29.6.24

Grande Angular - Debate histórico

Por António Barreto

Apesar de já ter havido outros casos inesquecíveis de discussão sobre a Justiça, talvez nunca tenha havido outro momento tão importante como agora. É um debate pertinente e urgente. À vista de todos. Factos anormais estão entre as suas causas. Mas é também provável que o “Manifesto dos 50” (que subscrevi) tenha tornado tudo mais visível. É bom que assim seja. Se ao menos soubéssemos aproveitar a ocasião para compreender, esclarecer e reformar!

 

Por diversas razões, a Justiça não teve, durante as últimas décadas, a sorte, de outros sectores que souberam, mesmo com erros e falhas, evoluir e reformar. A educação, a saúde e a segurança social são bons exemplos. Vastos sectores da economia e da ciência tiveram o mesmo itinerário. A justiça, não.

 

A justiça sofre de uma condição especial porque teve dificuldades em se adaptar a várias mudanças históricas: à democracia, ao mercado, ao crescimento económico, ao Estado social e à integração europeia. Quer isto dizer que, nas suas instituições e no seu funcionamento, acumula os defeitos das circunstâncias históricas vividas. É burocrática, morosa e distante da sociedade real. Muito procedimental, a sua prioridade não parece ser a dos direitos dos cidadãos. Trava e atrasa a vida social e económica. É um obstáculo ao desenvolvimento dos direitos dos cidadãos. É notório exemplo de má gestão de meios. Arrasta processos por tempos intermináveis. É frequentemente injusta. É muitas vezes complacente com os poderosos.

 

Tudo isso é importante, mas o essencial é o direito do cidadão. Esse deveria ser o principal critério. Justiça com mais direitos dos cidadãos. Justiça que nunca fizesse de razões processuais ou de estatuto um critério superior ao dos direitos dos cidadãos. Justiça que submeta o seu funcionamento aos direitos dos cidadãos e não o contrário. Por exemplo, que nunca deixasse para segundo lugar o direito à privacidade.

 

No seu funcionamento, falta à justiça mais intervenção da sociedade e dos cidadãos. Poderia haver certos magistrados eleitos. Ou ligados às autarquias. Ou mais julgados de paz. Como seria interessante generalizar o recurso a julgamentos de júri com jurados e sem juízes. Também deveria a justiça estar mais atenta à igualdade entre cidadãos e ao acesso fácil de todos. Designadamente através dos custos. É razoável que, com a excepção dos conflitos de entidades económicas e financeiras, a justiça seja gratuita para os cidadãos. Como a saúde. Como a educação.

 

Justiça mais pronta é necessidade absoluta. Com prazos estritos para todos os intervenientes, incluindo para os magistrados e os tribunais. E menos vulnerável às chicanas, aos recursos e aos “truques”. Com prazos rígidos para todos os magistrados, procuradores ou juízes, equivalentes aos prazos conferidos à defesa. E com cláusulas definitivas que impeçam arrastar processos infinitamente.

 

Justiça com mais democracia, deseja-se. Não se trata de instaurar um sistema democrático na justiça, mas a verdade é que a Justiça não deveria ser independente da liberdade e da democracia. Nas suas decisões, no tribunal e na mesa de redacção os juízes e os magistrados devem ser independentes! Com certeza. Só assim se defendem os direitos dos cidadãos. Repete-se: os direitos dos cidadãos, não os dos magistrados. Mas a Justiça, os tribunais e os juízes, sendo independentes, não devem estar em autogestão! Independência dos juízes e dos tribunais, em julgamento, não é sinónimo de indiferença à democracia e aos direitos dos cidadãos. A justiça portuguesa confunde facilmente independência dos juízes com roda livre. Ora, se a independência dos Juizes, no julgamento, é valor maior, já o sistema, a organização e a legislação devem depender da democracia e dos órgãos de soberania. A autonomia do Ministério Público, representante do Estado, é diferente da independência dos juízes, mas deve igualmente submeter-se a uma sólida concepção dos direitos dos cidadãos.

 

A aproximação da Justiça da democracia faz-se também através da possível audição, no Parlamento, dos mais importantes dirigentes dos tribunais superiores, do Ministério Público e de outras instâncias judiciais! Tal, aliás, como outros dirigentes da Administração Pública, presidentes de grandes instituições públicas, até embaixadores e alguns chefes militares poderiam ser ouvidos em audiências especiais do Parlamento antes da nomeação definitiva. Ouvidos, é a ideia. Aprovados ou não, é outro assunto a ver com cuidado. Obrigados a prestar contas, seguramente não.

 

As audições parlamentares, vinculativas ou não, servem justamente para aproximar as instituições dos cidadãos, da soberania e do processo democrático. É mais uma maneira de fazer com que o permanente debate sobre a Justiça ultrapasse os limites das profissões jurídicas. Indivíduos, empresas, académicos e tantas outras condições interessam-se pela justiça, sobretudo se tiverem a sensação de ser ouvidos. Além de se interessarem, necessitam de justiça, todos os dias, a todo o momento. 

 

As escutas realizadas pelos tribunais, pelo Ministério Público e pelas polícias, estão também na origem dos debates actuais. As escutas e o uso que delas é feito. Curiosamente, ninguém, com argumentos e razões, defende as escutas. Quase toda a gente se limita a ver os seus perigos, a propor soluções mirabolantes para evitar abusos, mas ninguém as defende. E seria bom que alguém o fizesse. Pelo contrário, diz-se que são perigosas, mas toma-se partido por todos os métodos imagináveis de controlar, validar e garantir as escutas. Mas ainda não vimos ninguém dizer publicamente que é um bom método de investigação, de fazer justiça e de defender os direitos e as liberdades. Ora, as escutas fazem parte de uma parafernália imensa de limite e diminuição dos direitos dos cidadãos.

 

Acabar com as escutas, todas as escutas, de uma vez para sempre, sem regimes especiais e sem circunstâncias excepcionais é ou parece ser a solução mais segura para defender os direitos dos cidadãos. Evita abusos. Reduz os critérios de uso. Dispensa os esforços feitos no sentido de controlar as escutas e que são diariamente anulados pela certeza de que a há escutas a mais. Há escutas abusivas, há destruição dolosa de escutas, há utilização de escutas com fins pessoais e políticos e há exploração do negócio de escutas. São tantas as restrições e as exigências defendidas por pessoas de boa fé que acabamos por concluir que a única solução para evitar o mau uso das escutas consiste em não as fazer.

 

As escutas são mais um meio, embora legal, mas ilegítimo, de vigilância dos cidadãos. De intrusão. De violência. 

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Público, 29.6.2024

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26.6.24

CONVITE


 

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Gempedia


Gempedi
a: A Comprehensive Glossary for Gemstones and Gemmology By Rui Galopim de Carvalho, 2024. AIGS – Asian Institute of Gemological Sciences Co. Ltd, Bangkok, Thailand, https://shop.gem-a.com/product/gempedia-by-ruigalopim-de-carvalho, 719 pages, ISBN 978-9727809172. GBP50.00 softcover.

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When I was asked to review Gempedia, I was very pleased to do so. When I received the book, however, I wasn’t sure what I had gotten myself into: 718 pages, with an average of 10 items on each page. What a task! I started checking every word, but soon realised that it would take me at least half a year to go through this enormous work. So I scanned through it, and spot-checked entries here and there, and am quite impressed. The book starts with a foreword by Gem-A’s CEO Alan Hart, who describes how the idea of Gempedia was born. This is followed by an introduction by the author himself, dealing with the story of the book, the sources he used, and explanations of the content and the possible flaws one may encounter. He also mentions his special interest in some subjects that may have gotten more attention than others, and requests that readers contact him if they find a mistake or missing terms. The introduction ends with a huge list of acknowledgments of people who provided assistance and/or inspiration. After this, the glossary goes straight to the letter A. As I was scanning through the book, I thought of many terms and checked to see if they were included—and they all were. Sometimes they were a little bit hidden, and sometimes the descriptions were a bit too short or too long, but they were there. I then consulted a diamond reference book (Herbert Tillander’s Diamond Cuts in Historic Jewellery Gempedia: A Comprehensive Glossary for Gemstones and Gemmology By Rui Galopim de Carvalho, 2024. AIGS – Asian Institute of Gemological Sciences Co. Ltd, Bangkok, Thailand, https://shop.gem-a.com/product/gempedia-by-ruigalopim-de-carvalho, 719 pages, ISBN 978-9727809172. GBP50.00 softcover. 1381–1910), which has a useful glossary for diamonds at the end, and compared it with the contents of Gempedia. Approximately two-thirds of the terms in Tillander’s glossary were present. What was missing were some weights or a few old descriptions of cuts or weights. I then checked Gempedia for various terms found in a gemmological journal, and could not find any important ones missing. All of the gem materials I checked for in Gempedia are listed, including rare and newer ones such as johachidolite and johnkoivulaite, and many misnomers are explained. Several famous gems and pearls are listed. Pearls have an exceptionally large coverage, including known species of shells and the pearls they produce. Historic places and jewellery pieces are covered, as are important mining areas, instruments commonly used in gemmology, major laboratories, treatment methods and their detection, and some cutting and trading centres, as well as old and new cutting styles. In summary, there is not much that is not covered! Of course, there are some typos or spelling errors, and some terms are missing. After all, it is a glossary and not an encyclopedia. (Gemmology probably should have its own encyclopedia, but that cannot be done in one volume, and probably not in a lifetime.) Since further editions of Gempedia are planned, this reviewer strongly recommends that anyone who notices an error report it to the author, as requested in the book’s introduction. Since the first printing of the book, a list of errata has already been issued, and can be downloaded from https://ruigalopim.com. A minor point of criticism I have heard from others (and noticed myself) is an inconsistency in choice of entities and places that are included. Some laboratories are listed, while others are not, although they have similar importance in the industry. The same applies to cutting and trading centres. As for the listing of famous gems, this also needs more attention in the future, as some are not mentioned. In summary, the advantages of having such an important compilation of accurately defined gemmological information by far outweigh the few missing terms. As such, this book should be included in any gemmological library and be readily available to every gemmologist in a gem lab. For the author, updating this book will probably continue throughout his lifetime, yielding many editions, as changes in gemmology are never-ending, with new mines found, new treatments encountered and new methods of detection developed. Please carry on!

 Dr Lore Kiefert fga Dr Lore Kiefert Gemmology Consulting Heidelberg, Germany

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24.6.24

Ainda há defensores da FORCA?!


 

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22.6.24

Grande Angular - E não se pode proibi-las?

Por António Barreto

Moralmente, o método das escutas policiais, judiciais e outras está condenado. Politicamente, não é apreciado, mas defendido sem prazer. Judicialmente, é aceite. Os que o praticam, em princípio os magistrados judiciais e do Ministério Público, polícias, militares e outros funcionários, aceitam e defendem a sua aplicação. Já as escutas privadas, isto é, praticadas por qualquer cidadão, empresa ou agência, são condenadas e proibidas: são ilegais e apenas defendidas por quem as pratica.

 

As pessoas que defendem o recurso às escutas de Estado têm argumentos conhecidos. Sem elas, muitos crimes teriam sido cometidos. Com elas, é possível orientar as investigações. Graças a elas, podem provar-se crimes. São maneiras de controlar o mercado de droga, o terrorismo e o crime financeiro. São os melhores instrumentos para investigar a corrupção. São indispensáveis para castigar o crime fiscal e financeiro. Finalmente, são essenciais para a segurança do Estado.

 

Nada disto está demonstrado. Nem está provado que, sem as escutas, não haveria outros meios de investigação e prevenção. Como não se conhecem os casos que só foram detectados graças às escutas. Mas sabe-se dos casos em que o sistema de escutas não preveniu. Como, por exemplo, os actos de terrorismo de Nova Iorque, Paris, Londres, Madrid, Moscovo, Israel e outros.

 

É possível que nos argumentos favoráveis às escutas haja uma qualquer verdade. Mas também podemos dizer que há milhares de crimes para os quais as escutas de nada serviram. Como seria interessante saber que crimes foram evitados e quantos criminosos foram condenados graças às escutas. Dizer que são úteis não basta. É necessário demonstrar que o foram e como eram o único meio existente.

 

É possível que haja crimes prevenidos graças às escutas. Mas não sabemos se outros meios não teriam dado os mesmos ou melhores resultados. Nem sabemos, em toda a sua extensão, os prejuízos causados à população, os atentados cometidos contra os cidadãos, os abusos praticados e os casos de ameaça, chantagem e extorsão de que muita gente pode ser vítima de quem abusa das escutas. Em poucas palavras, se há benefícios, é seguro que são obtidos a custo elevado, a expensas dos direitos dos cidadãos.

 

Há países, de regimes autoritários, onde se vigiam os cidadãos. Todos. Na rua, no banco, na escola, em casa, no emprego, no estádio e no bar. De cada um, sabe-se o nome, a conta bancária, a família, os amores, os divertimentos, o cadastro e as dívidas. Assim como as preferências estéticas, políticas, sexuais e gastronómicas. Basta andar na rua para ser identificado. Em países democráticos, onde existem os meios para fazer as vigilâncias que se quiser, há limites na lei, mas pratica-se igualmente. Com menor intensidade. Mas, pouco a pouco, com receio do terrorismo, dos narcotraficantes, dos vendedores de sexo, dos intermediários de mão-de-obra, do crime organizado, dos manipuladores da bolsa, vão-se admitindo excepções e novos meios de vigilância. É verdade que também se aprovam leis de protecção de dados pessoais. Mas sempre com falhas e excepções.

 

Na verdade, por cada escuta “útil”, deve haver milhares “inúteis”, isto é, a pessoas inocentes, sobre assuntos indevidos. As escutas resultam sempre de “varrimentos” intensos. Parece que as que não são necessárias para os casos em questão são destruídas. Parece, não é certo nem seguro, como se tem visto nos últimos anos. Mas por que razão alguns indivíduos (funcionários, magistrados, oficiais, técnicos, polícias…) terão a cobertura da lei para escutar, apreciar, decidir, destruir e conservar o que muito bem entendem?

 

As escutas telefónicas têm características especiais. Para que resultem, são necessários milhares de escutas, dezenas ou centenas de pessoas, temas e assuntos diversos, com vida privada, comercial, política, cultural e o resto. Para uma chamada útil, com informação verdadeira, é necessário ouvir dezenas de pessoas e milhares de chamadas. Centenas de inocentes têm de ser escutados. Cria-se um ambiente permanente de suspeição.

 

Como é sabido, os grandes peritos em escutas não são só os espiões e as policias das ditaduras. São também das democracias. Pergunta-se: quem escuta os escutadores? Quem vigia os vigilantes? Não é possível deixar de lado todos os que nada têm a ver com nada. Nem os inocentes. Só depois de escutados e vigiados é que se sabe se dezenas ou centenas de pessoas estão ilibadas ou não. Além de que as escutas são um belo exemplo do paradoxo da ausência. Não estar referido numa escuta não quer dizer que seja inocente. Um silêncio ou uma ausência não são alibis. Falar sem nada dizer não quer dizer que se esteja inocente ou culpado.

 

As escutas permitem guardar dados para chantagem. Servem para ameaçar outras pessoas que nada têm a ver com o crime. As escutas deixam traços que tornam possível a sua utilização para outros fins. Que permitem a devassa pública. As escutas podem ser destruídas ou mantidas, a coberto da lei, por quem tem força e poder. As escutas permitem uma selecção dolosa de pessoas e de conversas. Por cada pessoa escutada, suspeita, são dezenas ou centenas de outras, inocentes, que são “apanhadas na rede”. Não é moralmente aceitável que, por um possível culpado, se atente contra os direitos de dezenas ou centenas de inocentes.

 

Não parece haver argumentos suficientes para justificar o recurso às escutas. Nem para demonstrar que os benefícios são superiores aos inconvenientes. Parecem inúteis os esforços para reparar o irreparável, para garantir e controlar o recurso a escutas. Há mais de trinta anos que se tenta encontrar a solução ideal: legislação mais apertada, escutas sob reserva, autorização de magistrados, licença de transcriação só para as seleccionadas entre milhares, com e sem destruição decidida por magistrado. É um sem fim de soluções para um problema que as não tem. Todo o contorcionismo jurídico para garantir a bondade das escutas e impedir o abuso tem-se revelado inútil. E nem sequer é possível demonstrar que as escutas deram vantagens à liberdade, aos direitos dos cidadãos, à vida humana e à privacidade.

 

Meias garantias não chegam. Tal como a tortura, o assassinato, a pena de morte, a prisão sem culpa formada e a prisão perpétua, também as escutas exigem uma clara definição: ou é ou não é. Se não há escutas, não há possibilidade de traficar e ameaçar com uma coisa que não existe. Sem escutas, não há mercadoria para tão vil negócio. A proibição total, pura e simples, parece ser a única solução justa e eficaz. Com garantias para os cidadãos. Não resolve todos os problemas. Mas pelo menos elimina alguns. E protege as liberdades.

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Público, 22.6.2024

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21.6.24

APOKÁLYPSIS



Por A. M. Galopim de Carvalho

Quem estudou História sabe que sempre foi assim.

A par da sólida, distraída e despudorada riqueza, 

sobrevive a mais triste, indigna e irremediável pobreza. 

Sempre assim foi e sempre assim será. 

Mas virá um dia, 

não sei quando, mas virá, 

em que, esgotados os recursos do planeta,

exaurido pela sobreexploração a que estamos a assistir, 

os pobres, com séculos de experiência na pobreza, 

levarão a palma na luta pela sobrevivência

 

Esta dolorosa desigualdade continua sem dar sinais de diminuir, 

numa sociedade onde a riqueza do planeta, a ciência e a tecnologia 

têm tudo o que é preciso para a erradicar.

O mundo das finanças ainda não percebeu que este drama vai ter um fim. 

Não sabemos quando, mas vai ter. 

Mais próximo do que se possa imaginar.

 

Então, ricos e pobres serão iguais, mas na pobreza.

Nesse futuro, um diamante vale menos do que um copo de água.

Nesse futuro, os pobres estarão em vantagem 

porque ganharam toda a sabedoria de viver nessa condição

 

O Mundo tem de dar uma volta!

Muito grande! 

Mais cedo ou mais tarde, mas vai dar. 

E será com muito sofrimento, 

mas vai dar.

 

Liberto do “Homo sapiens”,

O Mundo irá renascer

para um novo ciclo de milhares de milhões de anos.

Talvez possa gerar um novo ser

mais inteligente do que “esta coisa” que somos nós,

em sucessivos ensaios e erros

apenas regulados pelas leis da física e do acaso.

Para tal só necessita de tempo.

E isso não lhe irá faltar.

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ESCULTURA MEDIEVAL, A ARTE E AS PEDRAS.



Por A. M. Galopim de Carvalho

À semelhança da pintura, a escultura medieval aparece associada à construção religiosa românica, visando, não só a decoração das igrejas, mas, sobretudo, educar religiosamente os fiéis marcados pelo analfabetismo próprio desse tempo. Foi, em especial, nas igrejas contruídas em locais de passagem, ao longo do caminho de peregrinação em direcção a Santiago de Compostela, que surgiram as primeiras esculturas deste estilo. É o que se pode ver em França, em Espanha e no norte de Portugal.

Há as esculturas incorporadas na parte exterior, sobretudo, no tímpano do portal, mostrando, logo à entrada da igreja, cenas da Bíblia e outras evocativas do inferno, onde prevalece a ideia do eterno castigo dos pecadores e de que, mais importante do que a vida terrena, é a salvação da alma. Como na pintura, as dimensões das figuras dependem da sua importância hierárquica. No interior da igreja, é, sobretudo nos capiteis das colunas que encontra lugar a escultura como forma de decoração, numa profusão de figuras, muitas vezes, fantásticas.

Na segunda metade do século XIII e primeira metade do XIV, distinguiram-se, como centros produtores ou escolas de escultura, Coimbra. Lisboa, Évora e Batalha. Houve mais algumas, mas menos importantes, como a de Santarém. Entre os principais materiais utilizados, ganharam estatuto de qualidade pedra de Ançã, o lioz e o mármore, embora, por vezes, também fosse utilizada a madeira. 

A pedra de Ançã é um calcário do Jurássico médio, com cerca de 75 milhões de anos, de textura muito fina, compacta e homogénea, sem veios. Particularmente macio, tem características óptimas para o trabalho de escultura. Deixa-se cortar facilmente e permite a execução de rendilhados ornamentais de grande pormenor e finura. No que se refere à cor, varia entre esbranquiçada e branco-amarelada, raramente branco-azulada. Tendo sido explorada e usada desde o tempo da ocupação romana, a utilização da pedra de Ançã na arte escultórica ganhou relevo a partir do século XIV, sendo de destacar o portal e o púlpito da igreja de Santa Cruz, em Coimbra, e o túmulo da Rainha Santa Isabel, no Convento de Santa Clara, a Nova, na mesma cidade. A sua grande qualidade como pedra trabalhável a ponteiro e a cinzel espalhou-a por Espanha e por vários países da Europa. 

Uma curiosidade relacionada com esta pedra, tem a ver com o nome da cidade de Cantanhede, na vizinhança do local da sua exploração. Cantanhede radica no baixo-latim cantonieti, o lugar onde se explorava pedra de cantaria. Por sua vez, cantaria deriva de canto, do latim canthus, com o significado de pedra

Lioz é o nome que, na nossa gíria do sector industrial e comercial, é dado aos calcários do Cretácico superior, com cerca de 95 milhões de anos, da região de Lisboa-Pero Pinheiro. O termo tem origem no francês antigo liois (hoje liais), que quer dizer pedra rija. Este calcário, próprio de um mar pouco profundo, de águas límpidas e mais quentes do que as que hoje banham as nossas praias no pino do Verão, foram essencialmente edificados por um tipo de bivalves, de conchas mais espessas do que as das ostras, conhecidos por rudistas. Estes organismos recifais, característicos desse período, cobriram os fundos litorais e, proliferando uns sobre os outros, construíram, camada após camada, os estratos de calcário que ainda podemos ver em Lisboa, por exemplo, sob o aqueduto das Águas Livres, na Avenida Calouste Gulbenkian, ou na base do bairro dos Sete Moinhos, à entrada de Lisboa pela ponte Duarte Pacheco. O lioz ocorre em cores variadas, entre esbranquiçados, beijes, amarelados, rosados e avermelhados. O mais branco foi a pedra usada em termos de cantaria ao serviço da arquitectura urbana, vulgar e monumental, de todas as épocas, a partir da Idade Média, em especial na cidade de Lisboa, em palácios, igrejas, fontes e chafarizes. Na primeira metade do século XIX, o lioz, nas suas diversas, cores, foi a pedra escolhida na reconstrução e enriquecimento de altares-mores de igrejas e de outros espaços interiores, em pavimentos e revestimento de paredes, como os das Bibliotecas do Convento de Mafra e joanina de Coimbra. Muita desta pedra trabalhada, nomeadamente padieiras e ombreiras, arcos e pelourinhos, foram transportados para diversas regiões do antigo Império Português.

O mármore, no dizer dos geólogos. Foi um calcário d o final do Ordovícico, com cerca de 450 milhões de anos, transformado por metamorfismo. É, pois, uma rocha metamórfica de grão fino a grosseiro, essencialmente constituída por calcite, por vezes com bandeado de óxidos de ferro, amplamente usada em construção civil e em estatuária. Acrescente-se que a calcite é um mineral constituído por carbonato de cálcio, a mesma substância química das conchas e outros restos esqueléticos. Nos domínios industrial e comercial, mármore é toda rocha susceptível de serração e polimento. Na Antiguidade, era toda a pedra usada em cantaria. 

Foram muitos os oficiais, alguns deles verdadeiros artistas, que trabalharam nestas escolas. Um ou outro “assinou” as suas obras, mas a maioria não inscreveu na pedra algo que os permita icentificar.

Um dos que temos registo, foi Mestre Pero, aragonês, no século XIV. Ao certo, só sabemos que nos chegou do lado de lá da fronteira, talvez de Aragão, mas havia quem dissesse que fosse originário de Castela. Sabemos que que viveu grande parte do seu tempo entre nós, que a sua actividade começou em Coimbra. nos anos de 1330, e que teve um papel de grande relevo na renovação da escultura gótica em Portugal. Fez desaparecer a rigidez tão característica da escultura românica, tornando as estátuas mais naturais, esguias e com mais movimento. Relativamente às arcas tumulares, introduziu um novo tipo, em forma de paralelepípedo assente sobre leões. Grande parte da sua obra foi realizada na sua oficina em Coimbra, não se sabendo, ao certo, o que foi o seu trabalho pessoal e o dos oficiais seus colaboradores. Foi possível atribuir-lhe várias obras em diversos locais do território nacional. Foram muitas e de entre elas, estou a recordar-me do túmulo de D. Isabel de Aragão, a Rainha Santa, como é mais conhecida entre nós., considerada a sua obra-prima, 

Os túmulos de Dona Inês de Castro e do rei D. Pedro I são duas magníficas peças esculpidas num calcário muito homogéneo e macio da região de Coimbra, muito provavelmente, a chamada pedra de Ançã. São a demostração perfeita da escultura gótica, cuja autoria continua desconhecida. Há quem os atribua a artistas franceses. Mas também há quem defenda serem expressão da escultura tumular portuguesa da segunda metade do século XIV. Foram mandadas executar por d. Pedro I, já ele estava na posse do trono de Portugal. Terminado o túmulo de Dona Inês, em 1360, ordenou que o colocassem no braço sul do transepto e que trasladassem para ele os restos mortais da sua rainha, até então sepultados em Coimbra. De seguida, ordenou que se fizesse um túmulo semelhante para ele e determinou este fosse colocado frente ao de sua amada esposa, para aí repousar e a poder olhar, de frente, no dia da ressurreição dos mortos. 

A rara qualidade da pedra usada permitiu que as faces dos túmulos fossem minuciosamente decoradas com os brasões das respectivas famílias, cenas bíblicas e motivo vegetalistas e geométricos. 

Num contraste imenso com a escultura em granito, como a que se praticou, na mesma época, no Norte de Portugal que, por mais que os artistas quisessem, a dureza e a granularidade desta pedra não lho consentia. Por exemplo, em Lamego podemos observar excelentes túmulos em granito, como é o de D. Pedro, Conde de Barcelos, filho natural de D. Dinis, no mosteiro de S. João de Tarouca, esculpido no século XIV.

Nas imagens:

Em cima, o túmulo de Inês de Castro, esculpido e calcário de Ançã.

Em baixo, o túmulo de Pedro Afonso, conde de Barcelos, esculpido em granito.

 

 

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19.6.24

PINTURA MEDIEVAL, FRESCOS E ILUMINURAS




Por A. M. Galopim de Carvalho

É do conhecimento comum que a evolução histórica da Idade Média decorreu sob a poderosa e, tantas vezes, severa tutela da Igreja Católica. Nesse tempo e numa sociedade em que o povo era analfabeto, a pintura foi uma das vias usadas no Cristianismo, para ministrar o ensino da religião cristã, dos seus dogmas e do código moral. Relativamente à pintura tida por românica, é consensual que esta expressão demonstra o poder da Igreja Católica, na Idade Média. Poder que continuou a estar patente nos estilos, que lhe sucederam. O estilo românico na pintura vigorou na maior parte da Europa medieval, e resume-se, essencialmente, aos frescos pintados nas paredes interiores de igrejas, mosteiros e conventos e às iluminuras. 

Total ou parcialmente apagados pelo tempo, por vandalizações ou outras causas, a imensa maioria dos frescos românicos, perderam-se para sempre e o mesmo aconteceu a muitos frescos góticos. Os poucos que sobrevivem são, por isso, preciosos testemunhos, não só da arte de então, mas também e sobretudo, das mensagens que transmitiam. Na imensa maioria, religiosas, os seus autores não ficaram registados. Nesse tempo, a totalidade do povo não sabia ler nem escrever. Fazer fiéis devotos e doutriná-los nos preceitos da Santa Madre Igreja era, não só do interesse do clero, como no da nobreza, que os explorava. Concebidas para analfabetos e feitas por encomenda dos dignitários do clero, estas pinturas representam, sobretudo, passagens da Bíblia, da vida de Cristo e dos Santos e outros ensinamentos do foro teológico. O analfabetismo e a servidão sempre se complementaram.

A pintura românica é descritiva e mais simbólica do que realista, revela uma interpretação mística da realidade, não usa perspectiva nem profundidade, deforma as figuras representadas, e dá, a todas, as mesmas feições convencionais, aumentando o tamanho das que há interesse em salientar. Cristo, por exemplo, é representado maior do que as outras figuras, a fim de realçar a sua importância e divindade. Como uma das características principais desta pintura, destaca-se o uso de cores puras e fortes, sem meios-tons nem recurso a luz e sombras. Embora relativamente raras, há as chamadas pinturas de cavalete, sobre tábuas de madeira, quase sempre destinadas à ornamentação de altares.

Com nomes a registar na pintura medieval destacam-se dois florentinos que fizeram história. Um foi Giotto de Bondone (1267-1337), natural de uma aldeia a norte de Florença, o outro foi Cenni di Pepo (1240-1302), de seu nome, mais conhecido pelo apelido artístico de Cimabué.

Do primeiro, a Adoração dos Reis Magos, é obra muito divulgada em postais de Boas Festas natalícias. Trata-se de um dos ainda bem conservados frescos na Capela Arena, em Pádua, na Itália, cuja decoração, com abundantes cenas de educação religiosa cristã, é considerada o maior trabalho de Giotto. A Estrela de Belém pintada no topo do fresco da Adoração dos Reis Magos, pode ser a imagem do Cometa Halley, que ele teve oportunidade de ver, aquando da sua passagem, em 1301.

Atribui-se a ele, embora sob reserva, a autoria da série de frescos que descrevem a vida de São Francisco de Assis, no tecto da Basílica que tem o seu nome. Dizem os historiadores que, embora influenciado pela arte que se praticou em Bizâncio e pelos frescos góticos franceses, Giotto foi precursor da pintura renascentista. Ele foi, por assim dizer, o elo entre as pinturas medieval bizantina e a que carateriza o Renascimento. A sua obra é marcada pela humanização da figura dos santos, numa notável antecipação humanista que, em termos de importância, coloca o Homem no centro do mundo, uma corrente filosófica, o Antropocentrismo, que só se afirmou no Renascimento, com inúmeros pensadores. Diz a história que Giotto começou a desenhar ainda em criança, quando era um pastor de ovelhas e que, como arquitecto, chefiou a construção da Catedral de Florença.

Com nome grande na arte do mosaico, Cimabué foi pintor de frescos e em telas, na transição do Bizantino para o realismo das figuras humanas, mas ainda não conseguiu dar a ilusão da profundidade do espaço. Na continuação da via para educar um povo, maioritariamente analfabeto, nos preceitos da Fé, os temas principais das suas pinturas são cenas e personagens do Cristianismo. Cimabué teve o mérito histórico de ser o descobridor e o mestre do jovem pastor Giotto, em Florença.

Saiba-se que o adjectivo bizantino alude à antiga cidade de Bizâncio e que Bizâncio evoca Bizas, rei na época dos argonautas, na mitologia grega. O mesmo adjectivo qualifica as manifestações artísticas próprias do Império Bizantino, entre os séculos V e XV. A cidade de Bizâncio, depois Constantinopla (Istambul, desde 1930) foi a capital do Império Romano do Oriente e o mais importante centro artístico deste período.

Autêntica preciosidade, a iluminura é uma outra expressão da pintura românica, arte que se prolongou no estilo gótico, se lhe seguiu. Manifesta-se sob a forma de ilustração sobre pergaminhos soltos ou sobre as páginas de livros manuscritos. Era executada, sobretudo, nos mosteiros, por monges iluministas. Estes verdadeiros artistas anónimos deixaram-nos testemunhos da sua virtuosidade, quer em grandes livros litúrgicos, quer em outros encomendados por clientes da nobreza e da burguesia rica. Na transcrição de livros, os copistas deixavam espaços para que os iluministas fizessem as ilustrações, os cabeçalhos, os títulos ou as letras capitais, ou seja, as maiúsculas com que se iniciava um texto. Mais tarde, a iluminura gótica atingiu um grau de pormenor, perfeição e beleza que influenciou muitos pintores.

A temática é quase exclusivamente cristã. Nos raros casos em que se trata de temas profanos, revela propósitos moralizadores. Nestas iluminuras transparecem, por vezes, traços da chamada “arte insular,” produzida nas ilhas Britânicas após a queda do Império Romano, visíveis nos entrelaçamentos de estilizações fantasiadas de animais e plantas, influências do estilo moçárabe, onde o desenho do arco mourisco é frequente, e, ainda, a tradição cristã com a herança figurativa pagã patente nos bestiários, entendidos como uma espécie de catálogos manuscritos, realizados por monges católicos, durante a Baixa Idade Média, geralmente usados com propósitos moralizadores, contendo informação sobre animais reais e fantásticos. 

Os mosteiros de Santa Cruz de Coimbra, de São Mamede do Lorvão e de Santa Maria de Alcobaça guardam preciosos manuscritos Românico. De entre eles ficaram na História da pintura portuguesa do século XII, o “Livro das Aves”, a “Bíblia de Santa Cruz de Coimbra” e o “Apocalipse do Lorvão”.


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15.6.24

Grande Angular - O trivial. O fútil. E o disparate.

Por António Barreto

Um auspicioso novo canal de televisão, NOW, especializado em informação e com muita política, inicia actividades. Será seguramente mais um contributo para a democracia. Este canal e os que já cá estavam contam agora com vários políticos, antigos e futuros Primeiros-ministros, ministros, deputados, eurodeputados, autarcas, secretários de Estado e até um cardeal. É provável que seja este um percurso especialmente português. Talvez não haja no mundo um outro país onde os trajectos políticos passam obrigatoriamente pela televisão. Já não se sabe muito bem se a TV é o ponto de partida ou de chegada de uma carreira política!

 

O comentário na televisão já “fez” vários primeiros ministros, pelo menos um Presidente da República e muitos governantes, assim como secretários-gerais e presidentes dos partidos. É provável que a política ganhe alguma coisa com isso. Não é certo nem seguro, mas um superior grau de transparência pode ajudar à virtude. Com uma ressalva: o debate político resvala para os canais de televisão e abandona o parlamento e as assembleias. O que se ganha em visibilidade perde-se em legitimidade, dado que as escolhas televisivas dependem de outros factores (audiências, dinheiro, cunhas, talento, beleza, boas maneiras e publicidade…) que não da legitimidade democrática. Pode ser esse o destino da democracia, quem sabe! 

 

Onde se perde seguramente é na informação. A força da independência e da integridade profissional, o “ethos” jornalístico e a inspiração do serviço público desaparecem. Este percurso é bom para a transparência, é mau para a legitimidade política e é desastroso para a independência da informação. Também se pode dizer que é mau para a racionalidade. A televisão, a proximidade, o “lá em casa” e as emoções do directo são adversários sérios da razão. Mas também é verdade que a política nunca foi só razão. Muito pelo contrário.

 

O Cursus honorum e a carreira política incluem agora obrigatoriamente a televisão. Os tempos do escritório de advogados, da empresa, do sindicato, da Igreja e da Maçonaria já lá vão. A escrita também morre devagar. A televisão e o respectivo comentário já #deram” governantes e autarcas sem fim. Do debate ao monólogo e à prédica, o comentário (político, cultural ou desportivo) é o que dá oportunidade para falar de tudo. Aliás, já não se trata de comentário, mas sim de acção, de protagonismo, de acto. Quem está ali, na televisão, não comenta, age. 

 

Políticos e comentadores (são os mesmos) entretém-se com as hipóteses, os jogos florentinos, as minas e armadilhas, as cenas de ópera e os quadros de vaudeville…. Situação como a que vivemos nestes dias é ideal para a televisão, para os debates e para o teatro de revista. Infinitas são as hipóteses. Grave é o facto de cada vez mais haver dois governos em funções, o executivo propriamente dito e o de assembleia. Talvez se possa mesmo acrescentar um terceiro governo, o presidencial. O governo pretende executar, mas é cada vez mais o legislativo que se ocupa dessa função. O Parlamento pretende legislar, mas é a oposição que se ocupa dessa tarefa. Já se percebeu que vai dar asneira. Da grossa.

 

Entretanto, quase não há tempo para sentir que o ridículo mata. O logotipo da bandeira nacional e da República Portuguesa foi o mais recente exemplo! A edição PS era moderna, digital e basbaque. Inclusiva, dizem, sem sinais colonialistas. Antes das eleições, a velha edição patriótica, com quinas e esfera armilar, foi reivindicada pelo PSD. Depois, a nova edição do PSD é patriótica nas cores, mas inclusiva na ausência de símbolos. Já não são precisos os votos, foram-se as quinas. E que mais teremos? Tempos houve, bem mais divertidos, em que se propunha colocar na bandeira o boné frígio, o triangulo maçónico, a cruz de Cristo, as cavacas de Rezende e talvez o bacalhau à lagareiro. Agora, são propostas de simplicidade digital e de alusão subconsciente à pátria!

 

Já houve quem (António Alçada Baptista, pouco culpado de ser perigoso esquerdista) propusesse, bem mais ajuizadamente, que se alterasse o hino nacional, a “Portuguesa”, com as suas declarações guerreiras. “Às armas! Às armas! Sobre a terra e sobre o mar! Pela pátria, lutar! Contra os canhões, marchar, marchar” … Tinha mais razão do que estes novos “inclusivos”. Mas apanhou na cabeça do país inteiro.

 

A esquerda ridícula tentou abolir o colonialismo da bandeira. Achou que era a boa altura, à mistura com o anti-racismo. A direita ridícula achou por bem reagir, Protestou. Antes das eleições, tratavam as esquerdas de traidoras.  As esquerdas ridículas preparavam-se para se venderem no altar profano dos apátridas. As direitas ridículas logo se apresentaram ao serviço para salvar a pátria. Depois das eleições, não se sabe bem porquê, as direitas sanearam o ultraje dos socialistas, mas abdicaram do regresso à bandeira, e encontraram um meio termo, um pouco digital, um tanto moderno, conservador quanto basta, simples no que parece, destituído de significado, baço, como gostam os que não têm rosto nem cabeça. Nem coração, pelos vistos.

            

Entretanto, as esquerdas tentaram não comemorar Camões, que nasceu há 500 anos. Quase iam conseguir. As direitas, agora no governo, inventaram apressadamente um programa de festividades. Mas apagam Vasco da Gama, que morreu há 500 anos e era, ao que eles julgam, mais racista e esclavagista do que Camões. Acontece que este cantou aquele, com dedicação inspirada! Camões não merecia que esquerdas e direitas lhe fizessem uma moeda com cara sem rosto!

 

A agressividade com que os nacionalistas lutam contra os republicanos é tal que parecem perder a cabeça e o tino. Nunca se lhes ouve uma palavra sobre Camões ou Gama, sobre a bandeira ou a esfera armilar. Para já não falar dos campos verdes e do sangue dos heróis! Esquecem que esta bandeira é já por si lesa pátria e mata reis, pois deveria ser azul e branca. As direitas ganham as eleições e depois têm receio do que prometeram. Já que têm o governo nas mãos, porquê ganhar mais inimigos? Assim foi que encontraram soluções mornas para Camões, frias para Gama e turvas para a bandeira! Assim é que a bandeira nacional, produto republicano, é festejada pelos nacionalistas e conservadores. O hino nacional, a “Portuguesa”, produto jacobino, com laivos anticolonialistas, é defendido por conservadores e nacionalistas! O mundo às avessas! 

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Público, 15.6.2024

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13.6.24

FRANÇOISE HARDY (1944-2024)


Por A. M. Galopim de Carvalho

Nunca pensei que a morte de Françoise Hardy me tocasse tão fundo como me tocou.

Sessenta anos volvidos sobre a minha estadia em Paris, nos anos em que ela foi a grande revelação na música francesa, igualando em audiência os maiores desse tempo, esta sempre jovem como eu a guardei num recanto da memória, desaparecera completamente do meu mundo, ao contrário do que aconteceu com Gilbert Bécaud, Yves Montand, Jacques Brel, Juliette Gréco, Charles Aznavour, Nana Mouskouri, George Moustaki (nunca apreciei Édith Piaf) e mais um ou dois que nunca deixei de ouvir. 

Dizia eu que esta então embaixadora da canção francesa voltou subitamente ao meu mundo de hoje, não a jovem intérprete de “Tous les garçons et les filles de mon âge”, que tantas vezes ouvi no nosso apartamento no saudoso Hotel Blanadet, no 51 Rue Monge, mas a octogenária, que disse adeus ao mundo, após doloroso sofrimento.

Esta notícia do falecimento da compositora e cantora pop deu-me a consciência de como o tempo devorou 60 anos das nossas vidas, o que, convenhamos, não pode deixar de nos tocar.

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10.6.24

Que viva a Europa!

Por António Barreto

Grande Europa! Bela Europa! Europa complexa e difícil! Europa forte e frágil, vulnerável e resistente! Europa quase sempre em risco diante do adversário de fora, do inimigo vizinho e das ameaças de dentro! Europa a viver um dos seus mais difíceis momentos da história recente, depois da segunda guerra, Europa com guerra ao lado da sua União, às suas portas, dentro do seu continente! Europa sempre a sofrer dos ataques dos seus tradicionais inimigos, dos impérios que a rodeiam! Europa que criou, adoptou ou desenvolveu, mais do que qualquer outro continente, o que de melhor a humanidade fez na história, das artes à ciência, da cidade ao campo, das viagens aos descobrimentos, da máquina ao espírito, da democracia aos direitos humanos, da liberdade à diversidade humana!

 

A Europa que hoje foi a votos é uma Europa ferida, amedrontada, perseguida, frágil por dentro, vulnerável por fora, invejada, atacada e ameaçada. Será que a Europa tem os meios suficientes para resolver e superar as crises que criou, as que deixou criar e as que lhe trouxeram de fora?

 

Estas eleições permitem todas as leituras, nacionais e europeias. Conforme os países, as direitas ganharam e perderam, as esquerdas perderam e ganharam. Algumas extremas-direitas subiram, outras desceram. Aumentou a fragmentação política da Europa, alargou-se a diversidade das comunidades nacionais e ficaram ainda mais marcadas as diferenças políticas entre países. Confirma-se uma vez mais que a fraqueza da Europa, a sua diversidade, as suas diferenças e os seus contrastes, é a sua riqueza, o que faz do continente uma civilização invejável.

 

Confirmou-se que as ameaças actuais são das mais graves que a Europa conheceu nas últimas décadas. As percepções europeias das migrações são perturbadoras. O receio de desordem interna aumenta. Os sentimentos nacionais sentem-se ameaçados. A agressividade nacionalista procura caminhos. A Europa está ameaçada pelo afastamento americano. A Europa está posta em perigo pelo imperialismo agressivo russo. A Europa está fragilizada pela guerra no Próximo Oriente. A Europa não tem defesa capaz, nem unidade à altura dos grandes cionflitos. A Europa perdeu grande parte da sua indústria e da sua energia. A Europa… ou se refunda ou se destrói.

 

A Europa é uma obra de arte de política, de engenho, de cultura e de civilização. Mas é frágil porque se deixou acomodar. Será a Europa capaz de resolver os problemas que criou e que deixou que a viessem perturbar? Será que a democracia é capaz de resolver os problemas que ela própria criou? Estas últimas eleições europeias nada resolveram, não definiram caminhos, não encontraram soluções. Mas avisaram! Chamaram a atenção! Os Europeus têm poucos anos, muito poucos, para encontrar o seu caminho, a sua defesa, a sua unidade e o seu programa. Têm poucos anos, muito poucos, para consolidar a sua diversidade, sem destruir a sua história. Para refundar a sua dimensão continental, sem perder de vista a sua variedade nacional. Para reforçar a sua liberdade, sem perder o seu espírito.

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Público – 9 de Junho de 2024

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8.6.24

Grande Angular - Há liberdade de expressão a mais?

Por António Barreto

É tão curioso que, após 50 anos de liberdade, se discuta novamente e com acidez a questão da liberdade de expressão! Tudo parece ter começado com os limites à liberdade de expressão que, segundo alguns, o Parlamento deveria tolerar aos seus deputados. Mas a questão vem de trás e é velha. E talvez eterna. Nos últimos meses e anos, foram vários os momentos em que o problema se levantou. Umas vezes, por causa dos segredos de Estado. Outras, pela inconveniência das instituições. Outras ainda porque não se deve “dizer mal” de alguém. Ainda há as coisas que não se devem dizer porque “fica mal”. Ou porque envolvem preconceito. Ou porque traduzem opiniões mal vistas por certos grupos da sociedade. Sem falar nos segredos de empresas, de marcas e de contratos. A todos estes casos, a resposta adequada é não! Nada justifica a repressão da liberdade de expressão.

 

Os “limites à liberdade de expressão” não são limites à liberdade de expressão. O que alguns designam por “limites” deveriam ser castigos ou punições por calúnia, mentira, obstáculo à justiça, difamação ou erro intencional. Nada disso deveria ser punido por excesso de liberdade de expressão, mas sim pelos méritos ou deméritos próprios. Caluniar e ofender outrem, afirmar falsidades sobre alguém, errar propositadamente para prejudicar alguém, enganar outras pessoas, ludibriar a justiça e quaisquer actos semelhantes devem ser punidos pela legislação sobre direitos humanos, sobre o dever de respeito pela verdade, sobre a calúnia e a difamação e sobre os danos causados a outrem, não por uso da liberdade. Desvendar factos da vida pessoal e privada de alguém não é abuso da liberdade de expressão, é, isso sim, atentado ao bom nome e à reserva da vida pessoal. Mesmo a calúnia, um dos casos mais difíceis de avaliar, deve ser punida por prejudicar alguém, não por uso da liberdade de expressão.

 

A liberdade de expressão é um bem, uma virtude, um direito, uma qualidade que só poderá ser reprimida por um bem, uma virtude, um direito ou uma qualidade de valor superior. Não se vê o que este poderia ser. A pátria? A família? O poder? As empresas, os partidos, os clubes desportivos? Não vejo quem represente valores superiores aos da liberdade.

 

Além desse facto simples, outro elemento contribui para o estatuto especial da liberdade de expressão. Esta também é instrumental, isto é, condição das outras liberdades, meio de luta por outros direitos. Sem liberdade de expressão, não é possível obter e lutar pelos direitos e liberdades dos cidadãos. É a liberdade de expressão o mais forte instrumento de luta e de respeito pela democracia.

Recentemente, a liberdade de expressão tem vindo a ser invocada a propósito de preconceitos. Como é evidente, os preconceitos e as aleivosias ficam com os seus responsáveis. As generalizações preconceituosas são defeitos de inteligência entre os piores que se conhecem. Os Judeus isto, os Negros aquilo, os Muçulmanos aqueloutro. Ou os Brancos, já agora. Para não falar dos Turcos, dos Americanos, dos Chineses e dos Ciganos. Além destes grupos nacionais ou étnicos, há ainda os homossexuais, as mulheres, os burgueses, os comunistas, os fascistas, os alentejanos e os galegos. Não faltam grupos sobre os quais não haja regularmente generalizações estúpidas, preconceitos vis e vociferações imbecis. Temos de viver com isso, se queremos viver com a liberdade de expressão. Ninguém precisa de licença para insultar, nem sequer para defender a virtude. E ninguém tem autorização para limitar a liberdade de expressão de outros. Nem sequer para defender o bem.

 

A admitir limites, o grande problema consiste em determinar as permissões e as proibições. Quais são as generalizações admitidas e as condenadas. Brancos? Pretos? Amarelos? Ou então burgueses, fascistas, nazis ou comunistas? Em segundo lugar, ainda mais difícil, quem define os limites? Políticos? Polícias? Igrejas? Professores? Sindicatos? Juizes? Jornalistas? Terceiro, onde se estabelecem as regras? No Parlamento? No Governo? Na presidência? No partido? Nos jornais? Na loja? Na igreja?

 

As respostas a estas perguntas são, em geral, as mais vagas que se pode imaginar. Diz-se que a definição pertence ao bom senso e à sensatez. Aos costumes e à moral. À opinião pública e outras vacuidades. A verdade parece ser mais simples e mais difícil. Não há limites para a liberdade de expressão. Quem usa da liberdade de expressão para fazer mal, mentir, caluniar e prejudicar, deve ser julgado, contrariado e condenado por isso mesmo, pelo mal que faz, pela mentira, pela calúnia e pelo prejuízo, não pelo “abuso” da liberdade de expressão. Se eu der voz a preconceitos e generalizações, devo ficar com as consequências, mas não se vê quem possa definir as generalizações aceitáveis e as condenáveis. Se alguém disser “não gosto de ciganos”, “não gosto de capitalistas”, “os monopolistas devem ser banidos”, “os trabalhadores são preguiçosos” … que fazer? Mandar prender? Processar em tribunal? Quem se queixa? E se alguém se referir negativamente aos Israelitas ou aos Palestinos? Além de se proibir dizer “mal”, também se deve proibir dizer “bem”? Há limites? Fronteiras? Quem as define? Quem traça os critérios?

 

Quando se fala em liberdade de expressão, termos e conceitos muito em voga são os que consistem em generalização social, biológica, racial e étnica. Como definir os limites e as fronteiras? O que é ou não é aceitável? “Os americanos (ou chineses, ou russos…) querem mandar no mundo”! Permitido? Os “alemães ocuparam a Europa”, ou “os russos invadiram a Ucrânia”. Pode dizer-se? Os “israelitas massacraram palestinos” ou os “palestinos assassinaram judeus”?  Pode afirmar-se? Os “vietnamitas derrotaram os americanos”. Pode dizer-se? Os “americanos (ou russos, ou chineses…) são imperialistas”. Pode declarar-se?

 

Quem contesta expressões do género: as tradições imperialistas dos ingleses, colonialistas dos portugueses, despóticas dos russos, autoritárias dos chineses, conquistadoras dos árabes, fanáticas dos islamistas e opressoras dos católicos, entre tantas outras? É tão ridículo condenar estas expressões, como considerá-las verdadeiras. Os portugueses conquistaram, colonizaram, escravizaram, dominaram e exploraram milhões de indígenas de África, das Américas e da Ásia. Pode dizer-se? Mas também o fizeram, com a mesma ou maior intensidade, entre outros, os ingleses, os chineses, os árabes e os russos. O que se pode ou deve dizer?

 

Há muita gente que gostaria de estabelecer, para os outros, cânones e códigos de conduta. Há demasiada gente que tem uma concepção parcial da liberdade de expressão. Quem sabe se também de outras liberdades e outros direitos.

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Público, 8.6.2024

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