confiança na Justiça. 

 

É verdade que houve, aqui e ali, juízes e desembargadores postos em tribunal, arguidos e julgados ou em vias de julgamento. Veremos em que resultam, se é que resultam nalguma coisa. Mas tais factos não bastam para incensar uns corpos profissionais, de soberania, cujos comportamentos deixam a desejar. 

 

Não é a direita contra a esquerda. Nem a esquerda contra a direita. Não são os privilegiados contra os desapossados. Ou os destituídos contra os poderosos. Ou os letrados contra os incultos. Tem-se a nítida impressão de que, entre nós, são todos contra todos, cada qual com os seus casos, as suas oportunidades, os seus pontos de ataque.

 

Não haverá quem, em Portugal, queira fazer estudo sério e isento sobre a Justiça? Quem se proponha fazer, estimular ou proporcionar a elaboração de um “livro branco” sobre a Justiça? Quem se proponha estudar, seriamente, sem preconceito, os feitos e defeitos da Justiça, os seus números e os seus factos, os seus êxitos e os seus falhanços? Seria livro fascinante.

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Público, 6.12.2025

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